Sinuca embaixo d`água, de Carol Bensimon

O segundo livro de Carol só perde para o primeiro na capa. Deve haver um critério muito misterioso de marketing que justifique o fato da Companhia das Letras ter escolhido aquela coisa sem graça num livro tão visual como Sinuca. Antes de qualquer consideração, porém, peço licença para observar meu próprio umbigo. Se a atmosfera do romance é a da morte de uma jovem (Antônia), do fim de um bar (causado pela estupidez dos moradores em torno), da poluição do lago e do abandono de uma criança, nada disso me afeta muito comparado com a alegria que me causa a realização de um romance tão belo. Você pode dizer que troco e-mails com Carol, que já a vi duas ou três vezes e que meu exemplar veio com dedicatória, mas tal admiração passa longe do compadrio que detesto. A alegria é um defeito de fabricação: quando, por exemplo, ouço a desesperada súplica de arrependimento diante de Deus de Erbarme dich, mein Gott da Paixão Segundo São Mateus, de J. S. Bach, fico feliz pela realização de Bach, mesmo sem ignorar o sentimento que o levou àquilo. Na verdade, sinto-me eufórico.

E o mesmo ocorreu comigo ao finalizar Sinuca, fiquei eufórico com um romance que trata, entre outras coisas, da morte. Ou seja, Sinuca embaixo d`água não é um bombom nem um passeio de pedalinho pelo lago. É o romance do luto de três personagens principais — o namorado Bernardo, irmão Camilo e o dono do bar next door Polaco –, de quatro pequenas histórias paralelas e do bar, do próprio bar, outro morto.

A linguagem de Carol Bensimon alterou-se em relação a Pó de Parede. Lá, havia uma poesia menos dura do que a de Sinuca. As frases encurtaram, muitas são intencionalmente vagas e o seu significado exato é dado pela experiência do leitor. Não obstante, não é uma leitura trabalhosa; é, isto sim, poética. Deu trabalho, certamente, pois Carol ainda precisava adaptar a linguagem a cada um dos personagens.

E cada personagem encara a morte de sua maneira. Bernardo é o namorado culto que percorre a via crucis da forma mais inteligente e “normal”. Houve uma grande perda e a hora é de sofrer, seja ouvindo jazz, seja ouvindo coisas desnecessárias da parte de amigos, seja jogando um jogo à morte. Temos a impressão de que a construção da linguagem foi dedicada a ele, mas ela adapta-se igualmente a Camilo, o irmão preterido pela morte. Drogadito light, faz-nada e mecânico amador, amava a irmã ao ponto de sentir um controlado ciúme de Bernardo. E Polaco é o dono do bar que coleciona perdas. Porém os maiores personagens do romance são Antônia, desenhada lenta e minuciosamente a seis mãos, e o bar, ponto de encontro e centro do ódio de certa cidade.

O bar não tem seu nome declinado pela autora mas…, meus amigos, é o Timbuka. Se eu soubesse disso, teria falado três vezes com Carol Bensimon. Conheci-a na quarta ou quinta-feira da noite de autógrafos (1). Voltei a vê-la no Parangolé, durante a ImpedFest (2) e, no dia seguinte, lá estava ela, talvez com uma garrafa térmica, quem sabe com uma cuia, tomando chimarrão com o namorado do lado esquerdo e as ruínas do Timbuka do lado direito. Não quis interromper, mas interromperia, se soubesse que o bar era um dos temas do livro — teria excesso de assunto!.

Então, para terminar esta resenha que já vai longe, digo que este é um dos melhores romances porto-alegrenses que li, até por trazer com delicadeza um dos fatos dos quais a cidade deveria se envergonhar: a derrubada do Timbuka. Algo de perto semelhante vi no final de 2005: participei de uma reunião do movimento da Rua Gonçalo de Carvalho, justo em essência, mas que conseguiu enxotar uma Orquestra Sinfônica em nome do ecossistema da rua… A exposição de burrices e a emissão de preconceitos devem ter sido análogas quando da discussão sobre a ação de uma retroescavadeira sobre um local era apenas um culto à felicidade, como o Franciel descreve neste post.

Para não finalizar fora do tópico e como o pessoal que visita meu blog não é brincadeira e lê mesmo, uso o tempinho que sobra para sugerir os capítulos “Polaco” (p. 19), “Lucas” (p. 96) e “Bernardo” (p. 83, 101 e 115). São demonstrações claras do virtuosismo nada gratuito de Carol neste Timbuka, ops, Sinuca embaixo d`água.

19 comments / Add your comment below

  1. Foi publicada resenha elogiosa n’O Globo, caderno prosa & Verso, sobre o livro da Carol, se não me engano um a guria de 26 anos (ou pouco mais que isso) mas com doutorado já finalizado (acho que na Sorbonne, será?); na matéria, uma foto tamanho grande da dita cuja Bensimon, com oclinhos e sorrisinho sem graça (fotos são mesmo um martírio). Tô pensando em ler o livro, apesar do personagem (só um) intelectualizado e suas amargas lembranças conjugadas com seus amigos diferentões do bar. Sei lá, mil coisas, pode ser “exercício” demais, não, Milton?, no lugar duma relevância obtida sem truques roubados das técnicas abstraídas das… oficinas literárias. Deixemos de implicâncias: por que uma autora espertinha brasileira será menos interessantes que as espertinhas chinesas e indianas a vender seus voiluminhos e ocupar nossos caderninhos literários? Mas não espere comentários tão cedo: tô com uma fila imensa pela frente, inclusive o livro que me presenteaste.

  2. — 27 anos, se não me engano.

    — Sim, Sorbonne.

    — Se tu soubesses o que a Carol me escreveu sobre as tais oficinas… Esqueça, ela é das que lê mesmo.

    — Ela não é espertinha, é interessantezinha…

    — É um romance curto. As tais amargas lembranças surgem através de fatos que vão se acumulando, não através do texto explícito. Ela vai jogando. O leitor forma o ambiente depressivo, não a autora.

    Tô atrasado! Tchau.

  3. Legal Milton. Desde que você a citou pela primeira vez, acho que mês passado, eu já estava de olho no talento da menina (no talento). Ninguém espera compadrio seu para essas coisas, você não é de brincadeira, no que tá certo.
    Agora volta pro 2666!

  4. E a propósito, já que está calmo por aqui esta semana (nenhuma discussão cabeluda), pergunto a vocês dois (Milton e Marcos, in concert): algum palpite para o anúncio tradicional do nobel de literatura deste dia 10? Minhas apostas: Philip Roth (apesar de ser mais torcida, pois a academia sueca tem uma queda para escritores periféricos e politicamente engajados), Thomas Pynchon, Cees Nooteboom, Margareth Atwood (embora seja incomum a premiação de duas mulheres seguidas), Antonio Lobo Antunes e Mario Vargas llosa.

        1. Arbo, das vezes que funciono com razoável coerência na escrita, o faço instigado por uma paixão, indignação, ou algum tema prosaico de humor, lançados por outra pessoa, ou por outro texto. Eu não tenho o mínimo interesse em criar um blog (o Marcos certa vez explicou as suas razões para isso, muito comum às minhas), e digo taxativamente: jamais vou ser blogueiro. Eu não teria o ecumenismo do MIlton, em revezar posts soberbos com a graça colegial de, todo faceiro, mostrar seu rosto tatuado nas nádegas de uma mulher. E além do mais, não gosto de computador. Eu seria pesado e literário demais. Esse blog do Milton me faz um favor imenso, pois há muito que não mostrava o que escrevia para outras pessoas, e a exposição, para quem escreve, é fundamental. Por isso, longa vida ao Milton, e espero que ele e sua tripulação continue aceitando tão gentilmente meus desabafos aqui!

    1. Não tenho preferido, Charlles. Pynchon eles não escolheriam, de qualquer forma. Mas se a aposta incluiu até o Eco e o Dylan, então tá valendo tudo mesmo.
      E concordo com o arbo: seus comentários são dignos de belos posts.

  5. As casas de apostas de Londres mostram o que segue. É só apostar!

    Amos Oz 4/1
    Assia Djebar 5/1
    Joyce Carol Oates 5/1
    Herta M�ller 7/1
    Philip Roth 7/1
    Adonis 8/1
    Antonio Tabucchi 9/1
    Claudio Magris 9/1
    Haruki Murakami 9/1
    Ismail Kadare 10/1
    Ko Un 12/1
    Luis Goytisolo 12/1
    Thomas Pynchon 12/1
    Thomas Transtromer 12/1
    Arno�t Lustig 16/1
    Atiq Rahimi 16/1
    Mario Vargas Llosa 16/1
    Yves Bonnefoy 16/1
    Cees Nooteboom 20/1
    Peter Handke 20/1
    Alice Munro 25/1
    Bob Dylan 25/1
    Don DeLillo 25/1
    Juan Marse 25/1
    Les Murray 25/1
    Milan Kundera 25/1
    Ngugi wa Thiongo 25/1
    A.B Yehoshua 40/1
    Margaret Atwood 40/1
    A. S. Byatt 50/1
    Bei Dao 50/1
    Carlos Fuentes 50/1
    Chinua Achebe 50/1
    Gitta Sereny 50/1
    Mahasweta Devi 50/1
    Michael Ondaatje 50/1
    Vassilis Aleksakis 50/1
    Adam Zagajewski 66/1
    E.L Doctorow 66/1
    Harry Mulisch 66/1
    Peter Carey 66/1
    Umberto Eco 66/1
    Salman Rushdie 80/1
    Beryl Bainbridge 100/1
    Cormac McCarthy 100/1
    David Malouf 100/1
    Eeva Kilpi 100/1
    Ernesto Cardenal 100/1
    F. Sionil Jose 100/1
    Ian McEwan 100/1
    John Banville 100/1
    Jonathan Littell 100/1
    Julian Barnes 100/1
    Kjell Askildsen 100/1
    Marge Piercy 100/1
    Mary Gordon 100/1
    Maya Angelou 100/1
    Michel Tournier 100/1
    Patrick Modiano 100/1
    Paul Auster 100/1
    Rosalind Belben 100/1
    William H Gass 100/1

  6. Milton, estive com este livro na mão, pq te vi com ele na mão certa vez. iria conversar contigo sobre ele, pois, realmente, a capa nao ajudou. Não que eu compre livro por capa, mas como era uma autora que não conhecia, preferi esperar para conversar contigo. Bueno, certamente, irei comprá-lo agora.
    Terminei comprando o da Bruna Surfistinha. E “Por uma outra comunicação” do Dênis de Moraes [org.] tb, pra equilibrar o “intelecto”!!!! hahahahahahaha…

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