Entre promessas e constrangimentos, OSPA é homenageada e faz mau concerto

Durante o concerto comemorativo aos 60 anos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA), nesta terça-feira, ouviu-se não apenas a 9ª Sinfonia de Beethoven, mas vários discursos.

Quando o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, declarou a OSPA como “Bem Cultural de Natureza Imaterial” da cidade, houve certa reação de uma plateia que conhece a história recente da Orquestra. Ouviram-se murmúrios, para dizer o mínimo. A Ospa está há anos sem sede. Após ter sido rejeitado por algumas associações de moradores — houve o célebre caso dos Histéricos da Gonçalo de Carvalho que desejam proteger o ecossistema da rua… — , o projeto da sede, hoje, só se materializa no papel e em tapumes no Parque Maurício Sirotsky. Como se não bastasse, a verba indenizatória para manutenção de instrumentos e indumentária dos músicos está defasada, o regente titular está demissionário, o local de ensaios é totalmente inadequado – um armazém no cais do porto – e o Conservatório Pablo Komlós está desativado. Sob esta perspectiva, o ato de registrar a OSPA como Bem Imaterial foi ouvido como uma fina ironia involutária, porque “bens materiais” é tudo que lhe falta.

Porém, a reação maior veio quando o Secretário de Cultura do Estado, César Prestes, discursou, representando o Governo do Estado. Ao referir-se a uma suposta boa convivência da Secretaria com a Orquestra, Prestes ouviu algumas risadas em tom de escárnio. Apesar do secretário ignorá-las, o constrangimento foi geral. Depois, foram chamados para discursar o deputado estadual Adão Villaverde (PT). Ele tentou tranquilizar a plateia, garantindo que os recursos para a construção do novo teatro estão na previsão do futuro governador Tarso Genro e da bancada federal gaúcha para o próximo ano. Porém, o presidente da Fundação Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, Ivo Nesralla, após citar a presença do futuro Secretário da Cultura, Luiz Antônio de Assis Brasil, do ex-governador Olivio Dutra, do deputado Raul Pont (PT), do secretário municipal da Cultura, Sergius Gonzaga, e de outras autoridades, fez retornar o clima pesado ao dar a boa notícia de que finalmente as verbas para manutenção dos instrumentos e da indumentária seria reajustada e paga. Só que o bom anúncio foi feito com tal falta de entusiasmo que os murmúrios voltaram à plateia. Só foram interrompidos por Beethoven, regido por Isaac Karabtchevsky em seu último concerto e que recebeu uma interpretação apenas correta, bem abaixo da capacidade dos músicos.

Se no primeiro movimento a orquestra somente tratou de bater o ponto, um Molto Vivace (Scherzo) duro e estranhamente militar deu o pontapé inicial para a  tragédia. Há que ter humor para tocá-lo e parecia que não havia muito disponível em estoque.  Obs.: Scherzo significa “brincadeira”. O Adagio molto e cantabile veio em inusitada velocidade, como se Karabtchevsky quisesse jantar logo. Desde que Karl Böhm passou a tocar este movimento em 18 minutos lá pelos anos 70 — contra os 14 de Karajan, por exemplo — que a concepção mais rápida do Adágio da Nona ficou abalada. Hoje, poucos o interpretam da forma escandalosamente açodada que ouvimos ontem e conheço muitas gravações dele, pois é meu movimento preferido da Nona. O Coral final esteve realmente perfeito, mas foi só. Falando com franqueza, acho que o internacional Karabtchevsky não tem mais ambiente e já vai tarde.

Por falar em tarde, hoje à tarde, a Assembleia Legislativa do Estado homenageou a OSPA por seus 60 anos. No Plenário da Assembleia Legislativa, ouviram-se novas promessas de apoio à instituição. Fala-se em recursos federais de R$ 30 milhões para o início das obras, mas não há confirmação de valores.

Sinuca embaixo d`água, de Carol Bensimon

O segundo livro de Carol só perde para o primeiro na capa. Deve haver um critério muito misterioso de marketing que justifique o fato da Companhia das Letras ter escolhido aquela coisa sem graça num livro tão visual como Sinuca. Antes de qualquer consideração, porém, peço licença para observar meu próprio umbigo. Se a atmosfera do romance é a da morte de uma jovem (Antônia), do fim de um bar (causado pela estupidez dos moradores em torno), da poluição do lago e do abandono de uma criança, nada disso me afeta muito comparado com a alegria que me causa a realização de um romance tão belo. Você pode dizer que troco e-mails com Carol, que já a vi duas ou três vezes e que meu exemplar veio com dedicatória, mas tal admiração passa longe do compadrio que detesto. A alegria é um defeito de fabricação: quando, por exemplo, ouço a desesperada súplica de arrependimento diante de Deus de Erbarme dich, mein Gott da Paixão Segundo São Mateus, de J. S. Bach, fico feliz pela realização de Bach, mesmo sem ignorar o sentimento que o levou àquilo. Na verdade, sinto-me eufórico.

E o mesmo ocorreu comigo ao finalizar Sinuca, fiquei eufórico com um romance que trata, entre outras coisas, da morte. Ou seja, Sinuca embaixo d`água não é um bombom nem um passeio de pedalinho pelo lago. É o romance do luto de três personagens principais — o namorado Bernardo, irmão Camilo e o dono do bar next door Polaco –, de quatro pequenas histórias paralelas e do bar, do próprio bar, outro morto.

A linguagem de Carol Bensimon alterou-se em relação a Pó de Parede. Lá, havia uma poesia menos dura do que a de Sinuca. As frases encurtaram, muitas são intencionalmente vagas e o seu significado exato é dado pela experiência do leitor. Não obstante, não é uma leitura trabalhosa; é, isto sim, poética. Deu trabalho, certamente, pois Carol ainda precisava adaptar a linguagem a cada um dos personagens.

E cada personagem encara a morte de sua maneira. Bernardo é o namorado culto que percorre a via crucis da forma mais inteligente e “normal”. Houve uma grande perda e a hora é de sofrer, seja ouvindo jazz, seja ouvindo coisas desnecessárias da parte de amigos, seja jogando um jogo à morte. Temos a impressão de que a construção da linguagem foi dedicada a ele, mas ela adapta-se igualmente a Camilo, o irmão preterido pela morte. Drogadito light, faz-nada e mecânico amador, amava a irmã ao ponto de sentir um controlado ciúme de Bernardo. E Polaco é o dono do bar que coleciona perdas. Porém os maiores personagens do romance são Antônia, desenhada lenta e minuciosamente a seis mãos, e o bar, ponto de encontro e centro do ódio de certa cidade.

O bar não tem seu nome declinado pela autora mas…, meus amigos, é o Timbuka. Se eu soubesse disso, teria falado três vezes com Carol Bensimon. Conheci-a na quarta ou quinta-feira da noite de autógrafos (1). Voltei a vê-la no Parangolé, durante a ImpedFest (2) e, no dia seguinte, lá estava ela, talvez com uma garrafa térmica, quem sabe com uma cuia, tomando chimarrão com o namorado do lado esquerdo e as ruínas do Timbuka do lado direito. Não quis interromper, mas interromperia, se soubesse que o bar era um dos temas do livro — teria excesso de assunto!.

Então, para terminar esta resenha que já vai longe, digo que este é um dos melhores romances porto-alegrenses que li, até por trazer com delicadeza um dos fatos dos quais a cidade deveria se envergonhar: a derrubada do Timbuka. Algo de perto semelhante vi no final de 2005: participei de uma reunião do movimento da Rua Gonçalo de Carvalho, justo em essência, mas que conseguiu enxotar uma Orquestra Sinfônica em nome do ecossistema da rua… A exposição de burrices e a emissão de preconceitos devem ter sido análogas quando da discussão sobre a ação de uma retroescavadeira sobre um local era apenas um culto à felicidade, como o Franciel descreve neste post.

Para não finalizar fora do tópico e como o pessoal que visita meu blog não é brincadeira e lê mesmo, uso o tempinho que sobra para sugerir os capítulos “Polaco” (p. 19), “Lucas” (p. 96) e “Bernardo” (p. 83, 101 e 115). São demonstrações claras do virtuosismo nada gratuito de Carol neste Timbuka, ops, Sinuca embaixo d`água.