Carol Bensimon fala sobre ‘Todos nós adorávamos caubóis’, sobre literatura, sexo e mais

Carol Bensimon fala sobre ‘Todos nós adorávamos caubóis’, sobre literatura, sexo e mais

Publicado em 18 de janeiro de 2014 no Sul21

Road book gaúcho, mas não gaudério | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Cora e Julia foram mais do que simples amigas durante a faculdade. A relação foi subitamente interrompida pela partida de Julia para Montreal. Tempos depois, Cora também foi ao exterior a fim de estudar moda em Paris. Certo dia, Cora liga seu computador e lá está um “Oi, tudo bem?, há quanto tempo” de Julia. Cora responde e logo está passeando pelo quarto de Julia através do Skype. Numa das cenas mais belas de Todos nós adorávamos caubóis, Julia caminha pelo apartamento, mostrando à Cora suas coisas e a neve de Montreal. Entre outras coisas, ela mostra, através da janela, o semáforo da esquina, que passa do vermelho para o verde, permitindo aos carros se moverem entre as árvores secas da cidade.

Elas combinam o reencontro. Pretendem fazer a viagem sempre adiada pelo interior do Rio Grande do Sul. A viagem seria feita sem planejamento, apenas com um mapa levando-as de uma cidade a outra. As duas trazem bagagens e expectativas distintas. Cora viera para assistir o nascimento do irmão — seu pai recém casara com uma jovem de sua idade, algo que Cora parece aprovar com reservas –, enquanto Julia parece estar ambivalente em relação ao namorado estrangeiro. O que uma espera da outra?

Enquanto isso, vagam sem objetivos pelo interior gaúcho. Um interior que não aparece da forma gaudéria, alegre e hospitaleira das histórias do 20 de setembro. Não que apareça hostil, apenas mostra-se estranho, sem pontos de contato com a urbanidade das moças. Mesmo que Julia tenha nascido em Soledade, elas são e estão de fora.

Após Pó de Parede e Sinuca embaixo d`água, o excelente Todos nós amávamos caubóis é o terceiro livro publicado pela porto-alegrense Carol Bensimon. Ela falou ao Sul21 no bar Tuim, tradicional local da Gen. Câmara. Por algum motivo, o formalismo habitual das entrevistas foi logo abandonado, tanto que a primeira interrogação foi desferida por Carol e não pelo entrevistador, o que transformou tudo numa agradável conversa.

Road book gaúcho, mas não gaudério | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: A ideia de falar contigo surgiu quando Todos nós adorávamos caubóis chega a Antônio Prado. Mais exatamente quando Cora e Julia saem da cidade e vão até aquela estátua, a dos caras que introduziram a bateria na música gauchesca.

Os Irmãos Bertussi incorporaram a bateria ao baile gaúcho

Carol Bensimon: Não é que outro dia um cara no Facebook me compartilha uma foto com o monumento, botando: “Ah, a Carol fez uma bela homenagem” e daí os caras da música gaudéria começaram a comentar. Mas a ideia da entrevista veio dali por quê?

Sul21: Porque a literatura e o jornalismo gaúcho não costuma ser irônico. A tua referência não é especialmente ácida, mas também não é nada laudatória. Naquela cena tu achas graça da estátua, isso está na cara. Mas comecei a entrevista respondendo uma pergunta tua…

Carol Bensimon: Sim, a personagem faz gracinha com a história da bateria na música gaudéria. Meus personagens têm claramente uma visão urbana que estranha o interior, disso eu não tenho dúvida. Um jornal do Recife escreveu algo sobre “uma visão muito elitizada, uma visão muito burguesa”, me acusou de estar tripudiando sobre aquelas pessoas. Não é nada disso, mas é óbvio que minhas personagens são essencialmente urbanas, sentem-se mais ligadas e melhor numa grande capital do mundo do que propriamente no interior do seu estado. Trabalhei esses estranhamentos. Acho que, excetuando-se o romance histórico, a literatura das últimas décadas não está olhando muito pro interior.

“As pessoas do interior não estão interessadas em ‘serem do interior'”| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Na verdade, eu andei lendo Assim na Terra, do Metz. Ele fala de forma muito poética do homem do campo, é uma viagem de toda a vida sobre um cavalo, por assim dizer. O teu livro contrasta muito neste aspecto. Há a estátua, depois tu falas de toda a energia posta na customização de carros, da baixa qualidade dos vinhos brasileiros, de Cambará — “onde as pessoas caminham entorpecidas” –, do deserto de Minas de Camaquã, há a briga entre a Julia e o irmão fazendeiro.

Carol Bensimon: Uma coisa que descobri, quando me dispus a fazer essas viagens é que, na verdade, as pessoas destas cidades do interior não estão muito interessadas em “serem do interior”. Seu ideal é o de se afastar da aura de bucolismo. Para elas, quanto mais urbanas elas parecerem, melhor. Por exemplo, as casas históricas de Antônio Prado… Lá, houve uma grande polêmica que não está no livro. Nos anos 90, aquelas casas foram tombadas. São casas de madeiras enormes, bem típicas. As pessoas não queriam mantê-las. Teve gente que botou fogo na própria casa. O mesmo não aconteceu há pouco em Santo Ângelo? Queriam tombar várias casas e as pessoas estavam revoltadíssimas. O pessoal não tem muita consciência histórica. Querem derrubar e “modernizar” tudo.

Sul21: Acabam destruindo também uma possibilidade de turismo.

Carol Bensimon: Sim, a maioria das cidades é feia. São piores que Porto Alegre. Porto Alegre pelo menos é em parte arborizada. Essas cidades médias, como Santa Maria, não tem uma grande identidade visual.

Sul21: Qual é teu grau de interesse em urbanismo? Tu me escreveste no Facebook que estava lendo apenas livros de urbanismo.

Carol Bensimon: É uma coisa pessoal. Tanto que apareceu no meu primeiro livro (Pó de parede, 2008). Não urbanismo, mas arquitetura. Todos os contos eram centrados em coisas arquitetônicas. Meu interesse mais em cidades deve ter vindo da minha experiência em Paris. Lá há um pensamento, um planejamento que está ausente no Brasil.

“As memórias de cada capítulo estão relacionadas com acontecimentos presentes” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Vamos voltar ao livro. A questão da estrutura.

Carol Bensimon: A estrutura é mais ou menos linear. É a viagem, mas dentro disso tem rememorações o tempo todo. Acho que é um pouco do meu estilo. Eu queria que ficasse essa coisa para a frente e para trás. Não estou inventando nada de novo. É mais ou menos como funciona a memória, apesar de não ser como um fluxo de consciência. Vou montando.

Sul21: Como um mosaico?

Carol Bensimon: Tu achas que funcionou como um mosaico? Onde tudo fecha?

Sul21: Não é que feche. É um livro construído com cuidado. Eu queria saber se tu organizas a colocação dos mosaicos ou se tu os joga por livre-associação.

Carol Bensimon: Via de regra, as memórias de cada capítulo estão relacionadas com os acontecimentos presentes. Mas algumas coisas foram por tentativa e erro. Por exemplo, onde colocar a parte do pensionato? A festa à fantasia também foi uma cena que eu não sabia muito bem em que ponto ela deveria ser revelada.

“Acho que o livro tem um quê de esperança” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: E Thelma e Louise?

Carol Bensimon: Quando eu estava escrevendo o livro, li uma obra teórica sobre road movies. O livro é Driving Visions, de David Laderman. Ele fala que essas narrativas de estrada foram inauguradas com On the road, de Kerouac. Mas aí o cinema se apropriou do gênero. São analisados vários filmes divididos por décadas e vai mostrando como o gênero muda. O fato é que raramente as mulheres protagonizam esse tipo de narrativa. Thelma e Louise é quase inaugural nesse sentido. Mas fico muito intrigada com o final do filme. Dá pra fazer uma leitura feminista e também o contrário. E vários desses filmes acabam em morte. Eu tinha preocupação em não fazer um final assim.

Sul21: Mas não é um livro alegre, na minha opinião.

Carol Bensimon: Não sei. Acho que ele tem um quê de esperança. Tem a coisa da viagem, do movimento e da ideia de liberdade. Acho luminoso. Mas, também concordo, lá tem uma coisa melancólica: a questão de que a viagem acontece com anos de atraso.

” Quando escrevi, não existia ‘Azul é a cor mais quente’ | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Sim, há muita coisa fora do lugar. A hora escolhida para a viagem não é adequada, segundo a família. Quando Julia encontra sua família é um horror completo. Mas me fala sobre isso aqui na página 19. “Era como se você passasse meses cogitando pintar o cabelo de azul, e de repente percebesse que tanto tempo cogitando, analisando, imaginando, tinha acabado por satisfazer por completo seu desejo de rebeldia”. Tu já tinhas visto Azul é a cor mais quente quando escrevesses isso?

Carol Bensimon: (risadas) Hoje eu pensei nisso. Quando escrevi, não existia o Azul cor mais quente. O filme apareceu em maio em Cannes. Ele ganhou o festival, li a história e fiquei muito empolgada para ver o filme. Mas nessa época eu já tinha terminado o livro. Então é casual. Pura coincidência. Mas mesmo se não tivesse isso do Azul, já daria pra fazer uma certa conexão com o filme. Eu achei muito universal, me identifiquei. Se tu não tiveres preconceito, é uma história de amor. Por exemplo, aquela cena das duas no café, a tentativa de reconciliação. Aquilo é foda. E quem nunca vivenciou uma cena daquelas? Tu vais lá com a pessoa e suplicas mesmo.

Sul21: Onde entra, na tua opinião, a questão da militância gay?

Carol Bensimon: Não sei se ele entra na militância gay. Eu acho que ele entra mais na experiência particular de quem vai pegar o livro e se identificar com aquilo em termos de sexualidade feminina ambígua. Acho que a gente está num momento posterior a isso, desse rótulo de literatura “gay”. Talvez fosse um escândalo lançar o livro há 10, 15 anos. Eu tenho uma pequena lista de filmes onde duas gurias se envolvem. Pequena lista de três. (risadas). Tem um filme argentino chamado El niño pez, de Lucia Puenzo. Ela também fez aquele filme que se chama XXY. Nos dois filmes, ela trabalha essa questão da sexualidade, de gênero. Depois tem um filme ótimo, francês, chamado Lírios d’água, de Céline Sciamma. É um universo curioso porque são duas meninas que fazem nado sincronizado e uma delas está meio em negação e a outra sofre.

“Ela fala num determinado momento que talvez se sinta mais atraída por meninas supostamente heterossexuais do que por lésbicas, e isso cria um certo problema” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Queria que tu comentasses a frase: “Minha atração pelo sexo feminino era uma doce aventura e ao mesmo tempo uma condenação ao mais claustrofóbico dos universos”.

Carol Bensimon: Vamos lá. Acho que a personagem vê o exercício de seu lado gay como uma certa transgressão. Ao mesmo tempo há uma limitação, prisão, sei lá como diz, um universo claustrofóbico. Ela fala num determinado momento que talvez se sinta mais atraída por meninas supostamente heterossexuais do que por lésbicas, e isso cria um certo problema. Ela fala nisso. Ela queria ter uma chance com qualquer pessoa que encontrasse na rua. Com a frase, ela também se refere à questão familiar. Não chega a ser o drama do livro, mas a família não encara os fatos. O livro fala mais das questões mal resolvidas entre Cora e Julia. Em nenhum momento a Cora chega a confrontar a Julia. Nem no passado, nem na viagem. Não há do tipo ”Tá! O que é isso que a gente tá tendo?”. Mantém-se uma ambiguidade que tem o seu lado aventureiro e seu lado angustiante.

Sul21: Tu falaste numa sexualidade mais fluida que seria uma característica de nosso tempo. Tu achas que esse tipo de sexualidade fluída pode ocorrer entre homens, assim como ocorre entre mulheres?

Carol Bensimon: Não, é mais difícil. Porque o papel está mais delimitado no gênero masculino. É uma coisa cultural. As gurias experimentam. Namorar uma guria e daqui dois ou três anos ela estar casada, com filhos… Ninguém vai achar isso tão estranho assim. Com caras não acontece isso. É uma coisa cultural, simplesmente. Dia desses, assisti a um documentário francês sobre bissexualidade. A maioria das entrevistas eram feitas na França, e aí já temos uma dimensão totalmente diferente, por exemplo, da bissexualidade masculina, até porque vários caras que participavam eram pessoas do ramo das artes e se declaravam bissexuais. Eram figuras públicas e tal. Certamente isso ainda não chegou ao Brasil. A noção de masculinidade varia de país para país. O francês pode parecer efeminado e ser hétero.

Sul21: Há preconceito das lésbicas contra as bi?

Carol Bensimon: Sim, bá, total. A gente tem essa sigla LGBT e, nos anos 90, lembra que era só GLS? O B está ali só como uma letra. Acho que há um preconceito forte dentro da comunidade, em vários sentidos. Primeiro, parece que os bissexuais são meio que “traidores” do ponto de vista das feministas. Então podem ser mais ainda entre as lésbicas feministas. Que mais posso dizer sobre isso? Há também este rótulo de promiscuidade… Vários gays e lésbicas acham que bissexuais são gays enrustidos que não saíram do armário.

Sul21: Há meninas que ficam com gurias em festas, mas se dizem hétero…

Carol Bensimon: Aí acho que entra outro fator que é muito contemporâneo, que é a coisa das gurias ficarem para chamar atenção dos homens. Aí é muito confuso. Há diferenças sobre como são vistas as mulheres bi e os homens bi. O senso comum acha legais mulheres bi – tem a ver com a pornografia. Parece que as mulheres estão fazendo um espetáculo pros caras. São como nos filmes pornô. As mulheres ficam se pegando, mas só enquanto o cara não chega pra comer. É sempre uma questão de preliminares. A meninas a que tu te referiste são chamadas pelo termo heteroflexíveis. A pessoa se considera hétero mas as vezes ela fica com o mesmo gênero. Então, várias dessas meninas das festas podem ser heteroflexíveis, mas não se consideram assim.

Sul21: Evidentemente, o nome da narradora, Cora, é uma brincadeira com teu nome, né? Coloca o L e muda o lugar da vogal e chegamos à Carol.

Carol Bensimon: Não, não foi de propósito. É sério.

Sul21: Tu vais querer me vender essa??

Carol Bensimon: É que se eu contar a história de verdade vai ser pior ainda.

Sul21: Vai ter que contar!!!

O mistério do nome Cora… | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Carol Bensimon: Em off só, realmente não tem nada a ver.

(…)

Sul21: Tu me falaste, também em off, que tinha algum plano pro livro de virar mini-série ou filme.

Carol Bensimon: Eu vendi os direitos. Eu vendi para a RT Features do Rodrigo Teixeira. Ele compra bastante coisas contemporâneas. Ele comprou o Sinuca embaixo d`água.

Sul21: Não o Caubóis?

Carol Bensimon: O Caubóis também. Mas primeiro ele comprou o Sinuca. Ele comprou Caubóis antes do livro ser escrito.

Sul21: Isso tem tempo de validade?

Carol Bensimon: Se não me engano é um contrato de dez anos. É um pouco angustiante, porque não sei se virar mesmo filme. As pessoas dizem que daria um puta filme. É difícil saber quando vai sair. O Sinuca ainda não saiu. Mas tu viu o book trailer?

Sul21: Não.

Carol Bensimon: Sério?

Sul21: Eu vi só o book trailer do livro do Marcelo Backes, O último minuto, muito bom.

Carol Bensimon: Tu tens que ver. É incomparável, é uma coisa muito foda que a Liliana Sulzbach fez. É um filme. É um trailer de filme. E vê-lo deu ainda mais vontade de ver em filme. Até porque não sei até quando aqueles lugares vão durar.

Sul21: Como é que é Minas de Camaquã? O que é aquilo? É abandonado? Tipo a Paraty de antes dos anos 70?

Carol Bensimon: A comparação não é muito válida. Era uma cidade de mineração que tinha vivia da exploração de cobre desde o século 19, com os belgas.

“A impressão que eu tenho é que todas as cidades do interior seriam daquele jeito se elas não tivessem se descontrolado completamente em termos de planejamento urbano, sabe?” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Onde fica isso?

Carol Bensimon: Entre Bagé e Caçapava. O Baby Pignatari era o dono das minas da Companhia Brasileira do Cobre (CBC). Eles construíram essa cidade pros mineiros e pras pessoas que trabalhavam. Então foi uma cidade planejada. Toda ela é circular, as ruas são circulares. Então num primeiro raio tu tens as casas dos engenheiros, depois as dos mineiros, etc. As casas vão ficando mais simples. Acho que a população era maior do que a de Caçapava. Lá tinha cinema, Caçapava não. E então acabou o cobre. Quebrou a Companhia. Daí, nos anos 2000, houve um leilão e eles venderam aquelas casas por um preço ridículo, 500 reais cada uma. Então essas casas voltaram a ser ocupadas como casas de fim de semana das pessoas que moram em Caçapava ou Bagé.

Sul21: Mas tem alguma coisa de atrativo lá?

Carol Bensimon: Sim. São aproximadamente 500 habitantes. A impressão que eu tenho é que todas as cidades do interior seriam daquele jeito se elas não tivessem se descontrolado completamente em termos de planejamento urbano, sabe? O local tem uma aura, uma personalidade. Irei novamente para Minas de Camaquã agora no final de janeiro.

Sul21: Como é que tu descobriste?

Carol Bensimon: Uns amigos me falaram. Porque ali perto tem umas formações rochosas que chamam de guaritas. Eles começaram a falar desse lugar. E daí eu conheci uma leitora de Caçapava que entrou em contato comigo e quando eu falei das Minas ela disse que a família dela tinha casa lá e que poderíamos fazer uma visita. Foi a primeira vez. No book trailer, fomos pra lá. Tu me perguntaste sobre os atrativos. O atrativo é a paisagem que é  muito massa, tem lugares pra subir. Há o rio Camaquã que passa ali e tem toda essa estrutura abandonada. As casas têm certa manutenção, mas os prédios da mineração estão bem detonados.

“Antes tu mostrava pra mãe, pro namorado, pro irmão. Nesse sentido as oficinas são importantes” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: E os OVNIs de lá…?

Carol Bensimon: Ah, sim, tem a sede do projeto Portal lá.

Sul21: Tem mesmo?

Carol Bensimon: Sim. É enorme. Pavilhões.

Sul21: Tu conversaste com os caras?

Carol Bensimon: Não. Nunca vi ninguém lá.

Sul21: Mudando utra vez de assunto, me diz uma coisa, o que tu achas das oficinas literárias? Tu participaste da oficina literária do Assis Brasil, tu achas que ela acrescentou algo pra ti?

Carol Bensimon: É sempre meio que clichê essa resposta, sabe? Porque encurtou caminhos talvez. Indicou leituras, apresentou teorias. Eu poderia ter intuído tudo, mas talvez demorasse mais tempo assim. E, depois, talvez o mais importante seja a troca com o Assis e com os colegas, porque chega um momento em que uma pessoa escreve um conto e todos têm que analisar aquele conto. A aula inteira debatendo. Antes disso tu mostrava pra mãe, pro namorado, pro irmão. Nesse sentido é importante.

“Um cara me detonou da Folha de São Paulo. Falou que era previsível” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Como tem sido a repercussão do livro?

Carol Bensimon: Não sei se tu conheces o Skoob, aquela rede social? Às vezes entro pra olhar. Primeiro tem uma discrepância absurda entre o número de homens e mulheres que estão lendo o livro. Mulheres são mais de 80%. Se pegar meus outros livros, é mais equilibrado. E tem esses blogs com resenhas. Blogs sobre livros, muitos de fantasia. Eles leem o livro e gostam, é curioso. Mas um cara me detonou da Folha de São Paulo. Falou que era previsível. Tudo bem.

Sul21: Eu fico surpreso de alguém achar previsível, porque o previsível é quando tu provocas um conflito e dá um final esperado. Não é o caso do teu livro. E esse negócio da música no livro? Tu usas como recurso expressivo ou o quê? A Cora num momento diz “que as músicas gaudérias estão tão longe dela quanto a música celta, batuques aborígenes “.

Carol Bensimon: Eu acho que eu uso a música um pouco como frustração, porque eu queria que o livro tivesse trilha sonora. Então cito uma série de músicas. Inclusive dou opiniões do tipo: “essa música abre o melhor disco do Led Zeppelin”. Tem um pouco a ver com o processo criativo. Eu postei uma playlist no Facebook e fez um tremendo sucesso, não sei por quê.

Sul21: Porque tem música boa, claro.

Carol Bensimon: Tu ouviste?

Sul21: Não, mas li e conheço várias.

A legalização da maconha é tema do ótimo ‘O Clube dos Jardineiros de Fumaça’, de Carol Bensimon

A legalização da maconha é tema do ótimo ‘O Clube dos Jardineiros de Fumaça’, de Carol Bensimon

LOGO BAMBO COM FUNDO AMARELO

Arthur perdeu o emprego em Porto Alegre. Acontece que plantava maconha em sua casa. No início, a produção tinha fins medicinais — ele apenas desejava diminuir as dores da mãe que sofria de câncer no útero. Porém, após a morte dela, Arthur seguiu produzindo para uso pessoal. Um dia, foi denunciado e a polícia chegou fazendo confusão. O fato foi para os jornais e Arthur, professor de História num colégio particular, acabou demitido. Afinal, não ficaria bem para a instituição manter um professor com esta “mácula” no currículo.

Então, em vez de estudar para fazer concursos ou um doutorado, ele procura recomeçar a vida nos EUA, no condado de Mendocino, norte da Califórnia. Esta região é uma das maiores produtoras de maconha nos EUA. O produto, legalizado para uso recreativo em 2016, movimentara um comércio ilegal de 23,3 bilhões de dólares em 2015. Neste mesmo ano, foram apreendidos quase três milhões de pés de maconha na Califórnia.

Tem na Livraria Bamboletras
Rua General Lima e Silva, 776 Lj 3
Aberta diariamente das 10 até às 22h.
Encomendas pelo tel. 51 3221 8764
ou pelo e-mail [email protected]

Talvez buscando correspondência com o produto-tema do livro, o texto de Bensimon é descansado e envolvente. O livro parece uma série de crônicas que contam uma história interessantíssima. O cruzamento de temas e a riqueza de detalhes resulta em um bem-realizado e ambicioso projeto, que combina ficção, tese e história. A narrativa está organizada entre a vida californiana e porto-alegrense de Arthur. Também há capítulos dedicados a personagens locais — reais e fictícios — que dão sentido à luta política e cultural que marcou a descriminalização.

O Clube dos Jardineiros de Fumaça Carol Bensimon

Carol, indo e vindo temporalmente, vai construindo a complexa teia de informações e influências que formam o panorama da região. O livro é tanto uma história pessoal, como um retrato muito sedutor do que sobrou da geração hippie, assim como uma inteligente defesa da descriminalização da maconha. Também temos belos retratos do segundo grupo de personagens: o velho Dusk, a solitária Sylvia e Tamara, a namorada norte-americana de Arthur.

Mendocino é um local rural, pouco povoado e nada conservador. Também há um curioso conflito de gerações, onde os velhos são pessoas da contracultura dos anos 60 e 70 que buscaram modos de vida alternativos — Orgulhoso de ser tudo o que a direita odeia, diz um adesivo na lataria de um carro –, e que acabam por sugestionar os mais jovens, mesmo que seja apenas para criar um Airbnb numa antiga comunidade hippie.

Com tantos temas disponíveis e tendo feito vasta pesquisa, Bensimon acerta ao utilizar capítulos curtos, às vezes até intercambiáveis, criando uma bonita estrutura rarefeita, brilhante e original retrato da geração hippie e de seu legado.

Para criar O Clube, Carol pesquisou por três anos e viveu seis meses no Condado de Mendocino, onde alugou uma cabana na zona rural. Seus outros livros de ficção são Pó de Parede (Não Editora, 2008), Sinuca embaixo d’água (Companhia das Letras, 2009) e Todos nós adorávamos caubóis (Companhia das Letras, 2013).

Carol Bensimon | Foto: www.sescto.com.br
Carol Bensimon | Foto: www.sescto.com.br

Literatura e sensibilidade feminina

Literatura e sensibilidade feminina

Publicado em 26 de janeiro de 2014 no Sul21

Houve tempo em que elas eram poucas, houve tempo em que Erico Verissimo dizia com certa ironia à Lygia Fagundes Telles que era bela demais para ser escritora. Este panorama, porém, alterou-se completamente. Um tanto irresponsavelmente, pinçando nomes aqui e ali, temos uma nominata nada desprezível de escritoras mulheres no Brasil. Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria Alice Barroso, Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles, Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César, Hilda Hilst, Adélia Prado, Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Maria Adelaide Amaral, Flora Sussekind, Leyla Perrone-Moisés, Cora Coralina, Walnice Nogueira Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Marilena Chauí, Zulmira Ribeiro Tavares, Patricia Melo, Jane Tutikian, Fernanda Young, Claudia Tajes, Carol Bensimon, Mariana Ianelli.

O fato é que há muito tempo o termo “Literatura de Mulherzinha” tornou-se anacrônico. Apesar da dificuldade para caracterizar os elementos que fazem a literatura feminina ser diversa, os leitores reconhecem sua poética, parecendo pressentir seus elementos próprios: de modo geral, acertaremos dizendo que ela é habitualmente mais sensorial, poética e livre. Não se pode falar em gênero, pois os estilos e as temáticas variam muito. “Não se pode dizer que a literatura feminina seja sempre feita por mulheres, assim como boas narrativas gays podem ser escritas por heterossexuais e boas narrativas carcerárias podem ser escritas por gente que nunca esteve presa. Ao menos não há nada, nenhuma barreira física ou moral, que impeça isso.”, escreveu Nelson de Oliveira. “Da mesma maneira que a literatura policial não é a literatura escrita apenas pelos policiais, a literatura feminina não precisa necessariamente ser a literatura escrita apenas pelas mulheres. É certo que há policiais escrevendo literatura policial, mas também há professores, psicanalistas, filósofos… O mesmo acontece com a literatura feminina da maneira como eu a vejo: há homens e mulheres trabalhando dentro dos limites desse gênero”, completa.

Mas, se hoje Lídia Jorge é acompanhada de muitas outras, tivemos precursoras seminais. E a maior delas foi Virginia Woolf, que escreveu um curioso — e muito feminino — livro fundador.

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Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina
Virginia Woolf: a teórica e incentivadora de uma literatura feminina

Um teto todo seu (A Room of One`s Own, 1929) é um dos mais surpreendentes livros da célebre ficcionista inglesa Virginia Woolf. A primeira surpresa é o fato de não ser ficção; a segunda é a absoluta ousadia no trato do assunto abordado: o feminismo.

O livro nasceu a partir de duas palestras chamadas “As mulheres e a ficção”, proferidas por Virginia para uma plateia essencialmente feminina da Sociedade das Artes, na Londres de outubro de 1928. O texto de Virginia tem a qualidade estupenda de seus livros da época. Mrs. Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927) e Orlando (1928) foram seus predecessores; As Ondas (1931) deu continuidade à série de grande livros. Encrustado na sequência mais importante de romances de Virginia, o ensaio Um teto todo seu não decepciona de modo algum. O livro tem cerca de 140 páginas. Não pensem que ela o leu por inteiro nas duas palestras – algo como 70 páginas por dia; na verdade o texto foi bastante ampliado para publicação logo após as palestras.

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Leve impressão

Carol Bensimon pergunta no Facebook quantos estarão em Porto Alegre no Carnaval. Poucos respondem. Vamos ser uns 26 em Porto Alegre, acho.

A previsão do tempo indica máximas de 29 graus para o sábado, 31 no domingo e 33 e 34 para a segunda e terça. Isto significa que os dois últimos dias do feriadão serão insuportáveis. Estou de plantão na cidade.

Tenho a leve impressão de que estarei entre trabalhadores plantonistas, doentes e carnavalescos irrecuperáveis. Espero que o super e os cinemas abram e alguém telefone.

Nos blogs, só os internacionais estão sendo atualizados decentemente, além da equipe do Nassif, que dá notícias no futuro do pretérito — a China teria… Kadafi estaria… E isso sem parar. O Fernando Guimarães manda eu ler que o Wikileaks tem documentos que garantem o Alckmin como membro do Opus Dei. Curti, mas acho que já sabia.

Tenho que dar um jeito de tornar meu Carnaval produtivo. Tenho que terminar aquele romance, mas penso mesmo é na beira do Lago Guaíba e em correr por ali. Há uns aparelhos novos que queria experimentar…

Ah, chega um post brasileiro! É de Charles Kiefer. Sintam só a animação do moço. Não é contagiante? Aliás, por falar em contagiante, mas agora sem ironia, leia o que o Idelber — que nunca erra em suas indicações — está mandando a gente ler. Há que lhe obedecer? Sim, claro, como não?

Carol Bensimon vence o 1º Campeonato Gaúcho de Literatura

Carol Bensimon e seu Pó de Parede venceram a 1ª edição do Campeonato Gaúcho de Literatura na final contra Veja se você responde essa pergunta, de Alexandre Rodrigues. Li ambos os livros, assim como alguns outros que foram eliminados pelo caminho. A presença dos dois na partida decisiva e a vitória de Carol foram merecidas. Apenas livros de contos participaram nesta edição. A próxima edição focará romances.

Foi uma boa decisão a de ter ido ao StudioClio anteontem (28/12)  às 18h a fim de assistir o jogo final através da palavra ao vivo e a cores dos três árbitros. O juiz e seus bandeirinhas — não pensem que vou distribuir os cargos entre eles — fizeram um excelente trabalho. Carlos André Moreira, Luiz Gonzaga Lopes e Marcelo Frizon foram bastante competentes nas fundamentações de seus julgamentos,  assim como o foram o quarto e quinto árbitros — Lu Thomé e Rodrigo Rosp (o qual parece não ter um link para chamar de seu) — na organização do imenso torneio de seis meses e 51 jogos.

Foto de Marcelo Ribeiro - Jornal do Comércio
Francisco Marshall - Foto de Marcelo Ribeiro (Jornal do Comércio)

No âmbito de Porto Alegre, o StudioClio firma-se como o local perfeito para o indispensável diálogo culto e a presença da cerveja Coruja serve para como oportuno e delicioso catalisador de debates. Só não entendi o motivo que levava o curador do local, Chico Marshall (acima), a desejar que eu me embriagasse, servindo-me irrecusáveis Corujas uma atrás da outra, como punhaladas de louco.

Mas tergiverso. Se a proposta do projeto era a de provocar o debate sobre a produção local, esta foi alcançada com sobras e só a tímida  divulgação impediu um sucesso maior do Campeonato. Digo isto porque acabo de escrever no Google “Campeonato Gaúcho de Literatura” e a primeira referência encontrada é a deste prestigioso blog de sete leitores, sendo que a segunda é a do árbitro Carlos André Moreira. Se escrever “Gauchão de Literatura”, o primeiro a ser encontrado é o blog de Antônio Xerxenesky e o segundo é novamente a do blog bi-vice de Carlos André. Estranho.

Foto: Revista O Grito!
Foto: Revista O Grito!

Não discordei do julgamento, mas estava com muita vontade de levantar o braço e interromper os votos para fazer perguntas e encher o saco. Sim, pois eles disseram que o livro de Alexandre Rodrigues seria mais experimental e o de Carol mais, assim, convencional, com construção rigorosa de personagens e outros que tais que caracterizariam uma literatura mais “enquadrada”. Se não disseram isto com todas as letras, deram a impressão de terem dito, o que não é a mesma coisa, mas provoca o mesmo efeito. Ora, ora, acho que o livro do Alexandre é mais ousado na formatação dos 14 contos, alguns curtíssimos, outros verdadeiros enigmas, outros efetivamente belos; porém Carol é absolutamente original e desenquandrada na realização de um original e poético trabalho de linguagem que nunca poderá ser chamado de clássico.

Mesmo a construção dos personagens no(s) livro(s) de Carol são feitos na forma mais de mosaicos faulknerianos do que na de um tijolo balzaquiano. O problema é que a Carol é densa e o Alexandre é rarefeito. Quem gosta mais de densidade, de um trabalho voltado para contar a história de forma mais e mais completa, vai com Carol; quem se seduz com formas originais, com histórias cheias de detalhes literários surpreendentes, vai com Alexandre. Ou será que é antiquado ser denso? Nada disso significa que um seja muito melhor do que o outro, significa apenas que, se estamos comparando um com o outro, devemos dar-lhes as devidas qualidades.

Eu evitei escrever sobre o livro do Alexandre porque ainda tenho aquele pingo de bom senso que me dizia estar acima ou abaixo do que eu tinha lido, nunca em sintonia. Ou seja, estava mais ou menos como o juiz Luiz Gonzaga Lopes, que disse num momento que não gostava dos contos de uma página — e os há no livro do Alexandre. São minoria, mas há. Um conto de uma página que não é uma piada ou altamente poético me deixa brocha por dez páginas. Não sei é também o caso do Gonzaga, falo por mim. Fato análogo ocorreu quando li V.S. Naipaul. Eu sabia que era bom, mas que eu não era o leitor ideal. Se me colocarem na parede, direi que que não gosto do trinitário tão mais inteligente e capaz do que eu, mas como aqui posso abrir mão de fazer críticas àquilo que está  afastado de meu gosto pessoal ou que não compreendo, abro, ora.

Porém, o principal a ser destacado é que esta é uma geração que, apesar de demonstrar tremenda educação e imensos cuidados para não ferir suscetibilidades, começa lentamente a desprezar o compadrio e os elogios vazios para substituí-los por algum debate. As sete pessoas que leem meu blog sabem o quanto sou bakhtiniano e amigo de Platão: a natureza e o habitat das ideias, onde elas vivem e se transformam é durante o diálogo, e elas ficam ainda mais vivas e melhores ainda com Corujas e um curador louco para nos embebedar.

Pois a gente só sabe agora o quanto nos fazia falta um StudioClio.

Foi apenas um sonho, de Richard Yates

Foi a Carol Bensimon quem indicou este livro em seu twitter. Ela escreveu, naquele espacinho de 140 caracteres, algo como: “Richard Yates é o sujeito que mais conhece a natureza humana”. Obviamente. ela articularia melhor sua opinião num espaço menos informal do que a algaravia das tuitadas. Depois ela escreveu um post dizendo que tinha visto o filme e pressentira que havia uma grande obra literária por trás. Duvidei, pois vi o filme e não pensara em nada disso, mas ela é a Carol e achei melhor conferir. Quase larguei o livro de volta na estante da livraria ao ver a capa com o cartaz do filme de Sam Mendes e a exata tradução de Revolutionary Road para o português… A primeira edição brasileira recebera o nome de Rua da Revolução, porém o filme rebatizou o livro.

A história do livro já foi contada por Sam Mendes, porém a leitura do livro vale demais a pena. Richard Yates (1926-1992) trabalha na mesma faixa de realismo do bom cinema americado dos anos 50 e dos dramaturgos Tennessee Williams e Arthur Miller. Seu grande diferencial está no tratamento, na extrema dedicação que tem com os personagens. A vida interior de cada um deles, suas motivações, absurdos, brilhantismos e loucuras são analisadas minuciosamente. Se Yates não chega ao grau de detalhamento, às vezes demasiado, de um Juan José Saer, não fica muito longe do argentino em expor pacientemente seus pensamentos opiniões.

O resultado é extraordinário. O romance efetivamente merece o status de clássico que alguns críticos americanos lhe atribuem e é uma delícia para quem gosta dos artifícios literários. Yates faz maravilhas ao interromper personagens falastrões com sua narrativa e revela interessantes possibilidades de diálogos imaginários. Estes podem acontecer não apenas na imaginação dos personagens, mas também em pleno diálogo, quando o autor releva o que o personagem diria se agisse de acordo com os conselhos da mulher e o que ele realmente disse.

Esqueça o filme médio de Sam Mendes. O livro é estupendo, muito melhor do que a versão cinematográfica.  É uma história tristíssima, mas não adianta, sad songs make me happy.

Sinuca embaixo d`água, de Carol Bensimon

O segundo livro de Carol só perde para o primeiro na capa. Deve haver um critério muito misterioso de marketing que justifique o fato da Companhia das Letras ter escolhido aquela coisa sem graça num livro tão visual como Sinuca. Antes de qualquer consideração, porém, peço licença para observar meu próprio umbigo. Se a atmosfera do romance é a da morte de uma jovem (Antônia), do fim de um bar (causado pela estupidez dos moradores em torno), da poluição do lago e do abandono de uma criança, nada disso me afeta muito comparado com a alegria que me causa a realização de um romance tão belo. Você pode dizer que troco e-mails com Carol, que já a vi duas ou três vezes e que meu exemplar veio com dedicatória, mas tal admiração passa longe do compadrio que detesto. A alegria é um defeito de fabricação: quando, por exemplo, ouço a desesperada súplica de arrependimento diante de Deus de Erbarme dich, mein Gott da Paixão Segundo São Mateus, de J. S. Bach, fico feliz pela realização de Bach, mesmo sem ignorar o sentimento que o levou àquilo. Na verdade, sinto-me eufórico.

E o mesmo ocorreu comigo ao finalizar Sinuca, fiquei eufórico com um romance que trata, entre outras coisas, da morte. Ou seja, Sinuca embaixo d`água não é um bombom nem um passeio de pedalinho pelo lago. É o romance do luto de três personagens principais — o namorado Bernardo, irmão Camilo e o dono do bar next door Polaco –, de quatro pequenas histórias paralelas e do bar, do próprio bar, outro morto.

A linguagem de Carol Bensimon alterou-se em relação a Pó de Parede. Lá, havia uma poesia menos dura do que a de Sinuca. As frases encurtaram, muitas são intencionalmente vagas e o seu significado exato é dado pela experiência do leitor. Não obstante, não é uma leitura trabalhosa; é, isto sim, poética. Deu trabalho, certamente, pois Carol ainda precisava adaptar a linguagem a cada um dos personagens.

E cada personagem encara a morte de sua maneira. Bernardo é o namorado culto que percorre a via crucis da forma mais inteligente e “normal”. Houve uma grande perda e a hora é de sofrer, seja ouvindo jazz, seja ouvindo coisas desnecessárias da parte de amigos, seja jogando um jogo à morte. Temos a impressão de que a construção da linguagem foi dedicada a ele, mas ela adapta-se igualmente a Camilo, o irmão preterido pela morte. Drogadito light, faz-nada e mecânico amador, amava a irmã ao ponto de sentir um controlado ciúme de Bernardo. E Polaco é o dono do bar que coleciona perdas. Porém os maiores personagens do romance são Antônia, desenhada lenta e minuciosamente a seis mãos, e o bar, ponto de encontro e centro do ódio de certa cidade.

O bar não tem seu nome declinado pela autora mas…, meus amigos, é o Timbuka. Se eu soubesse disso, teria falado três vezes com Carol Bensimon. Conheci-a na quarta ou quinta-feira da noite de autógrafos (1). Voltei a vê-la no Parangolé, durante a ImpedFest (2) e, no dia seguinte, lá estava ela, talvez com uma garrafa térmica, quem sabe com uma cuia, tomando chimarrão com o namorado do lado esquerdo e as ruínas do Timbuka do lado direito. Não quis interromper, mas interromperia, se soubesse que o bar era um dos temas do livro — teria excesso de assunto!.

Então, para terminar esta resenha que já vai longe, digo que este é um dos melhores romances porto-alegrenses que li, até por trazer com delicadeza um dos fatos dos quais a cidade deveria se envergonhar: a derrubada do Timbuka. Algo de perto semelhante vi no final de 2005: participei de uma reunião do movimento da Rua Gonçalo de Carvalho, justo em essência, mas que conseguiu enxotar uma Orquestra Sinfônica em nome do ecossistema da rua… A exposição de burrices e a emissão de preconceitos devem ter sido análogas quando da discussão sobre a ação de uma retroescavadeira sobre um local era apenas um culto à felicidade, como o Franciel descreve neste post.

Para não finalizar fora do tópico e como o pessoal que visita meu blog não é brincadeira e lê mesmo, uso o tempinho que sobra para sugerir os capítulos “Polaco” (p. 19), “Lucas” (p. 96) e “Bernardo” (p. 83, 101 e 115). São demonstrações claras do virtuosismo nada gratuito de Carol neste Timbuka, ops, Sinuca embaixo d`água.

Pó de parede, de Carol Bensimon

Observação inicial: Quando peguei este Pó de parede, logo pensei: ih, autora gaúcha, lá vem confusão. Acontece que alguns comentaristas sulinos ficaram nervosos quando achei apenas correto o romance Música Perdida de Luiz Antônio de Assis Brasil ou repetitivos alguns Noll. Há pessoas que vêem política, interesse e “intenções” suspeitas nessas curtas anotações diletantes a que chamo pretensiosamente de resenhas e cuja maior motivação é, singelamente, a de não esquecer o livro. Claro que nelas revelo o maior ou menor prazer que tive ao terminá-lo, mas, pô, nada de nervos, gente.

Carol Bensimon veio recomendadíssima: aposta de Luiz Ruffatto na Bravo!, artigo na Aplauso, além de elogios ouvidos aqui e ali a uma jovem escritora e é óbvio que comprei seu belo livro de estréia na Feira, obra da também gaúcha Não Editora.

Pó de parede é formado de três novelas na tradição de alguns volumes muito queridos meus: há as três clássicas de Tolstói na tradução de Boris Schnaiderman, Sonata a Kreutzer, A Felicidade Conjugal e A Morte de Ivan Illich; as três de Turguenev, O primeiro amor, Ássia e Águas primaveris; as três de Flaubert, Uma alma simples, A lenda de São Julião Hospitaleiro e Herodíade; as três de James, A lição do mestre, O desenho no tapete e A vida privada; ou seja, parece que os autores ou os editores gostam do formato do trio de novelas. Mas vamos ao livro.

A primeira surpresa é a inventiva prosa de Carol. Ela tem um pensado trabalho de linguagem em que toda rebarba fica de fora, mas o resultado não é daquele gênero no qual a inteligência e o suor do autor acabam por sufocar quem lê; não, o resultado é leve, coloquial e poético. Seus diálogos, por exemplo, são ótimos, transcritos de forma pouco convencional, variando entre o formato utilizado por Saramago, o de Pedro Rosa Mendes e disposições que parecem poesia, soltas no ar. O texto é pontuado por analogias muito próprias e femininas, distantes de quaisquer clichês ou influências reconhecíveis. Sim, Carol Bensimon é excelente escritora.

Todas as histórias tem o ponto comum de referirem-se a casas. É como um jazzista que repete o tema tocado pelo solista anterior para dar unidade à música. A primeira história, A caixa, é muito bonita. Dividida em capítulos cujos títulos são os anos em que se passa a ação, A caixa acaba por ser um mosaico de onde emerge clara a amizade entre Laura e a narradora. Falta céu é a melhor das três novelas. É curta mas trata de um grande número de personagens contra um triste cenário de construção-desconstrução. É uma novela nada esquecível, realista, de boa história, personagens bem construídos e polifonia arrebatadora. Capitão Capivara é bem humorado e simples, possuindo o clima triste de alguns filmes de Allen e Altman, com personagens insatisfeitos vivendo num estranho Sanatório Berghof que faz marketing adoidado.

Boa escritora, poética e delicada, Carol Bensimon não fala de seu umbigo, não se apóia apenas em sexo e violência e muito menos naquela autenticidade “do caralho”. Acho que só faz parte da Nova Literatura por fazer literatura e ser bem novinha. 26 anos, imaginem.