Hoje acordei pensando no Nelson Moraes — nada a ver com os dois outros itens do post. Pensava no Love and death. Vocês sete leram o conto prematuro? É mais uma obra de arte de nosso blogueiro maior.
Love and death
Era um continho bem, mas bem raquítico, nascido prematuro, sem condições ainda de ser divulgado nem lido. Daí o autor tê-lo colocado na incubadora: todos os dias ele vinha visitar o conto tão mirradinho, de arcabouço frágil, situações incipientes, diálogos padecendo de disritmia e falta de fôlego — tanto que respirava por meio de aparelhos, aqueles tubos e aqueles êmbolos tão grandes e barulhentos para um continho como ele. O autor enfiava a mão na incubadora pela abertura circular e, com a luva de borracha, tocava nos dedinhos do conto, que de tão miudinhos mal conseguiam se fechar na ponta do polegar dele. O autor sussurrava, quase cantando, quase mais pensando do que falando, “Um dia você vai ser incluído na antologia do século e nós vamos rir disso tudo”. E o autor gostava de achar que os dedinhos do continho davam uma apertadinha em seu polegar. Mas lá pelo segundo ou terceiro dia, enquanto pajeava o continho, o autor percebeu as enfermeiras rindo e cochichando, atrás do vidro da sala da incubadora. Então ele, que além de arrebatado era um autor suscetível a certo tipo de crítica, foi ver que tititi era aquele – e uma das enfermeiras não demorou a soltar que corria por aí que aquele continho, sabe, podia não ser dele. Mas — ela emendou — era só boato maldoso, imagina. De gente invejosa. Falou e foi embora. O autor sentiu o chão rodar e faltar ao mesmo tempo, a garganta entalar, e depois de uns cardíacos minutos voltou até a incubadora. Enquanto o sangue lhe voltava devagar ao rosto ele observava o continho mirradinho, de olhinho fechado, dormindo. E esperou, esperou, esperou até ficar tarde, até não ter ninguém por perto – aí foi à máquina de oxigênio da incubadora e nem hesitou para desligar. O barulho parou mas não de repente. O autor apagou a luz da sala, pegou o casaco e só então lembrou que tinha guardado no bolso um pacote. Um pacote contendo uma roupagenzinha para o continho, para ser colocada assim que pudessem ir para casa. Uma roupagenzinha pequenininha, engraçadinha, do tamanhinho exato do conto e que revestiria a criaturinha de um estilo e de um acabamento que fariam as visitas dizer “é a sua cara”. O autor olhou para trás, guardando no labirinto do ouvido o seco e esticado silêncio da máquina de oxigênio, foi até a lata de lixo, jogou o pacote e saiu do hospital. Lá fora a brisa carregada de motes para histórias de amor e morte circulava sem muita pressa, com alguma melodia e um tanto assim úmida.
Obs.: se este não estiver entre Os Macacos do Museu Britânico… Não, nada, só vou ficar surpreso.
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Desejamos as mulheres fisicamente pelo que são: as corcundas pela corcunda, as burguesas pelo perfume, as putas pelo mau gosto (alguns acham bom), as gordas pelas dobrinhas, as magras pelos ossos e saboneteira, as sardentas pelo braile, as bonitas porque são bonitas, as caolhas pelo olho sempre a boiar (ou pelo que agita) e as comuns porque a gente olha, olha, olha e encontra a beleza. Sonhamos invadir suas existências sem maiores delongas e, eventualmente, aspiramos a uma retirada com a mesma velocidade. Em algumas, viciamos; às vezes incorremos no grave erro de casar com elas. Um cantinho confortável, macio e quente em suas companhias é tudo o que desejamos.
Desejamos as mulheres abstratamente pelo que são: as moralistas pela virtude, as militantes pela militância, as alegres pela risada, as tensas pelo nervosismo, as choronas pelas lágrimas, as neuróticas pela loucura, as zangadas para provocá-las (sou bom nisso), as espevitadas por derrubarem tudo, as delicadas pelas promessas, as imprevisíveis pelas surpresas e as inteligentes por evitarem discutir a relação quando estamos cansados. Sonhamos com surpresas e telefonemas em horários estapafúrdios. Algumas pedem-nos explicações sobre conceitos fundamentais, como o futebol. Uma mesa de canto, um Bailey`s pós-prandial e suas vozes é tudo o que desejamos.
Tal como Truffaut, alguns de nós amam as mulheres.
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Ontem, um dia produtivo (e cansativo) de trabalho; a companhia de dois livros, um de Bolaño, outro de Stanišić; o Concerto Nº 3 para Piano e Orquestra de Béla Bartók nos ouvidos, este computador ligado. Terminado Bartók, para manter o padrão, fiz Bruno Cocset atacar a Suíte nº 6 para cello solo daquele cara. E agora, de manhã, Stravinski. Vida miserável.
Adoro ser uma dentre seus 7 leitores 😉
Forte abraço.
Famous last words
Fora d’água o peixe se contorcia; Tércio observava o acontecimento comparando-o com outro, um atropelamento que vira na Avenida Central, e depois o corpo do atropelado, em sua agonia soluçante. Há algum sentimento nele, que o procura; uma compaixão, um asco, uma pequena medida de desespero que o impede de agir. Será? Sua catatonia refletiria a carência de serotonina, dopamina ou qualquer outra química fundamental à ação, à elaboração das conjugações do desejo?
O peixe está morto, ou deve estar; ao menos não pula mais, está imóvel, enquanto Tércio, absorto, pensa estupidamente que ele mesmo é um sushi fatiado, sensaboria adorada por alguns cultores da carne crua e suas sutilezas associadas á raiz forte, molho shoyu, capim limão, gengibre, óleo de girassol e outros ingredientes. Como é cansativa a culinária! Logo terei que esviscerar e descamar esse pobre coitado, servível ao menos à refeição desse pobre velho que sou eu, mas para que tanto?
Na frigideira o óleo chegou à temperatura ideal para fritar o peixe, que Tércio cortou em postas, polvilhando nelas sal e pimenta do reino; envolveu-as com as claras batidas e depois com farinha de rosca; fatiou duas pimentas dedo-de-moça e as pôs na frigideira junto com as postas de peixe. Sentiu o aroma da fritura e que ela pedia um vinho branco bem mineral; juraria que as serotoninas e dopaminas ferviam nas malhas cerebrais, mas esse miúdo esforço prostrou-o, enquanto as postas queimavam.
Um macaco passeava-se à beira de um rio, quando viu um peixe dentro de água. Como não conhecia aquele animal, pensou que estava a afogar-se. Conseguiu apanhá-lo e ficou muito contente quando o viu aos pulos, preso nos seus dedos, achando que aqueles saltos eram sinais de uma grande alegria por ter sido salvo. Pouco depois, quando o peixe parou de se mexer e o macaco percebeu que estava morto, comentou — que pena eu não ter chegado mais cedo!
De Mia Couto.
Engraçado, li essa anedota por esses dias mesmo… terá sido num jornal?
Pode ter sido aqui, publiquei lá por fevereiro.
Vixe, minha memória reduziu pra dias o que aconteceu há meses… melhor levá-la ao laboratório.
nelson por nelson: ontem aqui em bh, nelson freire. debussy, villa-lobos, chopin, beethoven e schumann. não nessa ordem. abraços.
ah, o que eu queria dizer, tô tão distraída: faz um post sobre ele, faz?
não apareceu a segunda parte do comentário? fiquei parecendo doida.
mto boa a ideia sobre mulheres…
“— que pena eu não ter chegado mais cedo!”
o autuori poderia falar isso, com a mesma autoridade do macaco.
VICTOR,
conferi seu email na quarentena do bol. Recebi o livro e assim que tiver tempo, o lerei com sede! Obrigado, e um quebra costela para você!
Beleza, Charlles! Sorte sua que só seu email estava de quarentena. Aqui nos pampas, quem anda de quarentena, devido ao trabalho e certas atividades extra profissionais, sou eu. Abço!
Esse “Love and death” do Almirante já conhecia. Realmente, é uma obra-prima.
O conto não entra no livro. Culpe o Marconi Leal, que está fazendo a seleção (mode tirar-o-meu-da-reta on…) 😉
Genial o conto, também não conheica.
Sobre a parte das mulheres, fico pensando que a versão feminina seria bem diferente, algo como: desejamos os cafajestes para consertar, os infiéis para converter, os imaturos para transformar em homens, os bonzinhos para reclamar…
O Cara!