Belos acervos ou Where the fuck are these books?

Passei pela Saraiva da Rua da Praia e subi a Ladeira. Passei também pela Ladeira Livros, Nova Roma, Beco dos Livros e Estação Cultura. Cinco livrarias. Perguntei sobre cinco livros relativamente novos. As respostas:

1. Uma duas, de Eliane Brum (livro de 2011): não tinha.
2. Um livro por dia, de Jeremy Mercer (2007): não tinha.
3. Hitch-22, de Christopher Hitchens (2011): não tinha.
4. Cartas a um jovem contestador, de Christopher Hitchens (2006): não tinha.
5. Graciliano : Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos (2011): não tinha.
6. Ribamar, de José Castello (2010): não tinha.
7. Anna Kariênina, de Leon Tolstói (2005), edição da Cosac & Naify: não tinha.

Claro que se fosse caminhasse 18 quadras até a Palavraria ou 8 até a Bamboletras, encontraria todos ou quase. Mas como ficam os mortais que não têm livrarias próximas de qualidade média? Conclusão: melhor esquecer e comprar na internet mesmo.

(À tardinha, pretendo passar na Saraiva de um grande shopping para fazer o mesmo teste. É caminho de casa. Informo depois o resultado).

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O Grande Livro Doente de Machado de Assis

Memorial de Aires não é considerado um dos principais romances de Machado de Assis. A maioria fica com Dom Casmurro ou Brás Cubas e com o irretocável mosaico de contos. Até compreendo, mas prefiro o delicado Memorial. Provavelmente estou errado, pode tratar-se de simples idiossincrasia, porém, como velho leitor do Bruxo de Cosme Velho, vou tentar explicar minha opinião.

A publicação deste romance-diário ocorreu em 1908, ano da morte do escritor. O tema é quase nenhum. O Conselheiro Aires, que já havia narrado o romance anterior de Machado, Esaú e Jacó, escreve este diário-romance na posição de um mero observador da “ação” – e portanto não na posição de narrador onisciente -, observando as aventuras amorosas dos mais jovens e anotando de forma sedutora também outros acontecimentos a seu redor: amizades, pequenos casos, pequenos dramas, piadas.

O romance perpassa dois anos da velhice do personagem-autor; serenamente, ele leva o leitor com suas observações aleatórias de aposentado. Conta sobre o amor de Fidélia e Tristão, sobre a vida passada como diplomata, sobre leituras ou acontecimentos políticos, tudo sem muita ordem. O livro é quase destituído de enredo, descrevendo o final da existência de alguém muito experiente e perspicaz. O tom do Memorial fica entre a melancolia de quem está velho demais para conquistas amorosas e o bom humor indulgente da experiência. Parece uma crônica leve sem maiores objetivos mas é uma visão bastante amarga da solidão da velhice. Este paradoxo torna o livro irresistível para mim. O que esperar de um velho inteligente, aposentado, sem filhos e nada para fazer? Risonho e falsamente fútil, Aires vai habilmente descrevendo a vida dos amigos Dona Carmo e Aguiar, um casal sem filhos que toma a jovem Fidélia como se fosse sua filha e a vê mudar-se para Portugal com seu amor Tristão. Aires nos mostra a devoção com que o casal espera e recebe cada carta vinda de Portugal; a forma amiga e piedosa – ao mesmo tempo que irônica e crítica – com que Aires aborda o casal é encharcada da mais pura humanidade.

É evidente que Machado está, ao expor-nos Dona Carmo e Aguiar, expondo nostalgicamente a intimidade de sua própria vida com Carolina, a esposa de toda uma vida, recém falecida à época em que o romance foi escrito. Em grande parte, os méritos do livro estão na perfeita e contida descrição de seres tão pouco romanescos quanto o próprio Conselheiro Aires, Dona Carmo, Aguiar, Fidélia e Tristão, que aqui são cuidadosamente emoldurados por um mestre no auge de sua arte.

Talvez eu não tenha convencido você da qualidade do livro ou talvez minha avaliação seja um equívoco; então, para me auxiliar, invoco inesperadamente o depoimento do cineasta François Truffaut.

Truffaut criou a categoria dos Grandes Filmes Doentes. A definição deste tipo de filme está no parágrafo a seguir e reparem como ela serve para o Memorial. Peço-lhes que troquem as palavras relativas ao cinema por outras relativas à literatura. Por exemplo, troquem filme por livro, diretor por escritor, cinefilia por bibliofilia ou bibliofagia, etc. Com a palavra, François Truffaut, o diretor que amava os livros e um de meus heróis neste mundo:

Abro um parêntese para definir rapidamente o que chamo de um “grande filme doente”. Não é senão uma obra-prima abortada, um empreendimento ambicioso que sofreu erros de percurso. (…) Esta noção só pode aplicar-se, evidentemente, a diretores muito bons, àqueles que, em outras circunstâncias, demonstraram que podem atingir a perfeição. Um certo grau de cinefilia encoraja, por vezes, a preferir, na obra de um diretor, seu grande filme doente à sua obra-prima incontestada! (…) Se se aceita a idéia de que uma execução perfeita chega, na maior parte das vezes, a dissimular as intenções, admitir-se-á que os grandes filmes doentes deixam transparecer mais cruamente sua razão de ser. (…) Diria, enfim, que o “grande filme doente” sofre geralmente de um extravasamento de sinceridade, o que paradoxalmente o torna mais claro para os aficionados e mais obscuro para o público, levado a engolir misturas cuja dosagem privilegia o ardil de preferência à confissão direta.

Trecho da crítica de Truffaut sobre o filme Marnie – Confissões de uma Ladra, de Alfred Hitchcock. Retirado de Hitchcock / Truffaut – Entrevistas (Ed. Brasiliense – 1986).

O Memorial é isto mesmo. É um Grande Livro Doente. O ex-diplomata Aires é, certamente, o próprio Machado sexagenário. Tranqüilo, irônico e pessimista, goza sua aposentadoria escrevendo pequenos acontecimentos em seu diário. Nada de romanesco alterará sua existência e ele se compraz na companhia de seus velhos amigos e na observação dos jovens. O ambiente do livro é o mesmo de suas crônicas e até a relativa vergonha de sentir-se atraído por uma jovem viúva é descrita, ao lado do bom senso que o faz aconselhá-la a um casamento com um jovem. Trata-se de um calmo “extravasamento de sinceridade”. Porém… Claro que um livro assim move-se a passos de tartaruga e seu verdadeiro personagem deve ser o texto – no caso uma notável demonstração de virtuosismo literário talvez só repetível por alguém do porte de Henry James. Pode ser que a imobilidade e os gentis saraus de uma velhice esclarecida tenham afastado o público do livro, mas não afastou os loucos por Machado.

Para terminar, uma citação que bem demonstra o espírito de Memorial de Aires:

Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel coisas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão.

Machado de Assis, MEMORIAL DE AIRES

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