O Grande Livro Doente de Machado de Assis

Memorial de Aires não é considerado um dos principais romances de Machado de Assis. A maioria fica com Dom Casmurro ou Brás Cubas e com o irretocável mosaico de contos. Até compreendo, mas prefiro o delicado Memorial. Provavelmente estou errado, pode tratar-se de simples idiossincrasia, porém, como velho leitor do Bruxo de Cosme Velho, vou tentar explicar minha opinião.

A publicação deste romance-diário ocorreu em 1908, ano da morte do escritor. O tema é quase nenhum. O Conselheiro Aires, que já havia narrado o romance anterior de Machado, Esaú e Jacó, escreve este diário-romance na posição de um mero observador da “ação” – e portanto não na posição de narrador onisciente -, observando as aventuras amorosas dos mais jovens e anotando de forma sedutora também outros acontecimentos a seu redor: amizades, pequenos casos, pequenos dramas, piadas.

O romance perpassa dois anos da velhice do personagem-autor; serenamente, ele leva o leitor com suas observações aleatórias de aposentado. Conta sobre o amor de Fidélia e Tristão, sobre a vida passada como diplomata, sobre leituras ou acontecimentos políticos, tudo sem muita ordem. O livro é quase destituído de enredo, descrevendo o final da existência de alguém muito experiente e perspicaz. O tom do Memorial fica entre a melancolia de quem está velho demais para conquistas amorosas e o bom humor indulgente da experiência. Parece uma crônica leve sem maiores objetivos mas é uma visão bastante amarga da solidão da velhice. Este paradoxo torna o livro irresistível para mim. O que esperar de um velho inteligente, aposentado, sem filhos e nada para fazer? Risonho e falsamente fútil, Aires vai habilmente descrevendo a vida dos amigos Dona Carmo e Aguiar, um casal sem filhos que toma a jovem Fidélia como se fosse sua filha e a vê mudar-se para Portugal com seu amor Tristão. Aires nos mostra a devoção com que o casal espera e recebe cada carta vinda de Portugal; a forma amiga e piedosa – ao mesmo tempo que irônica e crítica – com que Aires aborda o casal é encharcada da mais pura humanidade.

É evidente que Machado está, ao expor-nos Dona Carmo e Aguiar, expondo nostalgicamente a intimidade de sua própria vida com Carolina, a esposa de toda uma vida, recém falecida à época em que o romance foi escrito. Em grande parte, os méritos do livro estão na perfeita e contida descrição de seres tão pouco romanescos quanto o próprio Conselheiro Aires, Dona Carmo, Aguiar, Fidélia e Tristão, que aqui são cuidadosamente emoldurados por um mestre no auge de sua arte.

Talvez eu não tenha convencido você da qualidade do livro ou talvez minha avaliação seja um equívoco; então, para me auxiliar, invoco inesperadamente o depoimento do cineasta François Truffaut.

Truffaut criou a categoria dos Grandes Filmes Doentes. A definição deste tipo de filme está no parágrafo a seguir e reparem como ela serve para o Memorial. Peço-lhes que troquem as palavras relativas ao cinema por outras relativas à literatura. Por exemplo, troquem filme por livro, diretor por escritor, cinefilia por bibliofilia ou bibliofagia, etc. Com a palavra, François Truffaut, o diretor que amava os livros e um de meus heróis neste mundo:

Abro um parêntese para definir rapidamente o que chamo de um “grande filme doente”. Não é senão uma obra-prima abortada, um empreendimento ambicioso que sofreu erros de percurso. (…) Esta noção só pode aplicar-se, evidentemente, a diretores muito bons, àqueles que, em outras circunstâncias, demonstraram que podem atingir a perfeição. Um certo grau de cinefilia encoraja, por vezes, a preferir, na obra de um diretor, seu grande filme doente à sua obra-prima incontestada! (…) Se se aceita a idéia de que uma execução perfeita chega, na maior parte das vezes, a dissimular as intenções, admitir-se-á que os grandes filmes doentes deixam transparecer mais cruamente sua razão de ser. (…) Diria, enfim, que o “grande filme doente” sofre geralmente de um extravasamento de sinceridade, o que paradoxalmente o torna mais claro para os aficionados e mais obscuro para o público, levado a engolir misturas cuja dosagem privilegia o ardil de preferência à confissão direta.

Trecho da crítica de Truffaut sobre o filme Marnie – Confissões de uma Ladra, de Alfred Hitchcock. Retirado de Hitchcock / Truffaut – Entrevistas (Ed. Brasiliense – 1986).

O Memorial é isto mesmo. É um Grande Livro Doente. O ex-diplomata Aires é, certamente, o próprio Machado sexagenário. Tranqüilo, irônico e pessimista, goza sua aposentadoria escrevendo pequenos acontecimentos em seu diário. Nada de romanesco alterará sua existência e ele se compraz na companhia de seus velhos amigos e na observação dos jovens. O ambiente do livro é o mesmo de suas crônicas e até a relativa vergonha de sentir-se atraído por uma jovem viúva é descrita, ao lado do bom senso que o faz aconselhá-la a um casamento com um jovem. Trata-se de um calmo “extravasamento de sinceridade”. Porém… Claro que um livro assim move-se a passos de tartaruga e seu verdadeiro personagem deve ser o texto – no caso uma notável demonstração de virtuosismo literário talvez só repetível por alguém do porte de Henry James. Pode ser que a imobilidade e os gentis saraus de uma velhice esclarecida tenham afastado o público do livro, mas não afastou os loucos por Machado.

Para terminar, uma citação que bem demonstra o espírito de Memorial de Aires:

Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel coisas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão.

Machado de Assis, MEMORIAL DE AIRES

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  1. Há uma teoria – que agora não sei dizer de quem, todo isso emprestado das coisas que ouvi quando minha mãe fazia Letras – que diz que esse livro é uma das grandes ironias de Machado de Assis, ironia que pode ser adivinhada com os versos que ele coloca na introdução (quais seriam? Só alguém com o livro na mão poderia dizer). Haveria duas maneiras de lê-lo: com e sem ironia. Alguém pode tomar o livro como um livro inocente, quase romântico, como se Machado tivesse enfim se “curado” de suas características; ou o leitor poderia reparar que ele se torna irônico e sutil como nunca, que todos os elementos machadianos – inclusive a traição – estão lá na sua melhor forma. Conheço quem ame apenas esse livro, porque não gosta de Machado de Assis. Conheço quem ame Machado de Assis e deteste esse livro. Para gostar de ambos, só quem compartilha dessa “teoria conspiratória”.

  2. Acho que já tínhamos conversado sobre o assunto, não? Temos a mesma opinião. E é incrível que as pessoas deixem esse livro escapar, sem compreendê-lo. Tenho uma versão com uma introdução de uma acadêmica da USP absolutamente incapaz de ler o romance. A ironia em Memorial é tão rebuscada que passa batida pra maioria dos leitores, até os bem treinados.

  3. “É regra velha, creio eu, ou fica sendo nova, que só se faz bem o que se faz com amor. Tem ar de velha, tão justa e vulgar parece.”

    Memorial de Aires. Gênio.

  4. Caro Milton,
    Eu gosto do Memorial de Aires, embora prefira Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e vários contos. É muito boa a sua analogia do livro com o conceito de grande filme doente do Truffaut. Você foi ao ponto (pensei também se Bouvard e Pécuchet não seria um grande romance doente – talvez por ser inacabado; acho bem melhor que Madame Bovary. Qual você prefere?).

    E o engraçado é que o Paulo Francis – seu desafeto? Nemêsis? Objeto de zombaria? – adorava o Memorial de Aires. Dizia, se a memória, essa víbora, não me trai, que era o melhor livro escrito em língua portuguesa.

    Bom passar por aqui. Um feliz ano novo.

    Um abraço,
    Marcos

  5. Marcos.

    No Facebook, a Ângela já tinha citado o Francis… O que dizer a não ser que concordo com ele?

    B & P é um livro extraordinário. Gosto muito, mas ainda mais de Bovary. Aliás, Flaubert é indiscutível. Estou lendo “Como funciona a ficção”, de James Wood, onde há longos e consistentes elogios ao francês.

    Abraço e um grande 2012.

  6. Milton, o livro é bárbaro. Embora eu sempre vá mudando, no momento é meu preferido entre os romances de Machado. Que bom que você o colocou em pauta.

    Caminhante: bem lembrando. A possibilidade de se interpretrar o livro como um enredo de traição, entre outras coisas, foi exposta por John Gledson em “Ficção e história”.

  7. Milton, você acredita que existe gente na rede que desce o cacete em Machado, afirmando coisas do calibre “Machado foi um escritor de segunda linha…”? Não dá pra acreditar, não é?

    Creio que deva ser alguma coisa contida na composição química da água brasileira… Não devemos nos esquecer que, cá, entre nós, seus sete leitores, há também quem desce o cacete no Chico Buarque, lá, pelas plagas do interior de Goiás… (primeira provocaçãozinha do ano).

  8. Vamos mais um pouco, Ramiro.

    Memorial de Aires é algo como as últimas obras de Bach — A Oferenda Musical, A Arte da Fuga. Um artista no auge, com pleno domínio de seus meios de expressão, brincando com dificuldades intransponíveis ao comum dos mortais. No caso de Machado, um romance sem centro, assunto ou discurso como diriam, respectivamente, Pamuk, Borges e minha talentosa amiga Bensimon.

  9. Faz sentido. Mas não me ocorreria esta analogia. Ulisses sempre me pareceu um livro macho, masculino, grosso mesmo, apesar da erudição. MdeA (Machado de Assis ou Memorial de Aires?) me parece um livro de traços muito leves. Não diria feminino, mas muito delicado.

  10. Ramiro, eu estava aqui quieto no meu canto…

    Mas, um ponto para o Chico: no especial da Globo em que juntaram Gil, Caetano e Ivete Sangalo, sugeriu-se que o Chico havia sido convidado, mas negara-se a comparecer. Evitara de aparecer com a cara enfadada de “estou aqui a contragosto, só pela grana” que o Caetano fez, e as tentativas senis de estripulias do Gil. Em certo momento, Gil anunciou que Caetano considerava Ivete uma das pessoas mais inteligentes do país. E a Ivete fazendo seu papel de comediante descolada, piadinhas para todo lado, e as caras de puríssima hipocrisia das atrizes globais como a sexagenária Susana Vieira forçando estarem deslumbradas. E dá-le versões insossas de MPB, com direito a Ivete chorando ao cantar “Eu Sei que Vou te Amar”.

    Nunca é tarde para admirar o senso crítico de poupar-se tamanho constrangimento por parte do Chico.

  11. “Ou, levando em consideração as devidas diferenças, o Ulisses de Joyce, o livro sem história onde a personagem principal é a metamorfose da linguagem…”

    Ótima síntese! Não há como fugir, tu já és joyceano.

  12. Ao #14

    Não estou com o Memorial em mãos. Fui à rede pesquisar e encontrei esse diamante:
    “…dei com os dois velhos sentados… ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos.”
    Quantas vezes se vê exatamente isso pelas cidades? Quantas vezes se sente exatamente isso na passagem das idades?

    Talvez, aí, Milton esteja a delicadeza a que você se refira: é uma amargura a constatação da velhice, contudo, ela pode ser temperada por uma ironia sábia contida, aprendida e preparada “à chegada do segundo mais curto ao jardim dos castanhos”…

    As rugas são as carícias do tempo. Não tem jeito. É assim mesmo…

    Ao #15

    Ô, Charlles, era só pra ver se você estava acordado…

  13. Pensamento avassalador e repentino…

    O Ulisses é um dia. O Memorial, uma vida. Não é isso a essência da ponte entre a mecânica clássica e a quântica, isto é, entre o macro e o micro?! O que é mais importante um segundo ou a eternidade?!

  14. ALMA E LAMA
    by Ramiro Conceição

    Ah, como é necessário encarar a morte
    para se poder viver, sadiamente, a vida.

    Ainda bem que
    o existir… é breve;
    e o tempo esquece.

    Sou poeta a cuidar da chama:
    esse verso… de alma e lama.

  15. Alguém tentando reabilitar o Memorial de Aires? Glória, aleluia, glória! Talvez o mundo acabe mesmo!

    Acho muito triste que o Memorial seja considerado um livro tão fraquinho. Mas é incorreto dizer que ele é ruim porque não é Brás Cubas ou Dom Casmurro. Do mesmo modo que é incorreto dizer que Brás Cubas é inferior a Dom Casmurro porque, bem, é muito diferente de Dom Casmurro – dããã. Cada um desses livros tem uma proposta bem diferente, e é especialmente complicado criar “escalas” entre eles.

  16. Adorei. Interessante do princípio ao fim.
    Machado está entre os melhores pra mim. Todos os escritores sitados também.
    Todos os comentários inteligentes e pertinentes.
    Foi uma leitura enriquecedora.

  17. Lendo em 2020. Acabo de reler Memorial de Aires e Esaú e Jacó. Procurei textos na rede para sentir que conversava com alguém sobre essas leituras. Que bom que me deparei com as tuas palavras! Ler Machado é, em certo sentido, fazer uma leitura compartilhada, pois o narrador, a todo momento nos provoca como aquele que ao percorrer suas linhas pensa sobre o que lê, duvida, supõe, e, acima de tudo, comete equívocos em suas observações, assim como o próprios personagens e o narrador. É maravilhoso acompanhar Machado brincando com o texto e com as possíveis interpretações, com a noção de que todo texto é para ser lido por outros, até mesmo um diário ou cartas. Aquilo que não quer dar publicidade é bom rasgar…
    Ainda sobre o Memorial, penso sobre a questão da solidão e da falsa ideia de que ter filhos nos asseguraria uma velhice acompanhada, uma boa provocação aos que apostam em poupança para o futuro.

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