Uma metáfora fora do lugar?

Quem sou eu para criticar Aleksandr Sokúrov, o novo mestre do cinema russo, continuador — segundo nove entre dez capas de DVDs — de Eisenstein e Tarkovski?, pergunta Milton Ribeiro antes de criticá-lo. Pois uma coisa em Sonata para Viola, filme que Sokúrov dedicou à memória e vida de Dmitri Shostakovich, me incomoda muito. Na cena final, o cineasta mostra alternadamente Leonard Bernstein e Yevgeny Mravinsky regendo o último movimento da 5ª Sinfonia de Shosta. A diferença é enorme. Bernstein dá um andamento rápido e literalmente se escabela, entusiasmado, frente à orquestra. A coisa toda é heróica. Já Mravinsky apenas indica o tempo, um tempo bem mais arrastado que o do americano. Parece, e é, fúnebre. O significado é óbvio: a liberdade e a alegria X a opressão e a tristeza. Porém, é justo aí que estão dois problemas: (1) Mravinsky é um regente tão grande quanto Bernstein foi e sua desqualificação artística é absolutamente imerecida e (2) Mravinsky interpreta o Allegro non troppo da 5ª Sinfonia rigorosamente dentro daquilo que foi solicitado por… Shostakovich, na época um amigo seu. Era música fúnebre mesmo. Claro que Sokúrov deve ter mil explicações para ter finalizado seu filme desta forma, mas, para mim, o grande problema de Sonata para Viola é sua metáfora final.

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  1. Não vi o filme, mas pode ser que a aplicação a “liberdade e a alegria X a opressão e a tristeza” diga respeito a:

    1) sim, a opressão e a tristeza da época stalinista;
    2) sim a liberdade e a alegria… com que o Ocidente tentou interpretar o movimento, errando na forma a na substãncia, indicando que nem sempre a liberdade e a alegria andam de mão dadas com a verdade, além do que a liberdade e a alegria ocidental são expressão de propaganda, mas não da… verdade, pois não há tanta liberdade e alegria no ocidente.

  2. É óbvio que pode ser, mas nada disso retira a sacanagem com o Mravinsky.

    Pode ser tb uma vingança pelo fato de Mravinsky não ter estreado a “perigosa” 13ª Sinfonia. O velho regente foi ameaçado e, literalmente, cagou nas calças, sendo substituído por outro monstro, Kiril Kondrashin. Mas eu peço licença para não acreditar nisso.

  3. Para complementar, mais uma vez, mesmo não tendo visto o filme, ainda acho que a questão é outra. Sokúrov trabalha do mesmo jeito que trabalhou Mravinsky, com precisão, lentidão, cuidado; acho provável que ele tenha usado Bernstein para comprovar os equívocos de condução de Shostakovich por um não russo, incapaz de compreender que eles não são os italianos da Groenlândia, como costumamos vê-los, mas seres humanos complexos como quaisquer outros, que podem ser extravagantes mas também agônicos, angustiados. Conheço o cinema de Sokúrov e não vejo porque ele tenha se colocado em terreno oposto a um russo que, como ele, não era de caricatura.

  4. Para mim, Nikita Mikhalkov é o grande nome vivo do cinema russo, ponto. Sokúrov é ok, tem coisas muito boas, mas Mikhalkov é um humanista do tipo que praticamente não existe mais no cinema.

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