A Ospa e a Arca Russa

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Maxim Fedotov, grande estrela do concerto de ontem à noite
Maxim Fedotov, grande estrela do concerto de ontem à noite

O concerto é um gênero de composição que tem por uma de suas características principais a oposição entre a orquestra e um ou diversos solistas. O solista não necessita ser um virtuose absoluto, mas é bom que esteja à altura da música e do “enfrentamento” com a orquestra. Ontem à noite, nas brumas da acústica e no barulho do ar condicionado do Auditório Dante Barone da Assembleia Legislativa, tivemos dois concertos mais do que clássicos: o Concerto Nº 1 para piano e orquestra, Op. 15, de Beethoven, e o Concerto para violino e orquestra, Op. 35, de Tchaikovsky. À frente da orquestra, o casal russo — são mesmo casados — formado por Galina Petrova (piano) e Maxim Fedotov (violino). Vamos abrir e ver o que nos trazia a arca russa.

Se Beethoven tivesse parado no Op. 15, sua imortalidade não estaria garantida. Este concerto para piano de Beethoven é bem mais ou menos — uma assimilação meio confusa de Haydn e Mozart com uma voz própria nascente — e Galina Petrova obteve empurrá-lo mais para baixo. A pianista levou o concerto sem nenhuma sutileza e de forma bastante errática. O Allegro com Brio é solene e chato, mas a música melhora muito no belo e lírico Largo e no zombeteiro Allegro scherzando. Este é um tipo de música cheia de repetições, onde os temas apresentados pela orquestra são muitas vezes revisitados pelo piano e vice-versa. Petrova deixava claras suas limitações ao não conseguindo realizar as denunciadoras repetições ou ver-se repetida pela orquestra de forma ligeiramente diferente. Ela também não se salvava pela interpretação… Então, a primeira surpresa da arca russa foi decepcionante, mas…

Ainda havia ele
Ainda havia o sósia do Bardem do filme dos irmãos Coen…

Havia ainda o marido, o violinista Maxim Fedotov que atuara como regente no Beethoven, impressionando apenas pela semelhança com o Javier Bardem de Onde os fracos não têm vez. O que Fedotov fez no Concerto de Tchaikovsky foi algo impressionante, raro, perfeito. A composição altamente romântica e virtuosística de Tchai encontrou um solista visceral que demonstrou musicalidade e habilidade de sobra. Quando o convidou, o maestro Tiago Flores sabia o que fazia. Não vimos algo comum: Fedotov tem sangue quente e russo nas veias, mexendo-se para a frente e para trás, agachando-se, lançando olhares que sugerem estar entrando em transe, saltando e eu fechei os olhos para tentar descobrir se aquilo que eu estava ouvindo era de verdade ou se estava sendo enganado pelo mise-en-scène do russo. Negativo. O que ouvia era uma das mais impressionantes interpretações de um concerto que adoro e que conheço detalhadamente desde a infância. Foi algo claro, fluido, arrebatador e absolutamente encharcado em musicalidade. Não havia apenas a colocação das notas em seus devidos lugares, havia argumentação e autenticidade sedutoras.

Não creio que Porto Alegre tenha ouvido um Tchaikovsky melhor até hoje. E olha que não sou dado a exageros. O cara não apenas foi magnífico, como nos trouxe todo o som de uma escola de violino. Todas as minhas células me diziam que estava ouvindo um Tchaikovsky verdadeiramente russo. Quem viu, viu.

Lendo-se o currículo de Fedotov, a gente compreende. Artista nacional da Rússia em 2001, acostumado a ser chamado de Paganini — e não de Bardem, gravações e mais gravações, além da afirmação repassada por minha amiga Elena Romanov de que o homem tem 50 concertos em seu repertório. Meus amigos, tivemos um monstro, uma sumidade ontem em Porto Alegre. Sim, sim, sua mulher não lhe chega aos pés como musicista… E daí? Da próxima vez, a gente apresenta nossa cachaça pra ela, deixando-a na plateia ou no hotel, sei lá.

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4 comments / Add your comment below

  1. Milton
    Escrita tá cada vez melhor. Como vinho, ou cachaça para mulheres russas.
    Humor, conhecimento e um pouco da experiência que faz um belo ensaio.
    abraço

  2. Sou fã incondicional de música clássica, e o segmento desse estilo que mais gosto são os concertos para instrumentos e orquestra.
    O opus 35 de Tchaikovsky é uma verdadeira obra prima. E como você mesmo disse, ele exige técnica impecável e uma visceralidade que poucos atingem.
    Agora fico pensando no quão geniais são esses camaradas.
    Como pode o compositor do concerto nº5 pra piano “Emperor”, ser o mesmo do opus 61 pra violino? Um maestro que tem como instrumento matriz o piano, deveria compor algo mais ou menos pra violino e vice versa, não?
    Não!
    Simples, eles são geniais!
    São gênios que nunca mais veremos iguais.

    Grande abraço, Milton.

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