Quem conheceu Otto Maria Carpeaux descrevia-o como uma espécie de monstro. O escritor José Roberto Teixeira Leite era seu amigo e desenhava assim a figura do austríaco: “Carpeaux foi um dos homens mais feios que conheci. Sua aparência neandertalesca, todo mandíbulas e sobrancelhas, fazia a delícia dos caricaturistas: parecia um troglodita, mas um troglodita que lia Homero e Virgílio no original, que se deliciava e ensinava sobre Bach e Beethoven, que diferenciava e palestrava sobre Rubens e Van Dyck”. Carpeaux também era gago. Carlos Drummond de Andrade, outro amigo, disse que, numa viagem de carro, ele foi citar Kierkegaard. “Começou a falar quando saímos de Juiz de Fora, Ki… Ki… Ki… e só completou o nome do autor dinamarquês em Barbacena, uns 80 quilômetros adiante’.
Antes de ser Otto Maria Carpeaux no Brasil, ele foi Otto Karpfen, um austríaco que estudou filosofia (doutorou-se em 1925), matemática (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em Nápoles) e política (em Berlim); além de dedicar-se à música. Mesmo gago, ele falava e escrevia em inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, flamengo, catalão, galego, provençal, latim e servo-croata. Mas não sabia muito da língua portuguesa quando chegou ao Brasil no final de 1939, fugido da Alemanha nazista. Tinha pai judeu e mãe católica. Identificava-se como católico. Quando chegou, foi trabalhar no interior do Paraná, numa fazenda, no campo.
O austríaco Stefan Zweig chegou aqui já famoso. Era um romancista muito popular. Judeu e austríaco, foi também poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Para as gerações mais antigas, Zweig era principalmente o autor de biografias. Escreveu várias: de Dostoiévski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi, Stendhal e uma famosíssima na primeira metade do século XX, de Maria Antonieta. Conseguiu o reconhecimento como romancista nas décadas de 20 e 30. Neste período, destacam-se os romances “Amok” (1922), “Angústia” (1925) e “Confusão de Sentimentos” (1927).
Em 1934 deixou o país e passou a viver na Inglaterra, entre Londres e Bath, onde se naturalizou cidadão britânico. Com o início da Segunda Guerra Mundial e o avanço das tropas de Hitler, o casal atravessou o Atlântico em 1940 e se estabeleceu nos Estados Unidos. Em 22 de agosto do mesmo ano, veio pela primeira vez ao nosso país. Ao todo, Zweig e sua esposa Lotte fizeram três viagens ao Brasil. Durante a primeira, entre 1940 e 1941 para uma série de palestras, escreveu:
“Você não pode imaginar o que significa ver este país que ainda não foi estragado por turistas e tão interessante. Hoje estive nas cabanas dos pobres que vivem aqui com praticamente nada (as bananas e mandiocas estão crescendo em volta), as crianças se desenvolvem como se estivessem no Paraíso — , a casa inteira, desde o chão, lhes custou seis dólares e, por isso, são proprietários para sempre. É uma boa lição ver como se pode viver simplesmente e, comparativamente, feliz — uma lição para todos nós que perdemos tudo e não somos felizes o bastante agora”.
É uma visão sociologicamente ingênua, mas demonstrava algum amor pelo país que adotaria.
O judeu Herbert Caro veio da Alemanha para Porto Alegre. Tinha em comum com Carpeaux a cultura literária enciclopédica e o profundo amor pela música. Na Alemanha, fora impedido de exercer a advocacia devido à promulgação das primeiras leis antissemitas pelo governo nazista. Primeiramente, refugiou-se na França, onde estudou Letras Clássicas na Universidade de Dijon. Para sustentar-se, dava aulas de latim e pingue-pongue – Caro havia integrado a seleção alemã de tênis de mesa durante seis anos e sido um dos dirigentes da federação de 1926 a 1933. Permaneceu um ano na França. Pressentindo a proximidade da guerra, buscou novo exílio. O Brasil surgiu como a melhor opção. Afinal, um amigo dissera que era um país barato de se viver. E Herbert Caro chegou a Porto Alegre em 7 de maio de 1935. Na mala, pouca coisa; no cérebro, um vocabulário de cerca de três mil palavras que aprendera em algumas aulas de português antes da viagem.
O vocabulário permitia que ele entendesse o Correio do Povo e pedisse informações na rua sem compreender perfeitamente a resposta. O ouvido ainda não estava acostumado. Seus conhecimentos de Direito eram inúteis e o doutorado em Filosofia também pouco valia na Porto Alegre da década de 30. O domínio de várias línguas proveu a subsistência nos primeiros anos e direcionou sua vida.
O legado que Otto Maria Carpeaux (1900-1978) deixou para o Brasil é indiscutível. Em 1941, ele já era colunista do Correio da Manhã e, em 1942, publicava Cinza do Purgatório e, em 1943, o hoje raro Origens e Fins, livro clássico de temas literários variados. Carpeaux tinha opinião sobre tudo e era bastante criticado por emitir alguns juízos curtos e definitivos, talvez apressados, sobre escritores e obras do passado. Mas tinha o estranho dom de identificar cuidadosamente tudo aquilo que se tornaria clássico já no momento do lançamento. Se tivesse morrido nos anos 50, certamente seria lembrado como o autor de História da Literatura Ocidental e como o culto e reacionário editorialista do Correio da Manhã, porém sua posição clara e ativa de oposição aos governos militares após o golpe de 1964 o tornaria conhecido como um intelectual ligado ao espectro da esquerda no cenário político nacional.
Carpeaux foi colunista em diversas revistas e jornais, mas a parte principal de sua obra está em livro. O imenso painel formado pelos 8 volumes de sua História da Literatura Ocidental (1947) – reeditada pela Editora do Senado Federal em 2008 – é algo que dificilmente será refeito individualmente. Carlos Heitor Cony escreveu que há casos cuja importância cultural obriga à permanência no mercado cultural e Carpeaux era um deles. Quem consulta a História no intuito de obter alguma informação aprofundada a respeito de um autor, talvez se decepcione. Nas 3000 páginas do calhamaço, são analisados milhares de escritores. Se Dostoiévski ganha 4 ou 5 páginas, há aqueles que ganham um parágrafo ou meio. Porém, após começar a leitura, é difícil largá-la, tal a forma como Carpeaux relaciona com coerência e conhecimento os escritores e as suas obras, fazendo-as conversarem, explicando em contraponto quem influenciou a quem e como. O mesmo gênero de polifonia pode ser lido em Uma Nova História da Música (1958), sedutor compêndio lido pelos aspirantes a entendidos em música erudita, que depois passam a detestá-lo por ser incompleto e por descobrirem que Carpeaux enchera suas páginas de opiniões pessoais. E muita informação.
A vinda de Stefan Zweig (1881-1942) para o Brasil foi um bem mais triste que a de Carpeaux ou de Caro. Célebre, foi bem recebido no Brasil pela comunidade cultural, mas foi visto com restrições pelas autoridades políticas, que desconfiavam de sua bagagem antinazista. Muitos ministros e assessores de Vargas simpatizavam abertamente com o Hitler. Mas tranquilizaram-se com a publicação de Brasil, país do futuro, utópico retrato de um país inexistente até hoje. Não poucos críticos acusaram Zweig de ter sido comprado pelo DIP, o órgão de propaganda de Vargas, em troca do passaporte que lhe salvava a vida. Zweig não respondeu e talvez nem tivesse tomado conhecimento das críticas.
Vivia afastado dos círculos liberais e de esquerda por seu editor brasileiro, Abraão Koogan. “Ao contrário de outros viajantes, Zweig isolou-se. Também não se fascinava com as riquezas do país, preferindo discorrer sobre a humanidade dos brasileiros”, escreveu o jornalista Alberto Dines, autor da biografia Morte no paraíso. Vivia com a mulher em Petrópolis. E escreveu em 23 de fevereiro de 1942, logo após retornar do carnaval no Rio de Janeiro: “… em parte alguma poderia eu reconstruir minha vida, agora que o mundo de minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído. Depois de 60 anos são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram exauridas nestes longos anos de desamparadas peregrinações”. E, suicidou-se com a mulher, Lotte, ingerindo barbitúricos. A notícia chocou os brasileiros e o mundo por sua dupla premeditação. O casal foi sepultado no Cemitério Municipal de Petrópolis. A casa onde cometeram suicídio é, hoje, um centro cultural dedicado à vida e à obra de Stefan Zweig. Em 2002, Sylvio Back filmou Lost Zweig, sobre a última semana de vida do escritor, mas ficou muito aquém do drama vivido pelo escritor.
Tendo chegado a Porto Alegre em 1935, Herbert Caro (1906-1991) primeiramente trabalhou na indústria. Quatro anos depois, a convite de Erico Verissimo e Henrique Bertaso, já trabalhava na famosa Sala dos Tradutores da Editora Globo e passava a escrever artigos e ensaios para a Revista do Globo. Em 1942, dá início às traduções de Thomas Mann, com Os Buddenbrook. Depois vieram A Montanha Mágica, Doutor Fausto e As Cabeças Trocadas. As traduções de Mann, de Elias Canetti e de outras obras de autores alemães, criaram de fato a tradução literária no país, elevando o padrão rasante praticado anteriormente. Ler as traduções de Herbert Caro torna obrigatória um retorno à primeira página para saber o nome do tradutor. Seu Mann era totalmente diferente do Canetti e do Broch, ou seja, ele não escrevia nunca como Caro, era tradutor e foi premiadíssimo por seus trabalhos.
Mas havia o Caro jornalista, cronista e pedagogo. Em 1958, ele passou a colaborar no Correio do Povo. Primeiro, escrevia crônicas leves descrevendo seu curto período como balconista da Livraria Americana; depois, passou a escrever uma coluna sobre música erudita. A coluna semanal era deliciosa, extremamente bem-humorada e algo moderna ao despir a cultura de uma seriedade que ela, em verdade, jamais possuiu. Usava expressões voluntariamente originais: chamava as pessoas que o compreendiam as coisas rapidamente de compreensivas, nunca de inteligentes. Também ministrava cursos especiais sobre artes plásticas do Instituto Goethe e, nas manhãs de sábado, podia ser encontrado na King`s Discos, palestrando informalmente sobre música, literatura ou qualquer outra coisa. Adorava conversar e era muito duro e generoso. Quando um de seus ouvintes não tinha como comprar um disco ou livro, o Dr. Caro muitas vezes comprava o objeto de desejo e lhe entregava na semana seguinte com ar de pouco caso, dizendo que não tinha comprado nada, mesmo quando esquecia de apagar o preço ou a etiqueta da loja: “Ganhei esta porrcarria e lembrrei de te darr. Nao é a melhorr grravaçao (ou ediçao), mas dá parra o gasto”. Quando o presenteado insistia em pagar, ele se enfurecia: “Nao me custou nada, me custa é saberr que vocês não conhecem essa obrra. Prreciso explicarr parra vocês que sacos vazios não parram em pé, prreciso mesmo?”.
Milton, esqueceu-se de Anatol Rosenfeld.
Eu esqueci de um monte de gente, ou melhor, foquei em três casos de minha preferência. Abraço.
Você adiantou o assunto da minha próxima coluna para o Sul 21, a qual falarei dos meus vizinhos ilustres, entre eles Zweig. Também dizem, não li, mas que a melhor biografia de Stalin foi escrita por ele. Belo artigo e parabéns pelo resgate.
Fui conferir sobre a questão da biografia de Stalin por zweig e não encontri nada. Portanto, fica a dúvida, fez ou não fez?
Mogli, será que não confundiu com outro biografo, Emil Ludwig que entrevistou o Stalin?
Milton, mais uma vez, entre centenas…, por favor, desculpe-me pela descortesia, pelo conteúdo do texto fora de contexto.
.
.
Update
by Ramiro Conceição
.
.
Foi lamentável a tragédia anunciada que ocorreu na Unicamp: a morte de um garoto de 21 anos, estudante de engenharia, assassinado, durante uma festa no campus, por um bando de vândalos. É dificílimo se ter uma certeza, mas neste caso não tenho dúvida: a assassina confessa não é a única culpada.
Como foi possível nesse tempo de redes sociais e de extrema violência se organizar um evento público sem um potencial policiamento ostensivo? Dirão alguns iluminados, mascarados ou não – sempre eles! – que a universidade é um território livre. Balela!… Ideologia barata para estúpidos… Tal argumentação seria válida se, e somente se, estivéssemos a viver a ruptura do estado de direito. Obviamente, o caso foi simplesmente de segurança pública… Entretanto, isso não quer dizer que as autoridades constituídas são as únicas culpadas.
O ocorrido é a prova cabal da total sandice social que se está a viver… E o adjetivo total… é total mesmo sem pleonasmo, mas com ironia trágica. A dimensão que tomou o fato, em todas as mídias, foi porque o teatro onde encenou-se a tragédia era e é pertencente a uma das maiores universidades latino-americanas. Todavia, não há qualquer diferença em relação aos crimes cometidos em todas as esquinas deste país: no trânsito…; no seio familiar…; nas comunidades…; nas mansões…; na internet…; no executivo…; no legislativo…; no judiciário. Enfim… É o brazil não sendo só o Brasil.
.
PS.: Ontem, aqui em Vitória, no início da noite, aproximadamente 20 mascarados, corajosos, sarados e fantasiados de preto (os tais amigos de Caetano, superbacana) depredaram uma agência de carros. Após o ato heroico e revolucionário, para fugir da polícia, adentraram e desapareceram no campus da Ufes. É… Houve um tempo em que os marginais escondiam-se nas matas; ora, hoje, existem as salas de aula… Efetivamente, é um update.
Ontem, após escrever “update”, inventei um soneto que pensei postar no PHES que, aparentemente, não vai acontecer. Se for o contrário, bem…, já fica registrado.
.
.
SONETO EM FATIAS
by Ramiro Conceição
.
.
Quando percebeste que eu abrira
a embalagem do presunto fatiado,
frio, que dormia dentro da geladeira,
sem perceber a outra, que lá sorria,
e que por isso me acusaste,
sem censura… claramente,
com a tua cruel semântica:
“Seu… demente!”,
foi quando percebi
que já era tarde
e que, há muito,
pela segunda lei… da termodinâmica
ou pelo acaso da mecânica quântica,
deveria ter saltado pro além do muro.
ESSÊNCIA PERDIDA
by Ramiro Conceição
.
.
Há deuses ou Deus:
porque há colheres,
bolos, casas, parlamentos,
assassinatos, juramentos
e o firmamento; porque há
concretamente a busca da
essência perdida do amor.
http://www.vagalume.com.br/the-beatles/for-no-one.html
Ótimo texto. O Otto é personagem mítico em Minas Gerais. Tem aquela famosa frase dele: Mineiro chama a gente e sai andando.
Um figura!