O Messias, de Handel

O Messias é o oratório mais popular de Handel. É grande número dos corais que atacam, confiantes e sorridentes, o coral Hallelujah. Eles estão certos, não serei eu que irei criticá-los. Só que esta peça está longe de figurar entre o que há de melhor neste oratório cheio de lirismo e de um melodismo raro, riquíssimo. É difícil de se encontrar árias mais inspiradas do que He shall feed His flock, Ev`ry valley shall be exalted, Why do the nations?, corais como For unto us a child is born, And the glory of the Lord, And He shall purify, além da ária-coral O thou thet tellest good tidings to Zion. Handel era genial e aqui tem seu ponto mais alto. A popularidade de O Messias é merecida.

O Messias normalmente ouvido por nós, principalmente no célebre Hallelujah, está bem longe daquilo que foi planejado originalmente por Handel. Pode parecer surpreendente a muitos o fato de que Handel, enquanto compunha o Oratório, lutava contra problemas administrativos que o levaram a utilizar um grupo pequeno de músicos, pela simples razão de que não os havia na Dublin de 1742 e de que era oneroso buscá-los em outras cidades. Handel dispunha apenas de 16 cantores-solistas e uma orquestra mínima. A estréia foi assim mesmo. No curso destes mais de 260 anos, o popular Messias foi executado de todas as formas imagináveis. Nas antigas gravações da obra e até hoje, são ouvidos enormes corais, oboés dobrando as vozes — não há oboés na versão original –, fagotes no baixo contínuo — fagotes, que fagotes? — etc.

Nos anos 70, quando ouvi esta obra prima pela primeira vez, foi na mastodôntica versão de Karl Richter. Achei uma maravilha o que hoje acho estranho. Richter usou enorme coral e um potente conjunto instrumental, tudo muito pouco barroco. Só que a gravação era linda, avassaladora. Ouvia-se ali o precursor do Beethoven da 9ª Sinfonia. Os anos seguintes nos trouxeram as gravações em instrumentos originais, com as obras sendo executadas dentro da exata formação prescrita pelo compositor e com os instrumentos originais, as tais execuções historicamente informadas. Muitas coisas que conhecíamos foram definhando em potência sonora para ganhar outros coloridos. A partir da década de 80, fomos nos acostumando a deixar o volume sonoro para compositores mais modernos e a fruir a delicadeza barroca. Não, não é proibido ouvir as velhas gravações que utilizam exércitos fortemente armados na interpretação deste oratório — e nem as novas que ainda fazem o mesmo! –, mas alguém com tendência purista, como eu, teve de acostumar-se ao uso de forças menores na interpretação do powerful Messiah. Hoje, parece a mim uma desonestidade ouvir uma obra interpretada dentro de uma concepção tão longínqua das intenções do compositor, ou seja, tão longe daquilo que Handel ouvia. Sei que estou em terreno perigoso e que há fóruns que estão discutindo isto há anos. Tudo começa com alguém perguntando “Mas, e se Handel dispusesse de um coral de 96 elementos e pudesse quadruplicar a orquestra, a música seria diferente?”. Tenho posições nestas questões, porém aqui a intenção é a de modestamente descrever e louvar um pouco de O Messias, esta delicada e poderosa obra de câmara…

É lendária velocidade com que Handel escrevia suas obras. Imaginem que os mais de 140 minutos deste oratório foram escritos em apenas 21 dias. Por exemplo, seus doze concerti grossi, opus 6, foram escritos em 24 dias, quando há pessoas que não conseguiriam sequer copiá-los neste período! Quando inspirado, o homem era rápido mesmo.

Mais curiosidades? Quando houve a elogiada e aplaudidíssima estréia em Dublin (em 13 de abril de 1742), Londres recebeu a obra com calculado distanciamento pela simples razão de que os londrinos não podiam ouvi-la. Ocorria que era proibido falar de coisas sagradas nos teatros e não se podia trazer profissionais dos teatros para cantarem numa igreja. Então o oratório, tal qual uma alma penada, caiu numa espécie de limbo espírita. Só com alguns de atraso e bem velho, Handel pode ver seu oratório triunfar na capital.

Em 1741, Händel recebeu um convite do Lord Lieutenant da Irlanda para ajudar a angariar dinheiro para três instituições de caridade de Dublin através de apresentações musicais. Embora doente, Händel estava determinado a compor um novo oratório sacro para a ocasião, pedindo a Charles Jennens (libretista de Saul e Israel in Egypt) um tema apropriado. Jennens respondeu com uma criteriosa recolha de versículos e escrituras do Velho e Novo Testamentos arranjados num “argumento” em três partes (como ele o descreveu). Como dissemos acima, a obra estreou-se em Dublin, no período da Páscoa de 1742.

O nome “Oratório” é algo que fica entre a música sacra e a secular. Trata-se de um gênero de composição musical cantado e de conteúdo narrativo. Semelhante à ópera quanto à estrutura (árias, coros, recitativos, etc.), difere desta por não ser destinado à encenação. Em geral, os oratórios têm temática religiosa, embora existam alguns de temática profana. Handel era um cristão devoto e a obra é uma apresentação da vida de Jesus e de seu significado de acordo com o cristianismo. Claro que provocou acusações de blasfêmia por não ser exatamente sacra.

Sim, o Messias é uma obra religiosa mas não é sacra, isto é, trata de temas religiosos mas não é um música para ser tocada em contexto litúrgico. A Igreja, enquanto instituição, sempre foi conservadora no que respeita à liturgia, e esta não era concebida como um espetáculo. Daí a diferenciação que fazemos entre a “ópera”, o oratório e a músi20ca sacra. Por outro lado, as tradições musicais do sul da Europa (católico) e o norte (protestante) eram bastante diferentes. No sul, o barroco mostrava-se mais “espetacular” e “operático”, enquanto que no norte, particularmente na Inglaterra, a simplicidade e depuração estilística consistiam a regra em termos litúrgicos.

Mesmo que não houvesse lugar à encenação, a Igreja mais conservadora repudiava a prática da oratório, porque, afinal de contas, eram utilizadas as escrituras sagradas para efeitos cênicos e espetáculo público. Foi em torno destas questões que alguns jornais ingleses mais conservadores consideraram a obra como uma blasfêmia.

À parte disto, o Messias é uma obra imersa em espiritualidade. Para os crentes e fiéis é uma prova da mais fervorosa devoção. Para os não-crentes, para além do desafio intelectual, o Messias condensa emoções mais da esfera humana do que da divindade. Porém, uns e outros reconhecem o enorme prazer estético de ouvir a composição.

As melhores gravações que conheço:

— A do Dunedin Consort e Dunedin Players, sob a regência de John Butt. É a melhor.

— A de Trevor Pinnock (Archiv). É a segunda opção.

– Para quem tem limitações financeiras (como eu), há o sensacional registro feito pela Naxos nos CDs duplos 8.550667-668, com o The Scholars Baroque Ensemble.

Tendo uma destas três em casa, você tem O Messias. A gravação da Naxos e a de Butt obedecem a rarefeita formação dublinense da estreia; já Pinnock aparece com alguns reforços no coral, o que vamos perdoar desta vez. Para quem não está nem aí para estas filigranas, indico também a clássica gravação de Karl Richter com a Orquestra Filarmônica de Londres e o coro John Alldis. Sim, é bonita, mas talvez não seja mais Handel, sei lá.

O nome de Handel também aparece como Händel ou Haendel. Este alemão que produziu parte de sua obra na Inglaterra teve seu nome grafado nas três formas citadas. Seu nome original é Georg Friedrich Händel, mas ele tornou-se George e Handel na Inglaterra. Costumo utilizar a forma inglesa, mais fácil.

handel

12 comments / Add your comment below

  1. “Depois do ruído, música”

    Tenho um disco de árias barrocas com o Bryn Terfel (o nome é este?), um oitro com um tal Koopman (será isso), mais um disco de peças de câmara e cantatas com uma turma legal mas de nome impenetrável para mim agora, e outro disco dividicom com peças deles e um dos filhos de Bach. Mais nada. Ah, no disco da Battle + Marsalis tem umas pecinhas dele pra voz também. É, tem mais não. Händel ou Haendel, o bicho era profissional. Se vivo, aposto que estaria fazendo arranjos para o próximo disco do Roberto Carlos…

  2. Mas era uma época em que todo músico era um profissional artesão, Marcos. Alguns profissionais melhores que outros, claro 🙂

    As intrigas é que dizem que, na sua produtividade industrial, Handel utilizava, re-utilizava, reciclava e reprocessava suas mesmas fórmulas e trechos (os próprios e também os de outrem).

    Mas essas são as intrigas. A música é maravilhosa mesmo.

    1. Nada de intrigas, Drex, mas a pura verdade, como era comum à época e ainda depois (para falar a verdade, até hoje). Vivaldi também foi acusado do mesmo; Bach escrevia “Variações sobre o tema”, como também era bastante comum, mas também pegava no ar temas alheios sem creditá-los. Música é coisa de passarinho, não se pode correr atrás de patentes de sons, resta então seguir a regra da cópia dos tantos compassos (acho que três, sei lá) para acusações de plágio. Não vejo essas coisas com tanta solenidade e respeito não… nem muita coisa, talvez até coisa alguma. Às vezes passa diante de mim uma deusa em trajes mínimos; só aí então eu me curvo e recito sussurando as palavras “Aleluia, Senhor!” – mesmo assim, veja lá, há um tanto de ironia nisso..

    2. Drex, era verdade. E não era grave. NUma época sem registros gravados, o que não era famosésimo era inédito. E Handel reaproveitava um monte de coisas. Mais: não havia uma noção de “obra” tal como temos hoje.

      1. Concordo, Milton. Não havia essa noção de “minha obra”, e as coisas deviam ser bastante fluídas. Pós-modernos esses barrocos, não?

        E ainda, numa época de música utilitária, em que o velho Bach tinha que escrever uma cantata por semana, o ato de reciclar idéias devia ser utilíssimo até mesmo para desenvolver melhor as boas idéias.

        Também acho bem besta essa discussão Mozart-copiou-Handel-copiou-Bach-copiou-blablablá… Como disse o Marcos, deixemos a solenidade às deusas, manifestações espontâneas da natureza.

        No fim, essa discussão sobre plagiários me lembrou do episódio do fulaninho do CQC que reivindicou no Twitter a autoria de uma piada de papagaio. Ai ai.

  3. Milton, estou para queimar a língua, e torço para que isto ocorra. Me chegou hoje o 2666 pela cia das letras, e já li as primeiras 40 páginas. Não sei o que vai acontecer a seguir com os quatro arquiboldianos_ provavelmente transarão num sexo grupal tórrido, com artimanhas generosas para o Manari (é isso, o nome do da cadeira de rodas? acho que não) possa usufluir democraticamente da amiga inglesa. O que importa é que essas primeiras páginas, ao contrário de todos os outros títulos do Bolaño, me deixou completamente enebriado. Incrível como Bolaño conseguiu investir um outro estilo diferente do passado: parágrafos caudalosos, sentenças complexas e musicais (complexas mas admiravelmente legíveis). A parte onde um escritor alemão obscuro informa aos quatro amigos seu conhecimento pessoal com o Archiboldo, num povoado gélido onde se lia sob a luz de lampiões, é verdadeiramente literatura de primeira. espero que a coisa continue assim, sem aquelas tediosas narrativas esparsas do Detetives Selvagens.

  4. desde a primeira vez que ouvi esta obra foi paixão a primeira vista. Era a pesada versão do Richter, mas como era a única a que tinha acesso, me bastou por décadas. Depois apareceu Pinnock e Hogwood e tudo mudou: é a mais pura expressão do divino na música, isso levado a enésima poténcia. É a obra que quero que toquem à exaustão no meu velório, e no meu enterro.. quero subir aos céus ouvindo ao fundo “O thou thet tellest good tidings to Zion” …

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