As Variações Goldberg, a música para dormir de Johann Sebastian Bach

Só para irritar o Conde Keyserling: Charles Auguste Emile Carolus-Duran “Sleeping Man” (1861)
Só para irritar o Conde Keyserling: Charles Auguste Emile Carolus-Duran “Sleeping Man” (1861)

Eu nunca tive insônia. Talvez, em razão de alguma dor ou febre, não tenha dormido repousadamente apenas uns dez dias em minha vida. Não é exagero. Quando me deprimo, durmo mais ainda e acordar é ruim, péssimo. O sono é meu refúgio natural. Mas há pessoas que reclamam (muito) da insônia. Saul Bellow escreveu que ela o teria deixado culto, mas que preferiria ser inculto e ter dormido todas as noites — discordo do grande Bellow, acho que ele deveria ter ficado sempre acordado, escrevendo, vivendo e escrevendo para nós. Também poucos viram Marlene Dietrich adormecida. Kafka era outro, qualquer barulho impedia seu descanso, devia pensar no pai e passava suas noites acordado, amanhecendo daquele jeito após sonhos agitados… Groucho Marx, imaginem, era insone, assim como Alexandre Dumas e Mark Twain. Marilyn Monroe sofria muito e Van Gogh acabou daquele jeito não por ser daltônico, característica que apenas gera inteligência e genitália avantajadas.

O Conde Keyserling sofria de insônia e desejava tornar suas noites mais agradáveis. Ele encomendou a Bach, Johann Sebastian Bach, algumas peças que o divertissem durante a noite. Como sempre, Bach fez seu melhor. Pensando que o Conde se apaziguaria com uma obra tranquila e de base harmônica invariável, escreveu uma longa peça formada de uma ária inicial, seguida de trinta variações e finalizada pela repetição da ária. Quod erat demonstrandum. A recuperação do Conde foi espantosa, tanto que ele chamava a obra de “minhas variações” e, depois de pagar o combinado a Bach, deu-lhe um presente adicional: um cálice de ouro contendo mais cem luíses, também de ouro. Era algo que só receberia um príncipe candidato à mão de uma filha encalhada.

A história da criação das variações foi tirada da biografia de Bach escrita por Johann Nikolaus Forkel:

(Quanto a essas variações), devemos agradecer ao pedido do ex-embaixador russo na corte eleitoral da Saxônia, o conde Hermann Karl von Keyserling, que frequentemente passava por Leipzig e que trouxe consigo o cravista Goldberg para receber orientações musicais de Bach. O conde tinha frequentes acometimentos de doenças e ficava noites sem dormir. Em tais ocasiões, Goldberg, que vivia em sua casa, tinha que passar a noite na antecâmara para tocar para ele durante sua insônia. … Certa vez, o conde mencionou, na presença de Bach, que ele gostaria de ter algumas obras para teclado para Goldberg executar, que deveriam ser de caráter suave e algo vigoroso de modo que ele pudesse ser um pouco consolado por elas em suas noites sem dormir. Bach imaginou que a melhor maneira de atender a esse desejo seria por meio de variações, cuja escrita ele considerava, até àquela data, uma tarefa ingrata devido ao fundamento harmônico repetidamente semelhante. Mas, uma vez que a essa época todos os seus trabalhos já eram padrões de arte, tais se tornaram, em suas mãos, estas variações. Mesmo assim, ele produziu um único trabalho desta espécie. Daí em diante, o conde sempre as chamava de “as suas” variações. Ele nunca se cansou delas e, por um longo período, noites sem dormir significavam: ‘Caro Goldberg toque minhas variações para mim’. Provavelmente Bach nunca foi tão bem recompensado por um trabalho quanto foi neste. O conde o presenteou com um cálice de ouro com 100 luíses de ouro. Não obstante, mesmo que o presente tivesse sido mil vezes maior, seu valor artístico nunca teria sido pago.

O Conde tinha a seu serviço um menino de quinze anos chamado Johann Gottlieb Goldberg. Goldberg era o melhor aluno de Bach. Foi descrito como “um rapaz esquisito, melancólico e obstinado” que, ao tocar, “escolhia de propósito as peças mais difíceis”. Perfeito! Goldberg era enorme e suas mãos tinham grande abertura. O menino era uma lenda como intérprete e o esperto Conde logo o contratou para acompanhá-lo não somente em sua residência em Dresden como em suas viagens a São Petersburgo, Varsóvia e Postdam. (Esqueci de dizer que o Conde Keyserling era diplomata). Bach, sabendo o intérprete que teria, não facilitou em nada. As Variações Goldberg, apesar de nada agitadas, são, para gáudio do homenageado, dificílimas. Nelas, as dificuldades técnicas e a erudição estão curiosamente associadas ao lúdico, mas podemos inverter de várias formas a frase. Dará no mesmo.

O nome da obra — Variações Goldberg, BWV 988 — é estranho, pois pela primeira vez o homenageado não é quem encomendou a obra, mas seu primeiro intérprete.

O princípio de quase toda obra de variações consiste em apresentar um tema e variá-lo. (Lembram que Elgar fez uma obra de variações sem apresentar o tema, chamando-a de Variações Enigma?). Assim, o ouvinte tem a impressão de estar ouvindo sempre algo que lhe é familiar e, ao mesmo tempo, novo. A escolha de Bach por esta forma mostrou-se adequada às pretensões do Conde. E a realização não poderia ser melhor, é uma das maiores obras disponibilizadas pela e para a humanidade pelo mais equipado dos seres humanos que habitou este planeta, J. S. Bach. O jogo criado pelo compositor irradia livre imaginação e enorme tranquilidade. A Teoria Geral das Belas-Artes, espécie de Bíblia artística goethiana de 1794, diz o seguinte sobre as Goldberg: “em cada variação, o elemento conhecido está associado, quase sem exceção, a um canto belo e fluido”. E está correto. Só esqueceu de dizer que tudo isso tinha propósito terapêutico.

As Variações Goldberg eram tidas no passado como um exercício técnico árido e aborrecido. Mas já faz quase um século que o conteúdo e a abrangência emocional da obra foi reconhecido e se tornou a peça favorita de muitos ouvintes de música erudita. As Variações são largamente executadas e gravadas.

É muito provável que o enfermo Conde concordasse com a Theorie para descrever seu prazer de ouvir aquela música, mas diria mais. Seus efeitos fizeram que Goldberg a tocasse centenas de vezes para ele. O cálice repleto de ouro significava gratidão pela diversão emocional e intelectual. Dormimos por estarmos calmos e felizes, talvez.

Não posso distribuir cálices de ouro por aí, mas talvez devesse dar alguma coisa a Pierre Hantaï, o maior intérprete da obra. (Por favor, neste momento não me venham com Gould; afinal, o som do cravo é fundamental e só aceito fazer a final contra o grande Gustav Leonhardt. Gould ficou lá pelas quartas-de-final).

Então, para os insones ou não, aqui estão as Variações Goldberg com Pierre Hantaï.

Figura su fondo celeste - Felice Casorati
Figura su fondo celeste – Felice Casorati

Obs.: Este post foi escrito meio de memória, mas também consultando o livro “48 variações sobre Bach” de Franz Rueb, Companhia das Letras, 2002.

Abaixo, Hantaï mandando bala nas Goldberg:

19 comments / Add your comment below

  1. Embasbacada com Hantaï. Embasbacada. Já tinho ouvido falar, mas nunca imaginei que fosse TUDO ISSO.

    Post antológico, assim como aquele sobre daltonismo…

    Bj. Cla.

    1. Obrigado, não consigo parar de ver aquela variação (a 23) que começa aos 47 segundos da penúltima tela. Nem é o ato físico, é a naturalidade de quem está preparando o café enquanto demonstra um teorema de Bach.

  2. Goldberg, o mito

    Para fazer adormecer o filho de 6 anos, muito levado e, apesar disso, também bastante introspectivo, o que na época foi entendido como sinal de leve doença mental, a mãe contava para ele da existência de uma música das esferas, que os deuses roubaram aos homens e depois os fizeram incapazes de atingir os píncaros da própria obra, limitando-os a executar sons através de uma série de instrumentos, sem nunca chegar, porém, à grandeza de tal música. O menino, tentando imaginar a música, dormia; mais adulto, porém, o efeito se inverteu porque o rapazote de 12 anos, já músico, perdia o sono tentando recriar a música até então apenas sonhada. Foi preciso que um músico vizinho, aceitando a encomenda de um aristocrata, compusesse algumas variações sob um tema algo etéreo, e atingisse exatamente o encadeamento de notas perseguido desde a infância. Executando a peça centenas de vezes, o encanto novamente tomou conta dele com o retorno de seu anterior efeito tranquilizante. A vida inteira foi um excelente músico, mas o pouco que compôs jamais chegou aos ouvidos públicos – o então homem encerrou-se em sua modéstia paradoxal, de quem, enfim, arrebatara aos deuses as esferas e sua música perfeita. Depois de casado, para adormecer os próprios filhos, não contava histórias, apenas tocava a peça, cósmica e infalível. A esposa sorria; após o recolhimento de todos os filhos, voltariam às adultas brincadeiras, embalados de outra maneira.

  3. tenho as variações aqui em mp3, mas no piano do Gould, que é o mais próximo de um Goldberg (não pelo tamanho das mãos, mas pela soturnice) que o séc. XX tinha pra oferecer.

    nunca tinha ouvido em cravo. a sensação foi de reconhecer a “música das esferas”, como o Marcos bem colocou.

    Ah, e é uma experiência em tanto ouvir Anarchy in UK logo depois. Sério.

    1. Também gosto de ambos, só que acabo enchendo o saco rapidamente do rock. Meu filho ouve. Meia hora depois, peço para ele colocar os fones. Ele bota sem se incomodar. Ainda bem.

      Não pense que não tenho o vinil de Never Mind The Bollocks.

      Ontem, vcs falavam de grupos contemporâneos. Gosto do Beck.

      1. O plagiário Francis comentou certa vez que, quando via um Bergman ou ouvia Bach, perguntava a si mesmo porque perdia tanto tempo com outras bobagens. Plagiário e burro, mas não um estúpido completo.

        Sempre disse para um amigo meu, ultra-fã da Nico (de joelhos, senhores), que o Beck seria o único músico atual com cassife para ter pertencido ao Velvet Underground e, diferente daqueles frangotes bissexuais (o Lou, inclusive), levado-a para cama.

  4. Pode me chamar de ignorante, mas eu tenho meus preconceitos contra cravo. Mesmo assim, gostei muito. É das esferas mesmo, véi!

    (ainda estou imbuida das pérolas do vestibular. Espero que tenha feito sucesso 😉 )

    1. Estou tremendamente bêbado, após uma cervejada no Lancha (“Lancheria do Parque”, pra quem não é de POA) para não concordar com o Charlles e dizer que o ser humano me comove e encanta (aliás, quando eu era adolescente, metido a lobo-mau misantropo, costumava dizer, quando bêbado, que detestava ficar bêbado pois era quando começava a gostar das pessoas). Fazemos tanta merda, mas o paradoxo é que somos justo o contrário.

  5. pois é. na terça-feira, por ex., resolvi ser o único a não beber numa mesa em q 5 amigos tomavam um chopp atrás do outro. dá pra acompanhar tranquilamente a evolução das narrativas. de camarote.

  6. Hantaï fez em 1993 a gravação que apresentas e, de novo, em 2003. A segunda é mais contida, talvez um pouco “escura”. Ao contrário do Gould, gosto mais da primeira.

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