Da sabedoria de Jorge Luis Borges

É curioso – não creio que isso tenha sido observado até agora – que os países tenham escolhido indivíduos que não se parecem muito com eles. Seria o caso de imaginar, por exemplo, que a Inglaterra escolheria o dr. Johnson como seu representante; mas não, a Inglaterra escolheu Shakespeare, e Shakespeare é – por assim dizer – o menos inglês dos escritores ingleses. O típico da Inglaterra é o understatement, é o fato de dizer um pouco menos das coisas. Shakespeare, porém, tendia à hipérbole na metáfora, e se ele tivesse sido italiano ou judeu, por exemplo, não haveria nada de surpreendente.

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Outro caso é o da Alemanha; um país admirável, tão facilmente fanático, e que escolhe justamente um homem tolerante, que não é fanático e que não está muito preocupado com o conceito de pátria; escolhe Goethe. A Alemanha é representada por Goethe.

A França não escolheu um autor, mas a tendência é Hugo. Evidentemente, sinto uma grande admiração por Hugo, mas Hugo não é tipicamente francês, Hugo é estrangeiro na França; Hugo, com aquelas grandes decorações, com aquelas vastas metáforas, não é típico da França.

Outro caso ainda mais curioso é o da Espanha. A Espanha poderia ter sido representada por Lope, por Calderón, por Quevedo. Mas não, a Espanha é representada por Miguel de Cervantes. Cervantes é um homem contemporâneo da Inquisição, mas é tolerante, é um homem que não tem nem as virtudes nem os vícios espanhóis.

É como se cada país achasse que precisa ser representado por uma pessoa diferente, por uma pessoa que possa ser, um pouco, uma espécie de remédio, uma espécie de teriaga, uma espécie de antídoto para seus defeitos.

Jorge Luis Borges

2 comments / Add your comment below

  1. Aqui no Brasil escolhemos Machado de Assis… O que confirma a tese de Borges! Não há país mais anti-machadiano que o Brasil.

    Qual é a marca mais própria da prosa de Machado? A auto-depreciação, a auto-ironia, a colocação de si próprio no meio do turbilhão do que deve ser desmontado.

    Qual é a marca essencial do nosso patrimonialismo? “Eu sou especial, eu mereço subsídios, eu sou amigo de fulano, ‘você sabe com quem está falando?’ etc.”

    O que o antropólogo Roberto da Matta definiu como mais específico do Brasil — o famoso “você sabe com quem está falando?” — é das frases que mais claramente imaginaríamos como ironizadas e destroçadas na prosa de Machado. Há mil exemplos, incluindo aquela célebre cena de Brás Cubas em que o personagem que dá título ao livro chicoteia um pobre coitado no meio da rua.

    Machado é grandíssimo exatamente porque demole, destrói os clichês sobre os quais se sustenta o Brasil.

    1. Machado não é um autor realista. Isso não quer dizer que ele não tenha oferecido elementos para pensar nossa realidade. Mas o realismo, em literatura, é um método, um jeito de contar as coisas, que consiste em fazer que o leitor acredite que aquela voz que narra a história é “neutra”, “objetiva”, livre de preconceitos etc.

      Todas essas coisas — a ideia de que seja possível “fotografar” a realidade, em suma — são demolidas na prosa de Machado. Por isso ele não é realista. O que não quer dizer que ele não seja o cara que mais nos disse sobre nossa realidade.

      Não sei se ficou claro.

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