Os atores que trabalharam com Bergman sempre diziam que o set de filmagens era muito leve e se surpreendiam com o peso dos filmes quando iam para as telas. Liv Ullmann disse mais de uma vez: “Nós fazíamos piadas e ríamos todo o tempo. Tomei um susto quando vi Gritos e Sussurros, por exemplo. Afinal, tínhamos passado todo o tempo nos divertindo!”. No último sábado, com um clima medonho lá fora, estivemos numa improvisada sessão privé de Fanny e Alexander lá no StudioClio. Uma maravilha rever este filme depois de tantos anos. Minha filha Bárbara chegou a sonhar com o bispo após ver aquelas “cenas fortes e explicitas de religião”, como sublinhou o Chico. Abaixo, deixo para meus sete visitantes alguns trechos das gravações de Fanny. É claro que são trechos escolhidos, certamente filtrados, mas se nota a atmosfera de tranquila camaradagem entre os atores e técnicos. Como os filmes de Ingmar sempre era produzido por um mesmo grupo de pessoas que foi variando lentamente através dos anos, eram todos amigos ou, no mínimo, conhecidos.
Talvez este seja o filme mais linear da produção madura de Bergman. Isso não lhe retira qualquer mérito. É uma obra-prima. Também é um filme otimista e de final feliz, com a sogra e a nora tomando o poder. A primeira decisão é a montagem de O Sonho de Strindberg. Nada mais adequado.
Poucos bergmanianos dão importância ao fato, mas sempre me interessaram os nomes dos personagens de Ingmar Bergman e suas repetições através dos filmes. A insistente presença dos sobrenomes Vogler e Vergerus me é particularmente atraente e, cada vez que descubro mais um, fico inexplicavelmente feliz. É como se me apresentassem mais um membro destas previsíveis famílias. Por algum motivo, é tranquilizador. Vogler é o mágico, o sensível, o cômico, o que põe a máscara, o que engana, o que crê, é a fantasia e a liberdade que se opõe aos Vergerus, que representam a razão, a seriedade, o estabelecido, a maldade, o ceticismo, a ciência, a aceitação das limitações. É claro que Bergman considera estar ao lado dos Vogler. Porém temos mais facilidade para lembrar dos maus. Quem esquece do bispo Edvard Vergerus de Fanny e Alexander ou do médico nazista Hans Vergerus que fazia experiências com seres humanos em O Ovo da Serpente?
O nome Vogler é incomum, mas não exatamente raro em comunidades germânicas — estatísticas revelaram que em 2004 havia 34 Voglers na Suécia –, deriva da palavra alemã para “pássaro” (vogel em alemão, em sueco fågel). Os Vogler são frequentemente artistas de algum tipo (um artista viajante em O Rosto, uma atriz em Persona). Já os personagens de Vergerus são muitas vezes autoritários, às vezes médicos ou religiosos — o oficial de saúde em The Magician, o bispo severo em Fanny e Alexander.
Mas o uso dos nomes em Bergman é uma área ainda mais complexa. Henrik e Anna são nomes comuns nos primeiros filmes de Bergman. Seu pai era Erik, mas há indícios que Henrik seria uma corruptela do nome do pai. Então, deveriam ser interpretados como retratos de seus pais? Tomemos Henrik Egerman de Sorrisos de uma Noite de Verão, por exemplo, um jovem se preparando para entrar no clero. Ele é uma versão inicial do pai de Bergman, que também era um clérigo? Ou a maternal Anna em Gritos e Sussurros, ela seria Karin, a mãe de Bergman? Por que então nesse filme há outro personagem cujo nome é Karin?
O assunto é interessante, mas, por minha parte, peço a qualquer pessoa interessada em Bergman que simplesmente compare os personagens que compartilham os mesmos nomes nos vários filmes. Relacione-os com os atores que interpretam os papéis e compare suas aparências, gestos, etc. Então, talvez compreendamos mais como a coisa funciona. Para ajudar, fornecemos um guia resumido abaixo.
— Max von Sydow (Albert Emanuel Vogler em “O Rosto”)
— Ingrid Thulin (Manda Vogler em “O Rosto”)
— Gunnar Björnstrand (Dr. Vergerus em “O Rosto”)
— Gunnar Björnstrand (Sr. Vogler em “Persona”)
— Liv Ullmann (Elisabeth Vogler, a atriz, em “Persona”)
— Ingrid Thulin (Veronica Vogler em “A Hora do Lobo”)
— Erland Josephson (Elis Vergerus em “A Paixão de Ana”)
— Bibi Andersson (Eva Vergerus em “A Paixão de Ana”)
— Max von Sydow (Andreas Vergerus em “A Hora do Amor”)
— Bibi Andersson (Karin Vergerus em “A Hora do Amor”)
— Heinz Bennent (Dr. Hans Vergerus em “O Ovo da Serpente”)
— Jan Malmsjö (o bispo Edvard Vergerus de “Fanny e Alexander”)
— Kerstin Tidelius (Henrietta Vergerus em “Fanny e Alexander”)
— Erland Josephson (Henrik Vogler em “Depois do Ensaio”)
— Erland Josephson (Osvald Vogler em “In The Presence of a Clown” – TV)
— Gunnel Fred (Emma Vogler em “In The Presence of a Clown” – TV)
Ia escrever hoje sobre obra-prima de Bergman, que revimos neste fim de semana. Mas este artigo me pareceu tão explicativo que resolvi apenas copiá-lo. Até porque não gostaria de perdê-lo. As fotos foram colocadas por mim. (MR)
Ernest Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, na Suécia, em 1918. Filho de um pastor luterano, teve uma infância rígida, marcada por castigos psicológicos e corporais, temas freqüentes em seus trabalhos.
Começou a fazer e dirigir teatro ainda adolescente. Tornou-se famoso como roteirista na Suécia, escrevia para os maiores cineastas da época, e, com Sorrisos de Uma Noite de Amor fez seu nome como diretor de cinema, mas foi com O Sétimo Selo que ganhou fama internacional.
Foi o principal responsável pela recuperação, para o cinema sueco, do prestígio que este perdera na década de 20, com a partida de importantes cineastas para Hollywood.
Fez um total de 54 filmes, 39 peças para o radio e 126 produções teatrais, onde seus temas principais eram Deus, a Morte, a vida, o amor, a solidão, o universo feminino e a incomunicabilidade entre casais, tema onde foi pioneiro no cinema. Tornou-se autor completo de seus filmes e renovou a linguagem cinematográfica. Seus primeiros filmes trazem com frequência influências do naturalismo e do romantismo do cinema francês dos anos 30. Alguns chegaram a ser repelidos por causa do erotismo e expressionismo.
É muito conhecido por seu domínio do métier, por seu conhecimento técnico de câmera, luzes, processos de montagem, criação de personagens e qualidade de celuloide e som. Sempre trabalhava com a mesma equipe técnica e atores.
Ganhou Oscar com os filmes A Fonte da Donzela e Fanny e Alexander.
Da peça ao filme
Bergman dava aulas na Escola de Teatro de Malmö, em 1955. Procurava uma peça para encenar para alguns jovens. Acreditava que essa era a melhor maneira de ensinar. Nada encontrou e então resolveu escrever ele mesmo, dando o titulo de Uma pintura em madeira.
Era um exercício simples e consistia num certo numero de monólogos, menos uma parte. Um dos alunos se preparava para o setor de comédia musical, tinha uma aparência muito boa e ótima voz quando cantava, mas quando falava era uma catástrofe, ficando com o papel de mudo, e ele era o cavaleiro.
Trabalhou bastante com seus alunos e montou a peça. Ocorreu-lhe um dia que deveria fazer um filme da peça e tudo aconteceu naturalmente. Estava hospitalizado no Karolinska, em Estocolmo, o estomago não estava muito bom, e escreveu o roteiro, passando o script para o Svensk Film Industri, que não foi aceito, e só quando veio o sucesso Sorrisos de uma noite de amor (filme que recebeu um premio importante no festival de Cannes) que Ingmar obteve permissão para filmá-lo.
Bergman disse em uma entrevista “Foi baratíssimo e muito simples”, mas na biografia critica de Peter Cowie, a origem de O Sétimo Selo é tratada de modo a aparecer um pouco menos simples. Cowie fornece mais pormenores do que Bergman sugere, diz, que a peça original é um ato para dez estudantes, entre eles Gunnar Bjornstrand, e foi levada a cena pelo próprio Bergman em 1955. Mas a encenação que arrebatou a critica ocorreu em setembro do mesmo ano quando um outro elenco, que contava com a presença de Bibi Anderson dessa vez, representou no Teatro Dramático Real de Estocolmo, sob a direção de Bengt Ekerot (ator e diretor renomado que interpretou a Morte em O Sétimo Selo).
Apenas alguns elementos foram aproveitados no roteiro final do filme: o medo da peste, a queima da feiticeira, a Dança da Morte. Mas a partida de xadrez entre a Morte e o Cavaleiro não havia, e, nem existia o artístico-bufanesco “santo casal” Jof e Mia com seu bebê. Somente Jons, o Escudeiro, não sofreu mudanças.
Bergman retornou a Suécia, reescreveu o roteiro e reuniu a equipe. Deram-lhe trinta e cinco dias e um orçamento apertado. Foram gastos cerca de 150 mil dólares e o diretor manteve-se dentro do cronograma e do orçamento. O filme foi feito em 1956 e estreou na Suécia em fevereiro de 1957.
Contexto Histórico
O século XIV, que é a época diegética de O Sétimo Selo, assinala o apogeu da crise do sistema feudal, representada pelo trinômio “guerra, peste e fome”, que juntamente com a morte, compõem simbolicamente os “quatro cavaleiros do apocalipse” no final da Idade Média.
Inicialmente, a decadência do feudalismo resulta de problemas estruturais, quando no século XI, a elevada densidade demográfica na Europa, determinou a necessidade de crescimento na produção de alimentos, levando os senhores feudais aumentarem a exploração sobre os servos, que iniciaram uma série de revoltas e fugas, agravando a crise já existente.
As cruzadas entre os séculos XI e XIII representaram um outro revés para o sistema feudal, já que os seus objetivos mais imediatos não foram alcançados: Jerusalém não foi reconquistada pelos cristãos, o cristianismo não foi reunificado, e a crise feudal não foi sequer minimizada, já que a reabertura do mar Mediterrâneo promoveu o Renascimento Comercial e Urbano, que já contextualizam o “pré-capitalismo”, na passagem da Idade Média para a Moderna.
O trinômio “guerra, peste e fome”, que marcou o século XIV, afetou tanto o feudalismo decadente, como o capitalismo nascente. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) entre França e Inglaterra devastou grande parte da Europa ocidental, enquanto que a “peste negra” eliminou cerca de 1/3 da população européia. A destruição dos campos, assolando plantações e rebanhos, trouxe a fome e a morte.
Nesse contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, além do desenvolvimento do comércio monetário, notamos transformações sociais, com a projeção da burguesia, políticas com a formação das monarquias nacionais, culturais com o antropocentrismo e racionalismo renascentistas, e até religiosas com a Reforma Protestante e a Contra Reforma.
O filme toca imaginativamente nesse mundo antigo, saturado de feiticeiras, cavalos, fome, peste e fé, depositando confiança em nossa imaginação.
O filme
Foi o décimo filme que Bergman dirigiu e é uma de suas poucas tramas não-realistas. O roteiro original se lê como peça de teatro e poderia, com alguns retoques, ser montada como tal. Não se encontra nenhum Plano Geral, Zoom ou Pan, nada de Exterior Dia Floresta; nem Interior Dia Taverna; é como uma peça, com relativamente poucas rubricas. Podemos encontrar muitas influências culturais tanto no filme como no próprio roteiro: o quadro dos dois acrobatas de Picasso; A Saga dos Folkung e O Caminho de Damasco de Strindberg; os afrescos religiosos que Bergman viu na Igreja de Haskeborga.
Houve apenas três dias de locação nas filmagens: a sequência de abertura e as tomadas na encosta do morro. As condições atmosféricas, a locação e a luz eram perfeitas e não foi preciso repetir as tomadas. Foi um filme cheio de improvisações, a maior parte filmado nos estúdios, em Rasunda (Suécia). Bergman conta que em uma sequência na floresta, olhando com muita atenção podemos ver as janelas envidraçadas de um bloco de apartamentos, e a torrente na floresta era o transbordamento de um cano solto que ameaçava inundar o local.
A velocidade do andamento das cenas , como uma cena passa para a outra dizendo tudo o que precisa e encarando grandes e pequenas questões com a mesma seriedade, buscando o óbvio, fazem parte do mundo bergmaniano. A clareza dos diálogos, a maneira teatral como são utilizados, também fazem parte desse mundo.
O filme, assim como toda a obra do diretor no seu início, é considerado neo-expressionista. Os cenários são muito rústicos e simples, a maquiagem é impressionante, e muitas vezes os atores aparecem machucados, ou com dentes podres, desprovidos de qualquer regra de higiene atuais, o que dá mais realismo ao filme.
O Sétimo Selo foi dedicado a Bibi Andersson e ela, assim como Max Von Sydon, Erland Josephson, Ingrid Thulin, Liv Ullman, Harriet Anderson e Gunnar Bjosrnstrand, que começaram com ele no teatro, se tornaram para sempre “atores bergmanianos” e seguiram carreiras internacionais.
O título é uma referência ao capitulo oito do livro das revelações. A história é simples. Um Cavaleiro e seu Escudeiro voltam das Cruzadas. O país está assolado pela peste. Eles se encontram com a Morte e o Cavaleiro faz um trato com ela: enquanto conseguir contê-la numa partida de xadrez, sua vida será poupada. Na viagem pela terra natal, encontram artistas, fanáticos, ladrões, patifes, mas por toda parte a presença da Morte, empenhada em ganhar o jogo por meios lícitos e ilícitos. No fim, todos, menos os artistas, são arrebanhados por ela. Intelectualmente a trama do filme é entretecida com dois: o da busca, pelo Cavaleiro já desesperado, de alguma prova, alguma confirmação de sua fé, e o da atitude do Escudeiro, para quem não existe nada, para além do corpo em carne e osso, senão o vazio.
O filme articulou perguntas que não se atrevia fazer: quais eram os sinais verdadeiros de que existia um Deus? Onde estava o testemunho coerente de qualquer benevolência divina? Qual era o propósito da oração? A dúvida do Cavaleiro, sua determinação de se apegar aos exercícios exteriores da crença quando o credo interior estava esmigalhado coincidia com a situação de muitos. Mostrou com uma visão simples e totalmente moderna para a época, o relacionamento de Deus com o Homem.
A natureza religiosa da obra de Bergman se manifesta de imediato no filme. Em uma entrevista declarou que utilizava seus filmes para encarar seus temores pessoais, disse ele: “Tenho medo da maior parte das coisas dessa vida” e “Depois daquele filme ainda penso na morte, mas não é mais uma obsessão”, e em O Sétimo Selo ele enfrentou o seu medo da morte. A Morte está presente todo o tempo, e cada um reage de maneira diferente a ela. Deus e a Morte são os grandes pilares do filme, e em grau menor, mas essencial, mostra seus sentimentos sobre o Amor e a Arte.
A tela destinava-se ao divertimento, quem estivesse em busca da verdadeira substância do pensamento abria um livro. Bergman botou isso de pernas para o ar nesse filme, mostrando um cinema não somente para a diversão, mas também para a reflexão.
As pessoas são geralmente muito sérias acerca do que o diretor considera serem questões sérias: Amor, Morte, Religião, Arte. Sua resoluta preocupação com assuntos sérios, mesmo em suas poucas comédias, o distingue e talvez explique porque em certo sentido ele saiu de moda. Ele insiste em enfrentar o todo da vida com seriedade, aborda o total da existência e o que está acima dela, junto com sua religiosidade, transformando-o num estrangeiro de um mundo pós-moderno e em maior parte descrente.
O senso de humor aparece, às vezes sutil e às vezes mais ostensivo como quando a Morte serra árvore para levar o artista, é a cena mais engraçada do filme. Finamente bem humorado – sobre desafios, negociações e as eternas dúvidas e curiosidades em torno de questões metafísicas que atormentaram, atormentam e atormentarão o ser humano. Acredito que Bergman está presente no filme na angústia do cavaleiro que vê sua vida destituída de sentido, e também no ateísmo de seu fiel amigo Escudeiro.
O encontro com a Morte
A cena de abertura dá o tom: antes de qualquer imagem a música Dies Irae começa solene. A tela se ilumina, uma nuvem esbranquiçada que se não estivesse ali deixaria tudo cinza e turbulento. O coro interrompe no corte: uma dramática reelaboração da música de Dies Irae. Uma ave aparece pairando quase imóvel no céu, e o pink noise (silêncio), que é muito usado nos filmes de Bergman, dá ainda mais suspense. Outro corte mostra uma praia pedregosa e uma voz calma e suave lê um trecho do apocalipse, ouve-se o barulho das ondas batendo nas pedras.
O Cavaleiro descansa sobre as pedras e um plano mais fechado nos leva para mais perto da ação: tem um tabuleiro de xadrez ao seu lado, e ele segura uma espada na mão. O Escudeiro também dorme e seu amigo abre os olhos e observa o céu.
O dia está nascendo e Antonius se levanta para lavar o rosto. Logo após ajoelha sobre as pedras e faz uma oração, num intenso plano americano, mas seus lábios não se mexem, talvez não saiba mais rezar. Ele vai até o tabuleiro de xadrez, onde as peças já estão montadas, o silêncio traz uma figura parecida com um monge, um fantasma. O Cavaleiro arruma uma sacola e vê aquela figura. Começam a dialogar (uso de planos gerais): “Quem é você?”, “Eu sou a morte”.
E a morte aparece como um homem, uma presença. Segundo Bergman “Essa é a fascinação do palco e do cinema. Se você pega uma cadeira perfeitamente normal e diz “Eis a cadeira mais cara, fantástica e maravilhosa já feita em todo o mundo”, se você diz isso, todos acreditam. Se o Cavaleiro diz “Você é a Morte”, você acredita nisso” .
Em outro plano a Morte abre seu manto a fim de levar o Cavaleiro, sua pele é muita branca e a “música medieval” impulsiona a ação.
Após o trato sentam-se para jogar xadrez. Antonius parece estar muito calmo diante da tão aterrorizante Morte. Há até um pouco de ironia quando as peças negras são sorteadas para serem jogadas pela morte, que diz para o Cavaleiro, “Bem apropriado não acha?”.
A imagem se dissolve e vemos Antonius numa igreja, olhando uma imagem de Jesus Cristo. Seu rosto, e o talento naturalmente, mas a seriedade e a capacidade também de serenidade desse ator valorizam o filme. É um rosto pensante, a procura de um entendimento da vida, uma indagação antiga, às vezes banal que nos convence. Seus momentos de extrema emoção são quando geralmente ele se vê só, salvo, talvez, por Deus.
As sombras aparecem muito, há muito contraste de claro e escuro e os closes nos personagens são muito usados. Bergman usava muito o close-up porque acreditava que eles mostravam muito da personalidade dos personagens. O sino da igreja toca sem parar, a imagem de Cristo aparece novamente, mas não é uma imagem comum, parece deformada e sofredora.
O Cavaleiro revela sua fé, sua busca. As imagens que estão por perto dele são difíceis de identificar por causa da sombra. Ele confessa esperar o conhecimento da vida, e nós vemos, entre as grades do confessionário que a Morte é quem o ouve. Ela não quer ser reconhecida e nos mostra suas más intenções. O sino cessa e eles continuam a falar de Deus e agora da Morte. Antonius está nervoso, revela sua estratégia para vencer a Morte e mostra todo seu desespero e sua surpresa ao ver que ela o enganou. Um primeiro plano mostra a expressão de seus rostos. As sombras e a escuridão tomam conta de quase toda a tela, e vemos apenas o vulto dos personagens e as grades do confessionário. A Morte vai embora, e ele observa sua mão, o sangue que pulsa nela. Antonius Block se apresenta para os espectadores junto com sua fé, coragem e satisfação, talvez até orgulho de jogar xadrez com a Morte.
Os flagelantes
A cena com os flagelantes é maravilhosa. Começa com a apresentação dos artistas, numa inocente maneira de divertir o público do vilarejo. Eles dançam, cantam, brincam, tocam instrumentos quando a música entra, dando um clima de terror a cena. É um contraste ver a alegria dos artistas seguidas de tanta dor, culpa, desespero e fé dos torturadores: “Eles acreditam que a peste é um castigo de Deus por eles serem pecadores”.
Os olhos de Jof e Mia se enchem de espanto, assim como a de todas as pessoas que vêem a procissão. A música é apavorante.
Eles passam por uma porteira carregando Imagens e Cruzes. Pessoas deficientes, muito magras e idosas impressionam. Estão vestidos como monges, com roupas esfarrapadas, se ouve os gritos e o barulho dos chicotes. Os closes aparecem freqüentemente mostrando o espanto das pessoas que vêem os flagelantes passar.
Essa cena foi feita em um só dia, os extras foram feitos em clinicas geriátricas da cidade.
A dança da Morte
Após todos serem arrebanhados pela Morte, o plano que segue é o de Mia, olhando para o céu com seu filho Mickael e Jof ao seu lado, dentro da carroça. Ela acorda o marido e se vêem a salvo. O céu está claro e a cena é a mais iluminada do filme. Eles parecem felizes, os pássaros cantam e, saindo da barraca, jof observa a montanha. Sua expressão é de espanto ao ver todos eles, o ferreiro e lisa, o Cavaleiro, Raval, Jons e Skat, na mais famosa cena do filme, a Dança da Morte. A imagem do ator se difundi com a da dança. “Dançam rumo a escuridão e a chuva cai nos seus rostos”, “No céu tempestuoso”, diz Jof. A trilha impressiona.
“Você e suas fantasias” diz Mia sorrindo, acredita que tudo não passa da imaginação de Jof. Eles vão embora por uma trilha da encosta, os pássaros voltam a cantar e a música agora transmite paz e alegria.
Essa cena foi feita com muita improvisação, tão em cima da hora que um dos atores (o ferreiro) precisou de um dublê. As condições do tempo eram perfeitas e Bergman não precisou repetir a tomada.
Esta carta é uma maravilha. Bergman não é apenas meu cineasta preferido como é um de meus frasistas preferidos. Esta carta, onde ele se recusa a ir ao Festival de Cannes de 1992, é uma delícia. Devia ser a pessoa que mais respeitava seu íntimo e quem o conhece sabe que tal fato não é sinônimo de egoísmo e sim uma madura Síndrome de Gambardella, personagem principal do filme A Grande Beleza, que dizia: “Tenho 65 anos, não posso mais perder tempo fazendo coisas que eu não quero fazer”. Só que Bergman consegue expressar sua Síndrome com graça. É o mais perfeito “Não, obrigado” que já li.
Quando vi Gritos e Sussurros pela primeira vez, tinha quinze ou dezesseis anos. Nunca pude esquecer a atmosfera do filme, o monte de coisas inéditas que ele me apresentava e meu choque à saída do velho Avenida. Sentia um misto de entusiasmo pela realização de uma obra daquele porte e de amargor pelo realismo do filme. Era como se me dissessem finalmente: “o cinema pode ser algo mais interessante do que tu pensas”. Me deem um desconto, não tinha visto nada parecido antes.
É um filme sobre duas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann) que temem, lamentam e ao mesmo tempo desejam a morte da terceira irmã Agnes (Harriet Andersson). Como quarta personagem principal, há a devotada criada de Agnes: Anna (Kari Sylwan). Improvisando, vou tentar colocar em tópicos fingidamente organizados o que penso sobre o filme depois de tê-lo visto muitas vezes.
As cores. Basicamente, há apenas três cores em Gritos e Sussurros: o vermelho das paredes e o branco e preto que as mulheres vestem. Ou seja, um filme que retrata a morte, o amor, o sexo e o ódio, passa-se em uma casa de paredes e chão vermelhos. Bergman disse não saber exatamente o motivo, afirmou que talvez fosse porque imaginava vermelhas as paredes do útero, assim como as da alma. Deve haver alguma verdade no senso comum que considera tal cor a representação da paixão e da raiva. O que interessa dizer é a saturação de vermelho no filme me hipnotiza, deixando-me apreensivo desde o lento início do filme.
O rosto é o palco. Bakhtin escreveu que o diálogo é o real habitat das ideias, é o local onde elas se transformam e que a mera expressão de uma ideia já bastaria para a alterar. Isto demonstra a importância da interação num mundo polifônico onde nada pode ser visto isoladamente. Bergman prova que o habitat da emoção do ator é seu rosto, fazendo com que vejamos a tela cheia de enormes rostos que falam e, principalmente, ouvem, reagindo à palavras quase sempre antagônicas. A câmara está sempre muito perto, mostrando bocas, ouvidos e olhos. A propósito, notem o título de alguns filmes de Bergman: “O Rosto” (Ansiktet), “Face a Face” (Ansikte mot ansikte) e “Persona” (máscara em grego). O homem era fascinado por rostos! O escritor Fernando Monteiro — imenso admirador de Bergman — reivindica para Joseph von Sternberg a compreensão da força da face humana na tela. Sternberg chegou a escrever: “O cinema é a ARTE DO ROSTO”.
A seguir, elas falarão de suas infâncias.
O ódio e o afeto. A agressividade permanece em estado de latência por grande parte todo o filme, apenas explodindo aqui e ali. Mesmo o momento em que Karin e Maria se acarinham é resultado de lembranças invocadas durante a reparação a mais uma briga. Agnes é dócil e solitária enquanto suporta a doença que a vencerá, Anna é a criada fiel, amorosa e adequada à resignação de Agnes, Karin é ressentida e insatisfeita e Maria é fútil e não tem por hábito sentir remorsos. Deus é silencioso e invisível como sempre e até o pastor acaba confessando sua falta de fé: “Encomendo-a a Deus para livrá-la da angústia causada por esta terra sombria e suja, onde vagamos sob um céu vazio e cruel”.
O puro ódio. A cena em que Karin mutila seu sexo com um caco de vidro — do copo que ela antes quebrara durante uma refeição nada interessante com o marido –, passando após o sangue em seu rosto… Bem, não preciso continuar.
O filme baseia-se no mundo feminino e mais. Os homens são inteiramente inúteis. O médico e o pastor falham em sua tentativa de oferecer qualquer conforto à Agnes e os maridos de Karin e Maria não compreendem suas necessidades emocionais. Mas elas também não são apresentadas como anjos. Todas, talvez à exceção de Anna, são autênticos monstros. Agnes tem uma doença inexorável que a devora internamente; Karin odeia e odeia; Maria leva seu marido à tentativa de suicídio com suas traições e Anna falha com sua filha biológica e com Agnes, apesar do toda sua capacidade de doação. Ou seja, o filme é uma representação de pessoas normais.
As cenas clássicas. Agnes — já morta, em cena assustadora — chama Karin e Maria, sendo recusada por ambas; então Anna a abraça em imitação à Pietà de Michelangelo (abaixo). A seqüência em que Karin a Maria rememoram sua intimidade quando crianças (foto com legenda), tocando uma à outra e o final do filme são absolutamente inesquecíveis (última foto).
A câmera, o tempo e a música. A posição da câmera sempre fragmenta o corpo de Agnes ou a flagra em posições desconfortáveis, sugerindo a doença que destrói seu corpo ao longo do tempo, mostrado em vários relógios na sua faina de registrar o tempo passado. Ouçam as raras intervenções musicais, dedicadas a Bach (com Pierre Fournier, como lembrou Moacy Cirne) e Chopin, plenas de significação.
A fotografia do mestre Sven Nykvist: desnecessário comentar.
Finalizando, diria que Gritos e Sussurros é uma obra de extrema audácia dentro de uma estrutura clássica. Até mesmo a cena final, quando Anna abre o diário de Agnes e lê em voz alta um trecho sobre os tempos de felicidade das irmãs, acompanhado das imagens da foto abaixo, isto é, inclusive no único momento em que saímos da atmosfera de claustro do filme, a sensação é de estranheza, por tudo o que aconteceu antes. A presença da belo e rápido final, por mais convencional que nos pareça, causa espanto.
Odisseu, rei de Ítaca, casado com Penélope, depois de ter se distinguido durante dez anos na guerra contra Troia, está voltando para casa, passando por uma série de aventuras e provações, ficando muitas vezes à mercê de feiticeiros, monstros e deuses vingativos. Penélope o aguarda fielmente, embora assediada por pretendentes – sempre tão gentis, como diria Chico Buarque — que aguardam no banco de reservas, ansiosos por entrarem em campo no lugar do marido desaparecido. Em super resumo, estas são as aventuras do herói Odisseu em sua volta à pátria.
Pois então abrimos o Ulysses de Joyce e vemos a paródia da Odisseia de Homero. A Penélope de Joyce, Molly, não é nada fiel. Bloom é um Ulisses nada heróico, é antes um judeu irlandês de vida comum, que sabe das traições de Molly e Blazes Boylan, mas não pretende lavar a honra com sangue.
Assassinato nunca, visto que dois erros não tornam um certo.
O livro, aliás, não possui situações extremas e apenas se atém a um imenso leque de experiências cotidianas.
Um trecho de Ulysses (Cap. 17, Ítaca):
Cada um que entra na cama imagina ser o primeiro a entrar enquanto que é sempre o último termo de uma série precedente mesmo que seja o primeiro de uma outra subsequente, cada um imaginando ser primeiro, último, único e só, enquanto que não é nem primeiro nem último nem único nem só.
Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente abordagens sexuais inteiramente diversas de tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas e masturbatórias. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é mais pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.
Ulysses é um texto que procura minar as noções de gênero. O romance não promove a superioridade masculina, mas sim eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde a noção de gênero com a criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, está fora dos estereótipos da virada do século XIX para o XX, que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.
Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “É muito comum que o que é pornográfico para uma geração, seja clássico para a seguinte”. A frase parece perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.
Bloom comporta-se estranhamente para um homem da virada do século. Arruma a cama, limpa o lençol, tem sentimentos de empatia para com a mulher grávida, preocupa-se com a filha, morre de saudades do filho morto, têm fantasias de que está grávido. Mais: Bloom sente-se inconformado e invejoso pela centralidade da mulher no processo dar à luz. Seis semanas antes de seu filho Rudy nascer, é visto comprando uma lata de alimento infantil, o que prova para seus amigos que ele não é bem um homem. Pior: dizem que ele, uma vez por mês, fica com dor de cabeça “como uma franguinha menstruada”. Também, como talvez uma mulher o fizesse, ele evita que Gerty o veja de perfil, quer que ela veja seu melhor ângulo. Depois, Gerty faz o mesmo.
Bloom não deseja impedir o adultério de Molly com Blazes Boylan. Ele chega a imaginar uma cena na qual entrega sua esposa a Boylan. Essencialmente, ele permite a infidelidade da esposa para que ela possa experimentar o prazer enquanto ele procura a sua própria e particular satisfação.
Em seu ensaio prévio à última edição do Ulysses, Declan Kiberd afirma que, na verdade, Bloom e sua esposa comportam-se como verdadeiros andróginos. Eles seriam “encarnações das palavras de Freud de que mulheres dominadoras e viris são atraídas e atraentes para os homens femininos”. A sensibilidade associada à feminilidade e a agressividade associada à masculinidade não funcionam para o casal. No entanto, as qualidades femininas de Bloom e as dominadoras de Molly não garantem uma vida sexual em comum e a impressão que fica é de uma incompatibilidade confortável para ambos. Antes do famoso monólogo de Molly, Bloom recapitula o primeiro encontro sexual com a mulher, em consonância com que já sabíamos: “Ela me beijou. Fui beijado. Estava à sua mercê e ela arrumou meu cabelo. Beijado. Ela me beijou.” (A simbologia adquire mais força quando ele recorda que Molly, em seu primeiro encontro, mastigou um pedaço de bolo e, beijando-o, colocou-o quente e mastigado em sua boca).
Ulysses borra a distinção entre os sexos. No episódio “Penélope”, o famoso monólogo de Molly, o leitor entra nos pensamentos dela na cama ao lado de Bloom, que dorme ao final do dia. O monólogo revela a promiscuidade de Molly, suas lembranças de relacionamentos anteriores e memórias de família. Quando lembra da amamentação da filha, ela recorda que algumas vezes amamentou simultaneamente também a Bloom: “Eu pedi para ele chupar meus seios, ele disse que o que saía era doce e mais espesso do que o das vacas”. Enquanto muitos acharam e ainda acham isso o cúmulo da pornografia, talvez seja melhor relacionar a cena à sugestão de que a mulher pode ser a provedora familiar ou que pode rebaixar o homem a uma posição infantil.
Porém, em qualquer hipótese, o texto de Joyce afunda e afunda a masculinidade.
Ele não pertencia ao Departamento de Preocupações e frequentemente licenciava-se do de Sustento. Em nossa casa e em todos os lugares onde ia, suas funções estavam mais ligadas ao Ministério do Lazer, Jogos e Cultura, sem esquecer o de Relações Públicas. Não posso imaginar coisa melhor para uma criança do que um pai sempre presente, brincalhão e meio irresponsável. Desde muito pequeno tive contato com os dois lados do Dr. Milton Cardoso Ribeiro — o pai adorável e o apostador. Meu pai e minha mãe eram dentistas numa época em que os bons profissionais desta área faturavam o que todos nós deveríamos faturar sempre. Ganhavam bem. Só que meu pai direcionava seus ganhos para as corridas de cavalos do Jockey Club. Minha mãe ficava maluca com isto, mas para mim, que não conhecia outra família, aquilo era algo tão normal que suas reclamações eram como a música incidental sob a qual vivíamos tranquilamente. E esta trilha não poderia ser mesmo muito tonitruante, pois meu pai era alguém tão doce que era difícil brigar com ele. Mas a verdade é que ele vivia e se divertia, enquanto ela trabalhava para manter nosso barco sobre as águas.
Ele nasceu em 1927 e morreu em 1993, aos 66 anos. Um dia antes de morrer, dera-me um encontrão por trás no supermercado — uma tradição nossa — e comentáramos sobre um monte de coisas. Estava bem, normal, porém, na manhã seguinte, sofreu um ataque cardíaco. Minha mãe me ligou às 6h da manhã, dizendo teu pai está caído no banheiro. Quando cheguei, ele já tinha morrido.
Sua internet eram os muitos jornais dos quais não se separava e o chatíssimo rádio de pilha que usava para ouvir notícias e a meteorologia. Algumas vezes suas manias tornaram-se incontroláveis, como demonstra naquele caso ocorrido em pleno casamento de minha irmã. Durante a festa, organizada num dos hotéis mais chiques de POA, um amigo da Iracema chegou-se para dizer a ela que um convidado, desinteressado da festa, estava escondido na privada, ouvindo os páreos num radinho de pilha. Minha irmã voltou-se para ele e disse: “É meu pai”.
Não lembro de grandes brigas ou discussões com ele. Lembro é das disputas. Seu perfil de apostador adequava-se perfeitamente a elas. Eu e ele tínhamos um jogo que durou de minha adolescência até sua morte. Toda a vez que ligávamos na Rádio da Universidade — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou, até hoje, supertreinado em descobrir tudo o que de clássico toca no rádio. Hoje mesmo liguei o rádio e disse rapidamente para mim mesmo: “Sarabanda da Suite Nº 2 da Música Aquática de Handel”.
Quando eu tinha menos de 13 anos, nos dedicávamos — sempre antes de dormir — à atividade de imaginar histórias para a música que estivéssemos ouvindo. Lembro dos numerosos tuaregues que acompanhavam o Bolero de Ravel… Dos prelúdios líquidos e cheios de peixes de Chopin… Dos concertos atléticos de Bach… Das histórias de terror que acompanhavam o Concerto Nº 1 para piano e orquestra de Brahms… Desnecessário dizer que meu pai amava a música. Qualquer música. Colocava Mozart, Beethoven, Noel e Cartola no mesmo patamar e misturava na mesma noite eruditos e populares. Como pianista amador, chegou a compor e a dedicar a valsa Férias de Julho a mim e minha irmã.
Uma vez, quando eu tinha uns 12 anos, estava levando nosso cachorro para fazer suas necessidades na rua quando um vizinho me chamou em sua mesa na calçada de um bar. Era à noite. Educado, parei a seu lado. O sujeito começou a conversar, conversar e acabou pegando minha mão. Fugi na hora.
Contei o caso para meu pai e ele quis que eu lhe indicasse quem tinha sido. Dias depois, apontei-lhe o cara, de longe. Era um cliente de seu consultório de dentista. Meses depois, o cara foi lá consultar. Meu pai abriu seu dente, disse para o homem ficar de boca aberta e perguntou se ele conhecia seu filho, Milton, um que andava com um cachorrinho assim assado. O cara passou a suar em profusão… Meu pai perguntou se ele estava nervoso, se estava doendo muito, essas coisas. Rindo, me garantiu que fez tudo direitinho do ponto de vista odontológico, mas que doeu. OK, acrescento que ele podia ser sádico.
Acho que meus pais se amavam. Lembro de gestos de carinho num e noutro sentido. Minha mãe – ela foi uma das primeiras dentista mulheres formadas pela Ufrgs e sua família cruz-altense reclamava de meu pai por deixá-la trabalhar (imaginem se soubessem do resto) – referia-se a ele como um homem que só tinha um só defeito (os cavalos!) e, quando ele morreu, disse-me com um olhar perdido que estava arrependida por ter recebido muito mais amor do que dera. Disse também que sempre sustentara a casa, mas que ao menos seu marido não fazia dívidas, apenas jogava dinheiro fora.
Considerável parte das minhas boas lembranças da infância e da juventude estão associadas a meu pai. Ele era um sujeito engraçado e bem-humorado que participava de tudo e era moderno o suficiente para não estabelecer distâncias. Sempre me senti seu par, fato que parecia ser um problema para os outros pais com os quais mantínhamos contato. Morreu e não lhe disse que aprendi muita coisa com ele, não lhe disse que sabia que era amado, que o amava e que nosso problema era o de ser gente comum, dessa que anda por aí, cega, surda e muda, falando todo tempo em coisas secundárias.