Textos para o Sarau Clara Corleone (III): Rascunho de meu pai

Ele não pertencia ao Departamento de Preocupações e frequentemente licenciava-se do de Sustento. Em nossa casa e em todos os lugares onde ia, suas funções estavam mais ligadas ao Ministério do Lazer, Jogos e Cultura, sem esquecer o de Relações Públicas. Não posso imaginar coisa melhor para uma criança do que um pai sempre presente, brincalhão e meio irresponsável. Desde muito pequeno tive contato com os dois lados do Dr. Milton Cardoso Ribeiro — o pai adorável e o apostador. Meu pai e minha mãe eram dentistas numa época em que os bons profissionais desta área faturavam o que todos nós deveríamos faturar sempre. Ganhavam bem. Só que meu pai direcionava seus ganhos para as corridas de cavalos do Jockey Club. Minha mãe ficava maluca com isto, mas para mim, que não conhecia outra família, aquilo era algo tão normal que suas reclamações eram como a música incidental sob a qual vivíamos tranquilamente. E esta trilha não poderia ser mesmo muito tonitruante, pois meu pai era alguém tão doce que era difícil brigar com ele. Mas a verdade é que ele vivia e se divertia, enquanto ela trabalhava para manter nosso barco sobre as águas.

Ele nasceu em 1927 e morreu em 1993, aos 66 anos. Um dia antes de morrer, dera-me um encontrão por trás no supermercado — uma tradição nossa — e comentáramos sobre um monte de coisas. Estava bem, normal, porém, na manhã seguinte, sofreu um ataque cardíaco. Minha mãe me ligou às 6h da manhã, dizendo teu pai está caído no banheiro. Quando cheguei, ele já tinha morrido.

Sua internet eram os muitos jornais dos quais não se separava e o chatíssimo rádio de pilha que usava para ouvir notícias e a meteorologia. Algumas vezes suas manias tornaram-se incontroláveis, como demonstra naquele caso ocorrido em pleno casamento de minha irmã. Durante a festa, organizada num dos hotéis mais chiques de POA, um amigo da Iracema chegou-se para dizer a ela que um convidado, desinteressado da festa, estava escondido na privada, ouvindo os páreos num radinho de pilha. Minha irmã voltou-se para ele e disse: “É meu pai”.

Não lembro de grandes brigas ou discussões com ele. Lembro é das disputas. Seu perfil de apostador adequava-se perfeitamente a elas. Eu e ele tínhamos um jogo que durou de minha adolescência até sua morte. Toda a vez que ligávamos na Rádio da Universidade — especializada em música erudita –, tratávamos de identificar o mais rapidamente possível qual era a música que estava sendo executada. Isto podia acontecer várias vezes ao dia. Com isto, sou, até hoje, supertreinado em descobrir tudo o que de clássico toca no rádio. Hoje mesmo liguei o rádio e disse rapidamente para mim mesmo: “Sarabanda da Suite Nº 2 da Música Aquática de Handel”.

Quando eu tinha menos de 13 anos, nos dedicávamos — sempre antes de dormir — à atividade de imaginar histórias para a música que estivéssemos ouvindo. Lembro dos numerosos tuaregues que acompanhavam o Bolero de Ravel… Dos prelúdios líquidos e cheios de peixes de Chopin… Dos concertos atléticos de Bach… Das histórias de terror que acompanhavam o Concerto Nº 1 para piano e orquestra de Brahms… Desnecessário dizer que meu pai amava a música. Qualquer música. Colocava Mozart, Beethoven, Noel e Cartola no mesmo patamar e misturava na mesma noite eruditos e populares. Como pianista amador, chegou a compor e a dedicar a valsa Férias de Julho a mim e minha irmã.

Uma vez, quando eu tinha uns 12 anos, estava levando nosso cachorro para fazer suas necessidades na rua quando um vizinho me chamou em sua mesa na calçada de um bar. Era à noite. Educado, parei a seu lado. O sujeito começou a conversar, conversar e acabou pegando minha mão. Fugi na hora.

Contei o caso para meu pai e ele quis que eu lhe indicasse quem tinha sido. Dias depois, apontei-lhe o cara, de longe. Era um cliente de seu consultório de dentista. Meses depois, o cara foi lá consultar. Meu pai abriu seu dente, disse para o homem ficar de boca aberta e perguntou se ele conhecia seu filho, Milton, um que andava com um cachorrinho assim assado. O cara passou a suar em profusão… Meu pai perguntou se ele estava nervoso, se estava doendo muito, essas coisas. Rindo, me garantiu que fez tudo direitinho do ponto de vista odontológico, mas que doeu. OK, acrescento que ele podia ser sádico.

Acho que meus pais se amavam. Lembro de gestos de carinho num e noutro sentido. Minha mãe – ela foi uma das primeiras dentista mulheres formadas pela Ufrgs e sua família cruz-altense reclamava de meu pai por deixá-la trabalhar (imaginem se soubessem do resto) – referia-se a ele como um homem que só tinha um só defeito (os cavalos!) e, quando ele morreu, disse-me com um olhar perdido que estava arrependida por ter recebido muito mais amor do que dera. Disse também que sempre sustentara a casa, mas que ao menos seu marido não fazia dívidas, apenas jogava dinheiro fora.

Considerável parte das minhas boas lembranças da infância e da juventude estão associadas a meu pai. Ele era um sujeito engraçado e bem-humorado que participava de tudo e era moderno o suficiente para não estabelecer distâncias. Sempre me senti seu par, fato que parecia ser um problema para os outros pais com os quais mantínhamos contato. Morreu e não lhe disse que aprendi muita coisa com ele, não lhe disse que sabia que era amado, que o amava e que nosso problema era o de ser gente comum, dessa que anda por aí, cega, surda e muda, falando todo tempo em coisas secundárias.

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