Balcão de Livraria, de Herbert Caro

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Raramente um livro é tão prazeroso para mim quanto foi este. Fui amigo do Dr. Herbert Caro. Durante anos, aos sábados pela manhã, eu e um pequeno grupo de jovens íamos até o porão da King`s Discos, na Galeria Chaves, onde se vendiam discos de música erudita, menos para comprar discos e mais para ouvi-lo falar. As palestras eram sobre quase qualquer coisa, pois ele parecia dominar todos os assuntos relativos à música, literatura e artes plásticas. E havia os dias mais maravilhosos, onde um tema principal não se estabelecia e podíamos falar de Bach, Vermeer, Beethoven, Bosch, Mozart, Canetti, Thomas Mann, Hördelin e da literatura brasileira, tudo misturado. Não eram bem palestras, eram conversas, mas que conversas!

O Dr. Caro tinha algo de muito peculiar. Ele se expressava bem, tinha muito humor e, mesmo sabendo infinitamente mais do que nós, deixava-se interromper a cada momento. Ou seja, ele nos ouvia. Uma vez, brinquei que encontrara um problema em sua tradução de A Montanha Mágica. Ele se voltou para mim com simplicidade e disse que depois eu deveria lhe mostrar onde estava o equívoco. Todos riram, mas ele não. Ele achara natural que eu o corrigisse.

Ganhei este volume de presente de uma amiga da Bamboletras que sabia de minha relação com o Dr. Caro. É uma verdadeira relíquia e estou muito agradecido. Afinal, todos sabem que o Dr. Caro escrevia ainda melhor do que falava, vide suas inigualáveis traduções e notáveis crônicas. E ele tinha um uso peculiar do idioma, talvez apenas explicado pelo fato de conhecer as raízes dos vocábulos.

Bem, vamos contextualizar. O tradutor, crítico musical e erudito Herbert Caro foi um dos grandes alemães que aqui aportaram fugindo da perseguição aos judeus na Alemanha. Chegou em 1935. Antes de viajar, teve aulas de português — sim, ainda na Alemanha, aprendeu suas três mil primeiras palavras na língua de Camões e nossa gramática. Veio para Porto Alegre e, entre outros trabalhos, foi balconista de uma extinta livraria da Rua da Praia, a Americana. Na verdade, além de balconista, era gerente da seção de livros importados da livraria. Lá permaneceu por 5 anos. Enquanto trabalhava, publicava suas crônicas de livreiro no Correio do Povo. A coluna chamava-se Balcão de Livraria. Ele deixou a Americana antes de 1960.

Em razão da alta qualidade dos textos, as crônicas eram reproduzidas por jornais do centro do país. Caro costumava antes mostrá-las a Erico Verissimo, que as revisava, mas a voz é de Caro. (Conheço-a bem por ter  lido durante anos, semanalmente, suas críticas sobre música erudita, também publicadas no Correio).

O livro Balcão de Livraria é de 1960 e traz 17 crônicas selecionadas. Os textos são deliciosos, o humor está sempre presente e é refinadíssimo. A forma como Caro dominava o português é algo absurdamente perfeito. Os temas tratam desde de pedidos errados ou amalucados de clientes, como propostas educacionais para promoção da leitura no Brasil dos anos 50-60, reclamações de que não há no Brasil publicações para livreiros e editores que tragam os lançamentos mensais de uma forma organizada e reflexões gerais sobre o ofício e a vida brasileira.

Garanto-lhes, o livro é de qualidade espantosa.

Leia um trecho do que ele diz sobre vender livros na época do Natal:

“Cabe ao livreiro envidar esforços para impedir os erros. Ele, que tem a obrigação de saber alguma coisa sobre o conteúdo de cada uma das obras expostas, pode servir de casamenteiro entre o presente e o destinatário. Como na maioria das vezes desconhecerá o segundo, deverá indagar do tipo de pessoa que este representa, dos assuntos que lhe interessam e, melhor ainda, dos livros que nos últimos tempos tenha lido com agrado. Embora na época do Natal haja muito movimento, sempre sobrará o tempo necessário para fazer algumas perguntas rápidas neste sentido. No começo, alguns fregueses estranham o pequeno interrogatório ao qual os submete o livreiro, mas depois de pouco tempo notam que desta forma se facilita a escolha. Em última análise ficam bem impressionados e retornam à livraria”.

Herbert Caro, Balcão de Livraria (1960)

Aqui, provavelmente Caro estava falando de Canetti, sempre com humildade, ouvindo seu interlocutor.

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1 comment / Add your comment below

  1. Caro Milton,

    Li seu comentário sobre “Balcão de livraria” do meu amigo Herbert Caro. Procurei entrar em contato, telefonei para a Bamboletra, mas nenhum número atende.
    Duas palavras, à guisa de apresentação:
    Nasci em 1950 em Porto Alegre, onde vivo casualmente até hoje. Fui músico (pianista) até 1974 (solista, camerista e acompanhante de cantores de “Lied”). Quis estudar paralelamente Filosofia, mas como os poucos bons professores tinham sido cassados, estudei Letras na UFRGS de 1969 a 1973. Não gostei do curso, muito superficial, mas li muito por conta própria. Depois de ter de abandonar o piano por motivos de saúde, fiz pós-graduação na Europa entre abril de 1974 e maio de 1979, para ser historiador, e estudei paralelamente Filosofia e Sociologia. Retornei em 1979 e, por casualidade, tornei-me intérprete de conferências dois meses depois, em julho de 1979, trocando a vida pacata do pesquisador pela vida nômade de intérprete, na qual estou até hoje (idiomas ativos: alemão e português). Sou autônomo, mas desde 1979 intérprete de governos, do setor privado (multinacionais), mas também sindicatos e em conferências internacionais de todos os tipos, sobretudo no Brasil e na Europa.
    O Caro foi um grande amigo, se é que pode haver amizade entre pessoas com uma diferença de idade superior a quatro décadas. Ele e muitos outros emigrantes judeus, pessoas cultíssimas, que falavam bem a minha língua materna. Quando a viúva dele faleceu em 1993, adquiri a biblioteca, que usara desde os anos 60. Os livros estão aqui, na Vila Assunção, um dia te mostrarei.
    Informo as minhas coordenadas no fim dessa mensagem.
    Cordialmente,

    Peter Naumann
    Rua Cariri 183
    Vila Assunção
    91900-560 Porto Alegre – RS
    Tels.: (51) 3268-6483, 3268-9763 e 99116-5147 (uso também WhatsApp)
    E-mail: [email protected]

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