Conheci o Dr. Herbert Caro numa loja de discos eruditos de Porto Alegre, a King`s Discos. Lá, eu, ele, o Júlio – que trabalhava na loja – e outros, tínhamos um encontro não marcado mas sempre repetido aos sábados pela manhã. Nós, o grupo dos tarados por música, ficávamos ouvindo as novidades e aprendendo com a inacreditável sabedoria do velho. Quando o conheci, ele já tinha mais de 70 anos. Lembro que tinha 51 a mais do que eu. Não lembro em que ano morreu, deve ter sido entre 1986 e 1990. Creio que Caro não viu a falência do jornal Correio do Povo, onde por décadas publicou suas compreensivas (expressão dele) e lindamente escritas críticas musicais. Como convivi com ele entre meus 20 e 30 anos, era tratado pelo mestre como a criança curiosa que era. Ele tinha atenção especial para comigo e o Júlio, os jovens do grupo, e gostava de me orientar na obra de meus amados Bach e filhos, Mozart, Brahms e Beethoven. Deu-me alguns discos, sempre sob o pretexto de servirem como comprovação de suas opiniões, nunca pelos motivos reais, que eram a amizade e o carinho. Era um alemão que dava de presente um disco e dizia com meio sorriso: “Para aplacarr tua ignorrância”. E se alguém faltasse àqueles encontros, ele reclamava.
Chamávamos o Dr. Caro de “Doktor Carro”, apelido de duplo sentido, pois ao mesmo tempo em que nos referíamos a seu forte sotaque, homenageávamos o grande tradutor de Doutor Fausto (Doktor Faustus) e A Montanha Mágica de Thomas Mann, Auto-de-fé de Elias Canetti, A Morte de Virgílio de Hermann Broch, O Lobo da Estepe e Sidarta de Hermann Hesse, etc. Ele era conhecido por ser de difícil trato, mas gostava de nós e creio que nos levava livres por receio de nossa ironia. Uma vez, pareceu-nos que ele auto-elogiava a tradução (a qual é impecável, insuperável mesmo!) de A Montanha Mágica (uma obra-prima!) e nós começamos a falar sobre a inutilidade de se traduzir uma bosta de livro em que nada acontecia, em que as pessoas ficavam falando sobre o tempo, doenças, guerra e que inaugurava o riquíssimo gênero do erotismo tuberculoso… (Se você não entendeu isto, leia o livro). Depois começamos a falar sobre a “metáfora da Europa” contida na obra e a bobajada alcançou níveis planetários. Viram? Para nós, era facílimo conversar com ele. Ele primeiro ficava com aquela cara escandalizada de alemão rígido: de estão-brrincando-com-algo-que-é-sagrrado-parra-mim. Depois ria conosco. Voltava todos os sábados para nos ensinar e, eventualmente, para apanhar mais um pouquinho.
Inesquecível foi o sábado quando chegaram os 3 LPs com últimas Sonatas de Beethoven tocadas por Maurizio Pollini, pianista falecido há 4 dias. Ele brandia os discos e dizia que aquele monumento não serria esquecido tão cedo. Tinha razão.
Creio que todas as vezes que vi o Doktor Carro foi na loja de discos, a exceção das palestras que ele deu no Goethe sobre a pintura dos mestres holandeses. Ele sabia tudo e ficava irritado quando sua esposa projetava uma página ou um detalhe errado. Não a ofendia, mas ficava visivelmente contrariado.
Outra característica dele era o fato de odiar o calor de Porto Alegre. “A canícula” como ele dizia. Em todos os anos de sua velhice, viajava dia 1° de dezembro e retornava ao final de março quando nossa cidade voltava a ficar suportável. (Eu adoraria poder fazer isso…)
É óbvio que me sinto nostálgico e gratíssimo a ele pelas lições. Sei que muitas opiniões que solto no blog PQP Bach e no Notas de Concerto da Ospa são do Doktor Carro e não minhas.
“Não dê ouvidos à sua mãe”, meu pai sussurrava para mim quando ela criticava Pollini pelo que ela descreveu como excessivo perfeccionismo. Para o pai, arquiteto e compositor, a abordagem estrutural de Pollini revelou novas verdades até mesmo sobre os cavalos de guerra mais familiares, tornando qualquer peça musical uma parte essencial do nosso tempo.
Com Pollini as coisas nunca foram simples – Chopin tornou-se o arquiteto musical, Stockhausen o poeta, Beethoven o filósofo. Muitos de nós nos tornamos melhores ouvintes e intérpretes. Que ele descanse em paz.
Este Inter do início do ano tinha um grande problema. O esquema preferido de Coudet é o 4-1-3-2. Ele não se move disso. É um belo esquema, mas há aquele “1”. O Inter quase cometeu suicídio financeiro por causa daquele “1”. Gastou 4 milhões de euros (R$ 21,6 milhões) por 50% dos direitos de Thiago Maia — realmente um excelente jogador. Mais: trouxe Fernando por um salário que não deve ser baixo e ainda roubou Bruno Gomes quando este estava indo para o Fortaleza. Era uma justificada loucura por volantes, pois Aránguiz apenas quebra o galho como “1”. Acho que atua melhor jogando mais à frente. O “1” precisa iniciar as jogadas, dar proteção à zaga e cobrir os laterais. É muito para Aránguiz, mesmo que ele não permaneça em campo até o final. É um baita jogador que rende melhor mais solto.
Ontem, por exemplo, faltou cobertura para Bustos. O atacante pela esquerda do Ju nos deu um baile. Coudet poderia ter posto o Mallo por ali para acabar com a festa. Não botou. Também poderia usar Bruno Gomes e Rômulo para dar melhor cobertura e também reforçar o meio no lugar de Bruno Henrique e Aránguiz, ambos em noite muito infeliz. Aquele negócio de perder quase sempre a segunda bola nos matou. Gosto muito do esquema do Coudet, mas para funcionar tem que ter um meio muito mordedor desde lá na frente. Isto não ocorreu. Outra coisa foi a ingenuidade do Maurício e a infantilidade do R. Renan. Mas claro, agora é fácil falar. Não vou seguir, mas o fato é que, além desses, muito mais gente assinou essa eliminação.
E temos que enaltecer o Roger Machado, que fez o Juventude jogar mais do que nós. Mereceram ir para a final.
Este romance dinamarquês de 1880 já foi imensamente influente: ele e seu autor foram citados e elogiados por Hermann Hesse, Thomas Mann, James Joyce e Rainer Maria Rilke. E isso é motivo suficiente para lê-lo, claro. Trata-se de um excelente retrato psicológico de um artista fracassado, escrito num estilo marcado por imagens muito surpreendentes e uma análise emocional miraculosamente precisa e realista.
Li este livro justamente em razão dos elogios e referências de Hesse, Thomas Mann e Joyce e, quando o li pela primeira vez, já com mais de 40 anos, ele me emocionou de uma forma inesperada. Conto para vocês os motivos. Quando criança, minha mãe me levava à Igreja Metodista. Eu participava da Escola Dominical. Aquilo de tal modo me impressionou em sua mentira, que me tornei não apenas ateu para a vida inteira, mas me transformei numa criança e pré-adolescente tímido e um pouco raivoso com a estupidez de pessoas que pareciam acreditar — de verdade! — naquelas bobagens de vida eterna, a qual jamais poderia ser eterna por diversas e óbvias razões e que, se fosse, talvez nomeasse representantes de maior envergadura ética e intelectual. O sorriso dos religiosos me era extremamente desagradável. Só que aquilo parecia ser algo apenas meu e tratei de me recolher nos livros e no futebol, já que tinha certeza que quase todo mundo era imbecil. Sim, este foi um grave problema para mim entre meus 5 e 12, 13 anos. Tive uma infância em que procurava observar onde estavam as fissuras nas pessoas.
Bem, acabo de reler o livro em voz alta para minha mulher e ele se manteve em alta estima, apesar de seus claros defeitos. Vamos lá.
Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen (1847-1885) assemelha-se ao realismo desiludido de escritores de meados do século XIX, como Flaubert, Tchékhov e Ibsen. Sua ênfase em nossa fragilidade e nos processos biológicos que conduzem à morte, juntamente com sua retórica ateísta, o assemelha ao naturalismo de Hardy ou Zola. Seu pouco enredo parece Joyce. A descrição de estados psicológicos muitas vezes mórbidos e seu foco no artista como mártir de uma sociedade incompreensível é um mérito que o aproxima também de Dostoiévski, Machado ou Hesse.
O romance de Jacobsen reflete e acelera o fim de muitas posições antigas. O autor, que traduziu Darwin para o dinamarquês e que morreu jovem após uma longa luta contra a tuberculose, conta a história de um personagem que tenta viver, amar e fazer arte quando todos os ideais de gerações anteriores já estão desacreditados pela revelação contínua de que um ser humano é apenas outro animal.
Niels Lyhne tem uma mãe apaixonadamente idealista e um pai prosaico, empresário e agricultor. Esses dois puxam o jovem Niels em duas direções diferentes, nenhuma das quais será capaz de apaziguar sua necessidade de compreender a realidade. É claro que isso não fica tão claro e definido na consciência infantil de Niels como eu expresso aqui, mas está tudo lá.
O romance acompanha Niels desde a infância até o fim prematuro de sua vida e é organizado em torno de seus principais relacionamentos, principalmente com uma série de mulheres idealizadas, juntamente com amigos do sexo masculino que atuam como contrapesos e, às vezes, rivais eróticos.
Embora a prosa de Jacobsen muitas vezes consista em pura anotação de estados psicológicos — ela é muitas vezes sem ação –, ele também é um escritor de cenas eróticas memoravelmente vívidas que transmitem a sensualidade avassaladora até mesmo de momentos aparentemente triviais, como quando Niels encontra sua prima mais velha, Edele, que vem para ficar com a família pouco antes de sua morte prematura por tuberculose, a primeira de muitas mortes precoces na história. O que é aquela cena das flores e a posição de Edele no divã?
A morte de Edele leva Niels à sua primeira rebelião contra Deus, a divindade cruel que tirou uma vida tão jovem e bela. Ele faz um longo e irrespondível discurso mental contra aquela injustiça.
Depois, quando o amigo aparentemente pouco artístico Erik vai a Copenhague para se dedicar à escultura, Niels o segue e se apaixona pela cidade. Lá ele tem um caso de amor abortado com uma viúva mais velha e experiente, a Madame Boye. Soando como uma das heroínas feministas de Ibsen, Boye é também a primeira a dizer a Niels que a sua idealização das mulheres, da qual penso que a prosa lírica de Jacobsen era cúmplice, é, na verdade, opressiva e destrutiva. Sim, esta parte é genial.
Após o caso de Niels com Madame Boye terminar com a retirada dela para a segurança financeira e social burguesa, Niels perde a sua amada mãe, cuja busca apaixonada pelo ideal deu início a tudo.
Então Niels e Erik se apaixonam pela mesma mulher, uma adolescente aparentemente inocente chamada Fennimore. A escolha de Erik, seu arrependimento por essa escolha e seu consequente relacionamento desastroso com Niels levam o romance ao seu clímax emocional, e percebemos que todo relacionamento nesta narrativa terminará com uma morte física ou com o retorno ao rebanho da sociedade normativa.
Ou as duas coisas ao mesmo tempo, como prova a conclusão do romance: Niels afinal encontra a felicidade com outra jovem. Eles se casam, têm um filho e juntos defendem o ateísmo e o humanismo (“Deus não existe e o ser humano é seu profeta”, Niels havia afirmado anteriormente), tanto que isso choca seus vizinhos. No entanto, diante de mais uma morte prematura inexorável, será que fé retornará? A resposta varia de acordo com o personagem moribundo, mas o próprio Niels termina como o herói solitário e íntegro, confrontando a morte e confirmando que não existe Deus, nem transcendência, nem salvação.
Esse resumo e esses trechos deveriam indicar por que o romance se mostrou tão influente. É um participante muito ilustre em uma linha de romances que vai desde A Educação Sentimental, de Flaubert, de Melville, até O Retrato do Artista Quando Jovem, de Joyce, e A Montanha mágica, de Thomas Mann, romances nos quais seus protagonistas não conseguem se desenvolver como bons cidadãos ou grandes artistas, esmagados como estão por uma sociedade e um cosmos indiferente.
Niels Lyhne também é um livro reconhecidamente falho. Como o método narrativo de Jacobsen é principalmente descritivo e não dramático, muitas vezes carece de tensão, e a complexidade de seus personagens tende a ser afirmada de forma abstrata, em vez de retratada de forma vívida. Georg Lukács, na sua Teoria do Romance, criticou o livro por estes motivos. Ele diz que o romance de desilusão de Jacobsen, que expressa em maravilhosas imagens líricas a melancolia do autor sobre o mundo, desmorona e se desintegra completamente. A vida desse herói, que deveria se tornar uma obra de literatura é, em vez disso, um fragmento pobre, transformada em uma pilha de escombros. O romance seria uma bela e irreal mistura de voluptuosidade e amargura, tristeza e desprezo, jamais uma unidade. Uma série de imagens e aspectos, mas não uma totalidade de vida. Vejo tudo isso no livro, mas gosto dele mesmo assim.
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Poesia é uma coisa complicada. É muito fácil ser ruim e alguém que faça uma boa leitura muitas vezes engana o ouvinte. Quando vai para o papel, pouca coisa sobrevive.
Por isso, fiquei surpreso com o lançamento da última sexta-feira. Em primeiro lugar porque era anunciada a página onde estava o poema. Depois porque cada participante da festa lia um. E os poemas sempre sobreviviam, seja a uma leitura um pouco pior, seja ao acompanhamento das palavras no papel. A poesia mostrava uma dimensão a mais do que o comum.
Falo do livro Na outra ponta da noite, de Lilian Velleda, lançado na Bamboletras sexta-feira passada. Poesia madura e exigente, como disse Paulo Scott. Poemas lindos e cultos, para serem lidos mais de uma vez e que crescem a cada leitura.
Gostei muito. A Livraria Bamboletras sente-se honrada pela grande noite de sexta-feira.
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Certamente, Nyels Lyhne é um dos melhores livros que já li. Um pouco verboso demais, mas um clássico extraordinário.
Este livro do dinamarquês Jens Peter Jacobsen foi lançado pela Cosac em 2000, com uma segunda edição em 2001. Hoje, usado, custa uns R$ 700 (280 páginas). Nunca foi relançado, um completo absurdo.
Eu o estou relendo, agora em voz alta para a Elena, e nele redescobri trechos que parecem explicar minha pré adolescência melhor do eu jamais a entendi. Refiro-me à minha revolta contra Deus. Aquilo me fez uma pessoa diferente das outras e empurrou-me para o silêncio e para uma timidez sempre desconfiada. Só me soltava falando sobre ou jogando futebol. Quem me conhece sabe que aos 20 eu já não era assim.
Nyels Lyhne é um romance de formação e estou na página 70. Engraçado, não lembro do que virá, mas sei que, após a leitura que fiz lá em 2000, escrevi na primeira página que era “o livro perfeito”. Ou um deles.
Dia desses, eu e a Elena estávamos na Academia. Eu estrebuchava numa sala e ela em outra. É fato sabido que a Elena, vestindo qualquer coisa — até mesmo as camisetas antediluvianas que usa em casa — é uma mulher muito bonita e charmosa.
Pois então ela chega até onde estou dizendo que um Sr., quando ela liberou um aparelho, beijou-lhe a mão.
Homem moderno e descolado que sou, pergunto como ele beijou. Ela repete o gesto do cidadão e detecto alguma devoção na atitude.
Como russa, ela me pergunta se aquilo era um agradecimento pela cessão do aparelho ou outra coisa.
Homem esclarecido que sou, penso em esquartejar todos os velhos, gente da minha idade, presentes no local e respondo com um sorriso que ele queria outra coisa.
— Mas recém saí do hospital, tô triste, um caco, por que ficam olhando?
Homem seguro que sou, não respondo e fico fazendo séries de abomináveis, pensando que preciso acabar com minha barriga naquele mesmo minuto.
P.S.: A Elena me corrige: ela não passou o aparelho para o seu admirador, ele foi até ela, pediu licença e beijou sua mão.
A escritora foi à escola do Douro falar sobre os seus livros, em particular, e sobre a leitura, em geral – com alunos do ensino secundário. Uma sala cheia, como gosta. Foi recebida pela pessoa responsável pela biblioteca. Perguntou-lhe se a escola tinha adquirido os livros sobre os quais ia falar. Não, senhora. A escritora declarou que essa tinha sido uma condição solicitada: aquisição de livros da autora para a biblioteca escolar. Um de cada. Bastava. “É que não é coerente nem profícuo falar com os alunos sobre livros se não estão posteriormente disponíveis para leitura.” A pessoa nada sabia sobre o assunto, mas gentilmente afirmou que podia falar com o senhor diretor, que disse ter a intenção de estar presente na conversa com os alunos. “Muito bem”, respondeu a escritora.
Subiram para o auditório. As turmas entraram com os professores. Primeiro o 12º ano, à frente, depois o 11º, entalado a meio da sala, a seguir duas turmas do 10º, que preencheram os lugares de trás. Alunos com bom ar. Giros. Interessados.
A escritora preparou o seu cenário de trabalho, o caderno, os livros, ajeitou as mesas, tal como precisava delas, e ficou sozinha à frente, à espera. Entrou um homem e colocou-se em pé, do lado esquerdo. Não falou com a escritora nem se apresentou. Pela atenção aos alunos parecia um professor acompanhante ou um auxiliar educativo, pensou a escritora, sem se preocupar. O homem foi trocando palavras com alguns alunos. O tempo passava e nada acontecia. A certa altura a escritora perguntou em voz alta, de forma a ser ouvida por toda a sala, “quem é que faz a introdução desta sessão?” Alguém haveria de saber. O homem respondeu “faço eu”. A escritora disse “ok” e aguardou. Eram 10h40. Às 10h45 perguntou a que horas acabava a sessão, porque precisava de calcular o tempo. O homem respondeu “às 11h30”. A escritora pensou “tenho pouco tempo” e avançou que era melhor começarem. O homem respondeu que estava à espera de uma turma de 10º. A escritora calou-se. O homem continuou a falar. Esperou-se. O homem conversava com alunos do 12º. A escritora olhou para o relógio e verificou que faltavam cinco minutos para as 11, altura em que afirmou: “temos de começar”. O homem conformou-se e anunciou “temos de começar sem os que faltam.” Começou por agradecer aos alunos a disponibilidade para estarem ali. A escritora pensou que a sessão decorria em tempo de aula, com os respetivos professores. O homem declarou que os hábitos de leitura eram importantes, ele próprio lia bastante no contexto da sua profissão. Neste passo do discurso, a escritora olhou-o. Ouviu-o agradecer aos alunos a sua presença ali. A dela, escritora. Voltado para os alunos. Anunciou que a escritora “vinha falar de um livro sobre cães.” A turma que faltava entrou, finalmente, e o homem resumiu para os recém-chegados aquilo que já tinha dito. A escritora pensou “lá se vão mais dois minutos.” Felizmente, o homem concluiu a introdução, percorreu a lateral na direção da porta e saiu. A escritora ficou a vê-lo sair, boquiaberta. Quando a porta se fechou a escritora ouviu-se a exclamar “mas foi-se embora? Mas ficamos sozinhos, só eu, os alunos e professores das turmas?” Os alunos riram-se, os professores das turmas puseram os dedinhos no ar, sim, estavam ali. A escritora não perdeu tempo: “ah, ok, tudo bem, vamos lá então começar, porque tenho muito pouco tempo para falar.” A mulher pega no “Caderno de Memórias Coloniais”, levanta-o bem alto e diz “trouxe este livro para oferecer à vossa biblioteca. A vós. É um livro do qual as bibliotecas não costumam gostar, não costumam adquirir por causa de um certo palavreado que vocês usam com abundância nos corredores, de maneira que resolvi trazê-lo eu para estar disponível sem constrangimentos. Se por acaso a leitura vos for negada, façam-me saber através das redes sociais. Tenho outros livros meus para vos oferecer, o que farei dentro em pouco, mas não quero sair daqui sem deixar este aviso.” E quando levantou o “Caderno” bem alto e disse “se a leitura vos for vedada avisem-me”, a mulher percebeu que estava capaz de limpar sebo. A pessoa responsável pela biblioteca disse lá do fundo “vai estar, vai estar.” A escritora respondeu “ótimo, perfeito, é isso que quero garantir.”
A conversa correu lindamente, embora o tempo fosse escasso. Os alunos mostraram interesse em ler. Um belo encontro, como é raro.
Lanço agora eu um desafio:
– quem seria o homem que apresentou a escritora do livro sobre cães? A escritora não faz ideia de como se chama.
– porque motivo o homem não se apresentou, não falou diretamente com a escritora, não lhe agradeceu a sua presença, não se despediu e nunca estabeleceu contacto visual?
– a escritora pergunta-se se teria tido a sorte de manter um ligeiro contacto formal, porém um contacto, caso fosse o Valter Hugo Mãe, o Afonso Reis Cabral, o José Luís Peixoto, o João Tordo ou, e isso, sim, seria relevante, o José Rodrigues dos Santos ou o “tenham noção”.
E é só isto que a escritora me pediu para relatar no Dia Internacional da Mulher. Por ser o dia que é e por ter prometido à sua alma que nunca mais calaria o que não pode calar-se.
Ilustração recolhida em https://www.annesiems.com/. Vejam o trabalho incrível de Anne Siems, a quem não pedi autorização para reproduzir a ilustração.
Se a autora aqui vier ter, informo que este texto não tem fins comerciais, peço desculpa e agradeço a sua ajuda.
Várias e boas conversas ocorreram hoje à tarde na Livraria Bamboletras. Um velho professor de literatura conversou comigo e com quem estava próximo sobre o “balaio de preconceitos” que aflorou nos últimos dias. Há os bolsonaristas que criticam O Avesso da Pele sem tê-lo lido, claro, mas há gente mais próxima de nós que só consegue falar nos poucos palavrões do livro e que o acusam de ser, pasmem, um livro racista por causa de uma cena de séquiço da qual, sinceramente, não lembro. A cena seria racista ao inverso! Ou pornográfica… Qualquer coisa serve para acusar. E meu amigo perguntou: quantos livros acusados de pornográficos se tornaram clássicos para a geração seguinte? Um monte. É só o tempo de esvaziar o balaio.
O estranho é que a história do pai sumiu da boca desses caras. O cerne virou coisa secundária. A falência educacional de nosso país descrita no Avesso é terciária. O balaio transformou o livro em outra coisa.
Os outros papos foram mais legais, excetuando-se aquele sobre Israel…
Por respeito, procurei uma foto atual de Juliette Binoche. Une photo d’aujourd’hui. Não queria uma da jovem atriz. Encontrei esta de 2022 no Festival de Berlim. Ela não para, faz filmes e mais filmes, sempre brilhantemente. Ainda bem.
Ela diz que os diretores gostam de colocá-la em papéis dramáticos e que ficam desconcertados quando a conhecem porque ela passa seus dias fazendo piadas, muitas vezes inconvenientes ou autodepreciativas. Te compreendo, Ju.
Hoje, está completando 60 anos. Gosto demais da poesia de seu rosto, assim como da inteligência que transborda de seu olhar. Parabéns, deusa.