Weblogger e E-mail Surpreendente

Publicado em 30 de setembro de 2003. Vejam como são as coisas…

Sexta-feira, num momento de loucura, resolvi tornar-me assinante do Weblogger. Por R$ 9,90 mensais, eu seria feliz, receberia suporte e serviços diferenciados. Como prêmio pela assinatura, imediatamente os comentários de meu blog deixaram de funcionar. O problema verificou-se na própria sexta e estendeu-se por todo o fim de semana. Quem deu o sinal foi minha irmã, que iria viajar, mas antes desejava deixar um carinho para a Bárbara nos comentários. Não conseguiu. No dia seguinte, telefonei para o Terra atrás do “suporte diferenciado” e eles lavaram as mãos: o Weblogger é uma parceria deles e eu teria que deixar uma mensagem no “Fale Conosco” do site. Até domingo à noite, eu tinha sido olimpicamente ignorado. Somente hoje, segunda-feira, recebi um atencioso e-mail dizendo que tudo estava regularizado. Vou testar.

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Porém, na madrugada de sábado para domingo, fui ver se havia novidades no blog e na caixa de correspondência. O blog continuava na mesma, mas alguns de meus 6 leitores haviam mandado e-mails na impossibilidade de comentários. Havia um novo entre eles… Era simplesmente de Fernando Monteiro, escritor brasileiro, autor do grande Aspades, ETs, etc. (1997). Ele agradecia uma pequena referência (de meia linha) que lhe havia feito no blog e dizia que tinha lido alguns de meus textos. Elogiou-os com imerecida sabedoria, demonstrando claramente que os lera e ainda desejou um feliz aniversário para Bárbara… Inflei, subi aos ares e, feliz como o diabo, dirigi-me ao berço como Linda Blair em “O Exorcista”. Acordei a Claudia para contar-lhe a novidade – ela fez ahã para tudo (no outro dia não lembrava de nada) – e fui dormir muito bem.

Aspades tem trajetória e argumento curiosos. Depois de escrevê-lo, o pernambucano Fernando Monteiro submeteu-o a diversas editoras brasileiras. A maioria delas nem se dignou a responder. Ele ficou a ver navios e, talvez inspirado por eles – os navios, bem entendido -, enviou seu livro a uma editora portuguesa. De lá, não somente recebeu atenção, recebeu também aceitação, e depois publicação e elogios. Só então a brasileira Record resolveu lançar o “inédito” em nosso país… Não fosse triste, daria para rir. Aspades ficou famoso em Portugal, enquanto nós nem imaginávamos sua existência.

A parte principal do livro é a biografia íntima de um cineasta fictício, Vasco Aspades do Carmo. A história pessoal de Aspades se embaralha com sua obra. Acabo de usar o verbo “embaralha” e este talvez nos faça pensar num livro obscuro e complicado, mas não é nada disto. Sua vida e intenções como criador nos são apresentadas em texto de primeira linha, elegante, poético e livre de lugares comuns. Depois, há uma narrativa que seria parte do espólio intelectual do cineasta, já morto. Ao final, há uma série de narrativas curtas, aparentemente desconectadas de Aspades, e que devem ter deixado os editores brasileiros transtornados, apesar de sua perfeita lógica interna. Para esta parte do livro, talvez seja melhor acolher o conselho de Isak Dinesen e aceitar que, em contato com literatura genuína, não é mau renunciar à total compreensão de um texto. O fato de ter sido multirejeitado diz muito sobre a inteligência de nossas editoras. Se fosse você, eu leria Aspades, ETs, etc. não só para estabelecer contato com a obra de Fernando Monteiro, mas para ter o ganho secundário de constatar até onde a burrice e a falta de convivência com a cultura nos pode levar.

Outros livros de Fernando Monteiro:
– A Cabeça no Fundo do Entulho (1999) – Prêmio Bravo! de Literatura
– T. E. Lawrence: Morte num Ano de Sombra (2000)
– A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro (2001)
– O Grau Graumann (2002)

(Um amigo bastante confiável recomendou-me os dois últimos, principalmente Graumann. Acabo de comprá-los.)

Abaixo, coloco trecho de uma entrevista com Fernando Monteiro, onde ele nos explica o surgimento de Aspades. Ciao, até a próxima.

Em outubro de 1995, num sábado, sentei diante do micro e comecei a escrever sobre uma pessoa fictícia, um português, cineasta, intelectual – assim como se iniciasse um ensaio sobre Antonioni, Resnais, Manuel de Oliveira… Vi o homem, claramente: podia dizer onde tinha nascido, como penteava o cabelo com a mão espalmada… e logo estavam vindo os títulos de alguns dos seus filmes. Escrevi 22 laudas nesse primeiro sábado – e, como estava estreando no manejo do computador, acionei algum comando errado… e apagaram-se todas as 22 páginas. Fiquei desesperado. Achava que tinha começado uma “obra-prima”, que tinha perdido o começo do livro definitivo… Entrei em pânico. E resolvi desistir da história, perdida, do cineasta fictício.

No sábado seguinte, no entanto, sentei de novo diante do teclado do micro, e, aí, mudando completamente o tom que havia usado na primeira tentativa, refiz um caminho de pedras, sem nada da sensação estranha daquelas 22 páginas escritas sem quase levantar da cadeira. Reencontrei o cineasta Vasco Aspades pelo caminho pedregoso do esforço cerebral e consciente, e ele foi voltando a tomar corpo diante de mim, eu sinceramente acreditando na “sua” vida, nos “seus” motivos, nas “suas” idéias sobre os filmes e a vida.

O Nobel de Doris Lessing

O Prêmio Nobel de Literatura é uma láurea às vezes geopolítica, às vezes literária. Foi geopolítica, por exemplo, a premiação de Nadine Gordimer em 1991 — lembrem que o apartheid foi abolido em 1990 por Frederik de Klerk e a Academia Sueca entendeu ser interessante mostrar ao mundo que havia escritores por lá — ; foi novamente geopolítico quando deu seu polpudo cheque à ridícula Toni Morrison em 1993 — presumiram que seria a hora de premiar uma mulher negra? — ; chegou a níveis rasantes quando chamou Alexander Soljenítsin em 1970, logo após ter concedido um prêmio verdadeiramente literário a Samuel Beckett em 1969. Aliás, a premiação a Soljenítsin parece ter causado tal espanto aos próprios acadêmicos – o único e duvidoso mérito literário do escritor era o de ser um notório dissidente soviético — que, no ano seguinte, resolveram dar o prêmio ao comunista Pablo Neruda durante o governo de Salvador Allende.

Pode acontecer também de um prêmio geopolítico alcançar grandes escritores. Em 1976, a Academia quis dar TODOS os prêmios a norte-americanos em razão do bicentenário de sua independência e o Nobel de Literatura acabou com o grandíssimo Saul Bellow — na verdade um canadense naturalizado. No ano passado, outro gol: quiseram dar uma demonstração de como oriente e ocidente poderiam conviver pacificamente e deram a grana ao extraordinário Orham Pamuk, autor nascido e naquela época morador de Istambul, a cidade que em que se pode ir da Europa para a Ásia e vice-versa atravessando-se uma ponte. No retrasado, a Academia quis ser apenas literária e deu a Harold Pinter um belo Nobel.

Já o de Lessing é mais complicado de interpretar. Dona de um sobrenome que encontra melhor eco na literatura alemã, ela é uma escritora que foi lidíssima entre os anos 60 e 80 e que curtia uma dourada quase-aposentaria na Inglaterra. Era feminista e comunista, tornando-se apenas o primeiro nos anos 90. Aos 87 anos, ainda publica livros cada vez menos lidos e elogiados. É, de fato, uma escritora que deveria parar ao invés de seguir publicando novelinhas secundárias.

Eu li mais de vinte livros dela e considero The Golden Notebook (1962; no Brasil O Carnê Dourado), Memoirs of a Survivor (1974; no Brasil Memórias de um Sobrevivente) e The Summer Before the Dark (1973; no Brasil, O Verão Antes da Queda) livros autenticamente grandiosos e importantes. Ela também escreveu duas famosas pentalogias: a muito esquerdista série Filhos da Violência, que é bastante boa e onde aparecem dois notáveis personagens: Martha Quest e Anton Hesse; e a chatíssima Canopus em Argos: Arquivos, que ficou famosa no Rio Grande do Sul por ser amada e idolatrada por Caio Fernando Abreu. Coisas de nosso Rio Grande…

Doris Lessing não é uma escritora de linguagem sutil. Sua frase é direta, rápida e não podemos falar numa prosa elegante. Tem notável habilidade para construir personagens e a polifonia de seus livros é bastante original, pois não é formada por apenas por vozes de personagens, mas estes recebem o auxílio de situações e ações, que muitas vezes os contradizem. Não é pouco, porém…

Thomas Pynchon, Philip Roth e Antonio Tabucchi mereceriam muito mais o prêmio. Permanecem, contudo, na excelente companhia de Tolstói, Proust, Joyce e Borges.

O Brasil só poderia ganhar um prêmio geopolítico, só que andamos muito pouco dramáticos. Não punimos torturadores, não nos preocupamos com o papel da Amazônia no aquecimento global e achamos Ariano Suassuna um gênio… Nosso estilozinho deslumbrado low-profile não está com nada.

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A visita de Cláudio Costa foi o esperado, isto é, perfeita. Convenceu-nos a uma retribuição em Minas. Vamos, é claro. Ninguém nos convida impunemente… Não nos surpreendeu o fato de ele ser casado com uma pessoa tão querida e agradável quanto a Amélia, a gente sempre fica maravilhado ao ganhar mais uma amiga. Incrível seu entendimento com a Claudia.

Publicado em 15 de outubro de 2007

O mau amigo de Marcelo Backes

Pois minha atividades no Sul21 andam tão açambarcantes que eu acabei esquecendo de avisar que Três traidores e uns outros, do meu amigo Marcelo Backes, teve lançamento na Livraria Travessa, no Rio de Janeiro, no último dia 16. Li Três traidores ainda antes da revisão final. Enchi o saco do Marcelo num longo e-mail em que corrigia principalmente erros de digitação… Ontem, para minha enorme culpa, recebi o volume da Editora Record pelo correio. Sim, terrível, esqueci. Não que meu blog vá fazer alguma diferença para o sucesso do livro, é que estamos todos tão empenhados na evolução do Sul21 que acabamos — eu, a Nubia, a Rachel, o Igor, o Prestes, o Bruno e o Seadi — deixando de lado a vida pessoal.

Ontem, comecei a ler o livro do Marcelo. Está tão diferente que nem parece o mesmo. Desconheço sua forma de trabalho; apenas vi que as coisas parecem muito organizadas em seu computador, mas penso que tenha recebido uma primeiríssima versão. O primeiro capítulo já foi um conto que li faz uns dois ou três anos. Ele reaparace muito modificado e melhorado, apresentando um narrador mais presente, o qual deverá tomar conta do livro. O Backes escreveu num de seus livros que Milton Ribeiro era o “melhor leitor não profissional” que ele conhecia, mas minha primeira leitura de Três traidores e uns outros foi um fracasso. Por algum motivo, quando abri o arquivo com o romance, li a relação de capítulos como se fosse uma relação de contos  — culpa talvez de lido o primeiro capítulo com um conto no passado — e acabei lendo-os em intervalos de 10 ou 15 dias, pelo simples fato de que costumo carregar livros comigo e não folhas A4. O resultado é que simplesmente não me dei conta de que o personagem principal era o mesmo, narrando quatro episódios de sua vida em sentido cronológico inverso.

A sensação que tive ontem à noite foi a de ler outro livro, não aquele de há quase dois anos. Logo que terminar, mando notícias para este blog, OK? E, bem, peço descupas ao Marcelo. Devo estar no título do livro no papel de uns outros.

Paixão Côrtes é o patrono da Feira do Livro de Porto Alegre de 2010

Ser patrono da Feira do Livro pode ser humilhante. Lembro da cara constrangida de Charles Kiefer, em 2008, de braços dados com Yeda Crusius e Mônica Leal. Aquele foi o alto preço cobrado pela vaidade. Lembro da cara “tô nem aí” de meu colega de daltonismo Carlos Urbim no ano passado. Já o folclorista Paixão Côrtes sempre militou na grande imprensa e receberá quaisquer companhias com naturalidade. Estive na cerimônia de escolha do novo patrono. Paixão fez um belo discurso desculpando-se pela idade (83 anos) e pelo marca-passo que o tornará um patrono comedido. Paixão é um Ariano Suassuna low profile. É menos talentoso e bem menos caudilho que seu colega nordestino, pois há um lado positivo em quem não consegue pontificar de forma tão completa.

Hoje li críticas à Feira de Porto Alegre. Seria apenas uma grande  livraria comercial. E há alguma que não seja comercial, mesmo dentre as simpáticas pequenas livrarias? Mas concordo com uma das críticas: há um fato que torna a de Porto Alegre e todas as Feiras — incluindo a Bienal de São Paulo e a Feira bonairense — iguais: são imensas e enjoativas livrarias com mais ou menos os mesmos livros. Mas há que saber usar o evento. Há uma interessante programação paralela que é gratuita e que apenas quem não se interessa por cultura pode ignorar. Em razão disso, ainda dou vivas à Feira de Porto Alegre.

Sobre Ulisses, de James Joyce (comentários que são colaborações)

Por Charlles Campos

Uma breve intromissão do dono do blog: afora a demonstração de conhecimento e vivência literária, o que me interessou no comentário do Charlles foram as afirmações que costumam ser evitadas por quem “canta” as qualidades do romance de Joyce: sua falta de sutileza, de coqueteria, sua essência antiburguesa e até antiliterária. Acho que ele resumiu bem uma característica que  tentei expressar sem o menor sucesso — “romance duro, engraçado, divertido, complicado, pornográfico, sexual e erudito”.

Também gostei muito das observações de outro leitor, Raphael Gomes, que escreveu assim:

Realmente o que mais afasta o leitor dos livros do Joyce é a idéia preconcebida de que Joyce é difícil. Mesmo mal de que sofre Beckett. Pobres irlandeses… Se você pega um livro com a convicção de que não irá entendê-lo,  já entra em campo perdendo. Ulisses é a epopéia do homem comum, e mesmo que não tenha sido escrito para esse homem comum, também não é privilégio apenas de quem, para falar da dor nas costas da avó, se expressa no mais erudito/vernacular jargão filosófico/teórico/literário, coisa que aliás, Joyce nunca fez.

E saio de cena deixando a palavra ao Charlles:

Esse é um dos livros em que o enredo é o de menos. Importa a incrível vivacidade e energia verbal de Joyce. É o anti-limite de sua superioridade como escritor acima de todos os outros_ de Mann, de Faulkner, Proust, Kafka_ que iria subir à estratosfera e se perder com o livro seguinte, o ilegível Finnegans Wake. Trata-se de uma brincadeira bem urdida, uma ciranda calculada na espontaneidade de um severo trabalho de anos, não uma tentativa, mas uma culminação do resumo do ser humano e de sua história, e um enorme deboche à febril ciência da psicanálise (se tudo que passa pela cabeça de um homem comum é divinamente banal, é ridículo sistematizar seu comportamento contraditório numa cabala do subconsciente). Ama-se Bloom e sua esposa, ama-se Dedalus e o excessivamente extrovertido Buck Mulligan, com todos os seus pecados, suas desimportâncias, suas carências.

É o romance da falta de sutilezas, da falta de coqueteria, o romance essencialmente não-burguês (não ANTI-burguês, pois revela o enorme descaso do autor para contrapor uma reação à uma sociedade medíocre), não-científico, e, por mais que possa ser surpreendente, não-literário. Dedica-se todo à celebração da literatura, mas é anti-empolação e anti-oitocentismo. Tanto que depois de Ulisses, aboliu-se a possibilidade de escrever como Victor Hugo, Sully Prudhomme, Romain Rolland, e outros. Ulisses aboliu a literatura em diversos países, obrigando os novos escritores à adaptação. É a suprema manifestação do humor, do humanismo, da redenção velada. Uma mistura de Nona Sinfonia com a fuga da última parte da Sinfonia Júpiter, com cabrioladas de um jazz que abriu as portas para as correntes de ritmos de Coltrane e dos minimalistas. O maior mérito de Joyce foi ter controlado sua extraterrestridade para dar à obra um caráter perfeitamente legível, pois seria natural que depois de ter rompido todos os limites, seu último passo seria Finnegans Wake, assim como o passo seguinte_ o estilo tardio_ de Beethoven fosse os ùltimos quartetos húngaros e a Missa Solemnis.

Aldous Huxley lamentou que Joyce tivesse optado pela abdução. Poderia ter escrito importantes livros da estatura dos de Stendhal. Mas é compreensível. Deportou-se do mundo dos viventes. Não lhe dizia nada a estranheza e prazer de incompreensão libidinosa que o mundo adotaria ao analisar as cartas singelas que escrevia para Nora Barnacle, seu amor de toda a vida. Onde revelava a leveza de seu espírito, a ralé via apenas a sujeira sexual de um intelectual reprimido. Por isso é desconcertante que achemos de uma beleza sem igual as passagens de Bloom se masturbando, de Molly cedendo-se mais uma vez com seus repetitivos sim, sim,sim, da última página, de Mulligan se atirando seminu ao mar, ao lado dos pescadores. Uma impossível beleza nesses gestos prosaicos, e uma lucidez que desmascara toda a hipocrisia, toda pompa. Uma declaração de amor à humanidade, antes de mais nada, mas uma humanidade ainda de um distante porvir, livre das tralhas da ciência e das hierarquias, e centrada no cultivo das idiossincrasias soltas e intimistas de si mesmo.

Por isso que é tão espantoso a Buck Mulligan quando Stephen Dedalus revela que, no leito de morte de sua mãe, se recusou a se ajoelhar; mas não pelo constrangimento à mãe, mas pelo constrangimento contra si mesmo. A liberdade do homem que tomou as rédeas de si mesmo e manda as convenções e a opinião alheia às favas…

Um dia o Charlles há de me explicar o fato de ter chamado os últimos quartetos de Beethoven de “húngaros”. Não entendi. Uma referência à Bartók?

Bloomsday

Além das datas religiosas, não creio haver outro feriado nacional dedicado a um personagem de ficção. O Bloomsday é um feriado comemorado no dia de hoje, na Irlanda, em homenagem ao livro Ulisses, de James Joyce. Atualmente, a amplitude do Bloomsday ultrapassa em muito à esfera de Ulisses. É, em verdade uma data em que se homenageia toda a literatura. Só os joyceanos absolutos — dentre os quais humildemente me incluo — relembram os acontecimentos vividos pelos personagens de Ulisses por dezenove ruas da cidade de Dublin e dezesseis horas no dia 16 de junho de 1904. Para os leitores restantes de todo o mundo, é a data em que se comemora toda a literatura.

Há controvérsias sobre quando o Bloomsday começou. Alguns especialistas indicam 1925, três anos após o lançamento do livro; outros dizem que foi na década de 1940, depois da morte de James Joyce. A hipótese mais aceita indica é que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulisses.

Joyce escolheu o dia 16 de junho para ser imortalizado em sua obra porque foi nesse dia que ele teria mantido relações sexuais com sua futura companheira Nora Barnacle, na época uma jovem virgem de vinte anos. Estudiosos afirmam que, na verdade, o casal apenas “caminhou junto” pela primeira vez neste dia. O que sabemos é que, quando da primeira relação sexual, Nora teve medo de completar o coito e o masturbou “com os olhos de uma santa”, como Joyce relatou em carta.

Ao lado dos devotos de Joyce, criou-se uma curiosa seita de tementes (ou hostis) a Joyce. É como se sentissem obrigados àquilo — a tentar entendê-lo totalmente ou repeti-lo. É uma tolice bastante difundida. Ulisses é tão irrepetível quanto a Arte da Fuga de Bach e sua leitura, para o leitor comum,  é tão necessária quanto a audição de A Arte para o ouvinte de iPods. Apenas fico desconfiado quando um autor nega-se a conhecer a obra. Porém, como há historiadores que preferem desconhecer largos períodos…

Mas tergiverso. Assim como falta-nos tudo para que nossa cultura recrie um Bach, assim como algumas obras deste são tão impenetráveis e intricadas que alguns dizem terem sido escritas mais para a leitura de eruditos do que para a audição, o livro de Joyce é um complicadíssimo monumento cultural do qual temos a impressão de nos afastar a cada dia. Mas não me digam que não pode ser lido. Tanto quanto ouço A Arte Da Fuga, li o livro de Joyce desde minha pobre perspectiva e diverti-me muito.

Pois o romance é perfeitamente compreensível. Há pontos de inserção para mortais. As minúcias e a complexa teia de referências são importantes, mas podem permanecer semi-entendidas sem esfacelamento de sua essência. Prova de que o ludus nem sempre está associado à compreensão cabal. (Como disse Karen Blixen, não há nenhum problema em não entender inteiramente um escrito poético).

A história do livro é simples. Trata-se da vida de pessoas comuns da amada/odiada Dublin de Joyce: o professor secundarista  Stephen Dedalus; seu amigo Buck Mulligan; o vendedor Leopoldo Bloom — angustiado com a possível traição de Molly, sua mulher — ; conversas sobre Shakespeare numa biblioteca; a surra que Bloom toma de um antissemita; sua mastubação observando duas mulheres; a mijada no jardim com Stephen; e a chegada em casa, onde deita-se com Molly, a qual finaliza maravilhosamente o romance num monólogo interior prenhe de pornografia. E é isso.

Cada um dos capítulos cobrem aproximadamente uma hora do dia e guarda debochada relação com a Odisséia, de Homero. E aqui tenho de referir os milhares de torcadilhos, paródias — que parece ser a maior arma da arte moderna — , neologismos e arcaísmos.

Eu coloquei nele tantos enigmas e quebra-cabeças que ele manterá os professores ocupados durante séculos, disse Joyce.

Então, hoje é o dia de comemorar a existência do duro, engraçado, divertido, complicado, pornográfico, sexual e erudito livro de Joyce. Lembremos de Leopold Bloom, de sua mulher Molly, de Stephen Dedalus e de Buck Mulligan!

Obs.: As fotos de Marilyn Monroe lendo Ulysses e outro livro são da autoria de Eve Arnold e são de 1955.

Universidade de Coimbra escolhe os 10 romances mais representativos da língua portuguesa (e dá vexame)

Reunido ontem em Coimbra, o júri do concurso “10 Paixões em Forma de Romance”, selecionou

1. “Os Maias” de Eça de Queirós,
2. “Memorial do Convento”, de José Saramago,
3. “Dom Casmurro”, de Machado Assis, e
4. “Terra Sonâmbula”, de Mia Couto.

Entre os “10 Mais” escolhidos pelo júri, que integrou os escritores José Luís Peixoto e João Tordo e vários docentes da Faculdade de Letras (FLUC), figuram ainda

5. “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo-Branco,
6. “Aparição”, de Vergílio Ferreira,
7. “O Delfim”, de José Cardoso Pires,
8. “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes,
9. “A Sibila”, de Agustina Bessa-Luís, e
10. “Sinais de Fogo”, de Jorge de Sena.

Segundo o director da Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC), João Gouveia Monteiro, para chegar a esta lista final “o júri teve em conta a diversidade e representatividade de diferentes épocas, correntes, geografia e géneros, bem como a expressão da vontade dos votantes”.

Acho que principalmente a vontade… Sim, sou brasileiro com cidadania portuguesa e não me ufano exageradamente nem de um, nem de outro; porém, devo dizer que a lista é ridícula. Achei belas surpresas as presenças do grande Cardoso Pires — desconhecido no Brasil — e de Bessa-Luís, mais conhecida por aqui. Também não pretendo apontar quem deveria entrar ou sair de lista, apenas gostaria de saber em que posição estariam Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Quarup, de Antônio Callado, Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso e Os Ratos, de Dyonélio Machado, os primeiros que lembrei e que são muito superiores a Esteiros e Sinais de Fogo, por exemplo.

Charlles Campos lembra Lobo Antunes e Miguel Torga, só para ficar em campo ibérico. Ele chama a lista de furada. Tem razão, claro.

Dr. Milton + Heine sobre o Quixote + Heine

Escrito e não publicado em 17 de feveireiro de 2010. O resto é de hoje.

Datas são datas e é inevitável que as repitamos a cada 365 dias. Basta viver um ano e lá estou eu até o pescoço com um novo 17 de fevereiro, aniversário de meu pai, que hoje faria 83 anos. O Dr. Milton Cardoso Ribeiro morreu em 1993 e, desde 1994, o dia 17 é um mau dia. Ir ao cemitério? Não faz diferença ir ou não, já é ruim o bastante saber que não vou vê-lo e que não haverá festa hoje. O fato é que me faz mal ir ao cemitério. O que há atrás do mármore — ossos escuros dentro de uma pequena caixa de madeira, pois, pelas regras da instituição, o caixão é retirado após determinado prazo para haver espaço para as novas mortes da família — tem muito pouco a ver com minhas lembranças. Trata-se apenas de um mármore com seu nome e foto colados. Se lembro de meu pai com voz, tato e música, então para que manter contato com uma representação fria e insuficiente dele, uma redução com flores na frente? Não vou lá, mesmo que digam que herdei seu humor, ironia e amor a muitas coisas. Devo ter herdado também alguma coisa de sua iconoclastia…

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Uma tradução alemã do Quixote, editada em 1837, vinha acompanhada de um prefácio escrito por Heine. Encontrei parte do mesmo dentro de um pequeno ensaio de Otto Maria Carpeaux. Anotei uma interessante observação do poeta alemão:

A obra de Cervantes é o primeiro verdadeiro romance da literatura universal, o mais antigo romance que continua lido até hoje. É uma obra em prosa, e esse fato é da maior importância. Antes da data fatídica de 1605, todos os grandes poetas escreveram suas obras em versos; ora, o mais prestigioso gênero literário em versos, sempre fora considerada a epopéia. Cervantes, porém, é o primeiro grande escritor da literatura universal que preferiu a epopéia em prosa: o romance. Desses fatos tirou Heine a conclusão de que o verdadeiro tema do Dom Quixote é a derrota da poesia pela prosa. Dom Quixote é o último ou um último representante da poesia de tempos idos. Mas é derrotado pela implacável prosa da realidade. A poesia, com todas as suas imaginações fantásticas, é derrubada assim como Dom Quixote, O cavaleiro da Triste Figura, caiu do seu cavalo Roncinante, caricatura do cavalo alado Pégaso. O caso nos faz rir, mas não sem deixar, atrás de si, uma melancolia nostálgica. E essa harmonia do ridículo e do melancólico é o humor cervantino.

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E agora, para finalizar, a prova de que, além de super-humorista, super-poeta, super-dramaturgo e super-novelista Heinrich Heine era um amor de pessoa:

Eu tenho uma mentalidade pacífica. Meus desejos são: uma cabana modesta, telhado de palha, uma boa cama, boa comida, leite e manteiga; em frente à janela, flores; em frente à porta, algumas belas árvores. E, se o bom Deus quiser me fazer completamente feliz, me permitirá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos nelas pendurados. De coração comovido eu haverei, antes de suas mortes, de perdoar todas as iniquidades que em vida me infligiram – sim, temos de perdoar nossos inimigos, jamais antes, porém, de eles serem enforcados.

(Tradução de Marcelo Backes.)

Se você estiver em Santa Maria ou arredores, não perca!

Lançamento no dia 6, quinta-feira, 17h30, dentro da Feira do Livro de Santa Maria. Vá lá nem que seja apenas para dizer ao Farinatti que “confins” é a PQP!

P.S.: Katarina Peixoto, em seu Facebook:

Gritaria gremista é uma das mais fortes evidências de que a evolução das espécies não segue qualquer causalidade final. Vários estágios evolutivos podem conviver e a idéia mesma de salto evolutivo é suficientemente problemática para esvaziar quaisquer fantasias finalistas. Eu amo os chimpanzés e gorilas. Não é deles, exatamente, que tento me servir para comparar. Que coisa.

Livros melhores que filmes — A Reação! — e um conto de PQP Bach…

A Caminhante, certa vez escreveu um post falando sobre a sistemática superioridade dos livros sobre os filmes análogos. Penso que ela tenha razão em grande parte e deixei o assunto em suspenso, mas ontem, ao comentar o fato com meu filho Bernardo, ele teve uma reação inesperada. Primeiro uma risada. E depois o argumento:

— Pai, empresta para ela A Laranja Mecânica do Burgess, Jules e Jim do Roche, O Conformista (1) e A Estratégia da Aranha (2), feitos pelo Bertolucci, todos os livros em que o Kubrick se baseou e todos os que usou o Hitch! Nada a ver! Vá se …

Dear Walker, perdoa os 19 anos do menino.

(1) De Alberto Moravia
(2) De Jorge Luis Borges

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A Décima de Beethoven (*)

— E daí, gatinha, tenho uma coisa pra te mostrar.

— Xiii…, eu não curo reumatismo, viu?

— Nada disso, princesa, quero te mostrar aqueles motivos curtos e repetitivos.

— Repetitivos está OK, mas curtos…?

— Sim, e afirmativos.

— Em riste?

— Certamente! Vamos para aquele cantinho ali? Me parece mais adequado.

Os dois vão e sentam, a mulher prepara-se para os amassos quando o homem tira um fone de ouvidos do bolso e um celular. Arruma tudo e enfia no ouvido da gata.

— É a 10ª de Beethoven.

A mulher faz uma cara de decepção e responde.

— Um, eu não estou aqui para ouvir eruditos, quero testosterona, meu! E, dois, Beethoven jamais chegou à décima, assim como tu jamais chegarias à 2ª, quiçá à 1ª!

— Minha cara, nada disso. Acabam de remontar o primeiro movimento da décima.

— Quem?

— Um Wyn qualquer coisa.

— Vin? A propósito, podias ser um cavalheiro e pedir um vinho pra aquecer.

— Garçon!

— Então podemos retirar Beethoven da “Maldição da Décima”?

— O que é isso?

— Véio, tu não sabes que Bruckner, Mahler, Dvorargh, Beethoven e Spohr escreveram nove sinfonias e aí veio um raio e fulminou com todos? Isto é, com um de cada vez… Não sabia?

— Mas Mahler fez o Adagio da Décima.

— Sim, mas era um adagio, não tinha muita ação. Aquilo lá devia estar moribundo como o teu Ludwig van.

— Então a décima é perigosa? Pode matar?

— Sim, haja disposição para chegar lá…

— Eu tenho.

Ele bem que tentou, mas acabou por deixar a terceira inacabada. Ainda hoje se encontram. Ela, feliz, faz o papel de furacão maduro, ele, não menos, o de pau amigo.

(*) PQP Bach não deu título à sua narrativa. Desto modo, batizei-o eu.

Tolstói é engraçado?

Dickens, George Eliot, Jane Austen, Smollet, Fielding, they’re all funny. All the good ones are funny. Richardson isn’t, and he’s no good. Dostoyevsky is funny: The Double is a scream. Tolstoy is funny by being just so wonderfully true and pure. Gogol, funny. Flaubert, funny. Dickens. All the good ones are funny.

MARTIN AMIS

Será que Martin Amis estava brincando ou apenas forçando a barra para sua tese? Ele não parece ser nada primário… Esta entrevista é muito interessante e contém boas doses de razão, mas daí a considerar Tolstói um escritor cômico em função de sua verdade e pureza é um pouco demais… E a curta lista de Amis não possui Sterne (ver resenha de Tristram Shandy aqui) e Swift, mas ao menos ele lembrou de Fielding. Ignorando o restante da entrevista e fixando-me na citação dos engraçados e bons — ou da noção de que apenas os engraçados (ou divertidos ou estranhos) podem ser bons — , lembro sou das poucas pessoas que ri com Kafka e Bernhard. E Borges? Entra na acepção de “divertido” da palavra funny (= lots of fun) de Amis ou está fadado a ser ruim? Sei lá.

José Mindlin para as novas gerações iletradas

Por Fernando Monteiro – Enviado a mim pelo autor através de e-mail
Publicado no hoje no Substantivo Plural

No momento em que tantos estão a escrever (?) tantas “generalidades” sobre o realmente admirável José Mindlin, eu gostaria de relatar uma historinha (real) a respeito de um livro.

Um dos mais raros livros que já passaram pela mesa do meu amigo Stefan Geyerhahn, sebista que… Não, esse nome precisa, antes de mais nada, ser trocado pelo de “antiquário de livros”, que melhor se adapta ao perfil de grande livreiro especialista em obras raras e antigas (título dignamente conquistado por Geyerhahn, um dos donos da Livraria Kosmos — “sebo” que ajudou a civilizar o Brasil).

Muito bem. Vamos à historinha: estava eu, numa tarde paulista, em conversa com o Stefan na sua sala da Avenida São Luís, quando lhe anunciam que um estrangeiro, um europeu, de posse de uma obra que parece realmente rara (na avaliação inicial que era feita lá no salão da livraria, antes de alguma oferta vir para o exame especializado de Geyerhahn), tinha vindo oferecer uma obra que parecia “interessante”…

Diante do caso, eu me propus a sair, porém Stefan pediu que eu ficasse, com a generosa alegação de que, quem sabe, pudesse eu ajudá-lo a analisar a obra (pobre de mim!, um simples colecionador de pequenas raridades)…

O homem entra. É taciturno e de poucas palavras — num inglês precário. Stefan domina várias línguas, e logo estão se entendendo no francês que, um dia, já foi a língua culta do mundo.

A certa altura, o meu amigo sócio da Kosmos pede permissão ao estranho, e me passa o livro — um pequeno opúsculo do século XVII — que eu pego com infinitos cuidados, apesar de estar razoavelmente bem conservado. Sinceramente, não me lembro mais do título rebuscado (à maneira seiscentista) da raridade bibliográfica, mas conservo a lembrança da explicação do livreiro, que me esclareceu:

— “É a obra de um viajante no Brasil de meados dos 1600. Uma edição sueca, da qual eu só tinha visto, até agora, o exemplar que se encontra na Biblioteca Nacional de Estocolmo. É rara, raríssima, e esse senhor está pedindo um preço até bem razoável ( apesar de, para mim, ser um valor estratosférico, pelo que eu havia entendido da conversa deles em francês). Bem, é um livro que tem exatamente o perfil dos que interessam ao José Mindlin. Vou telefonar para ele.”

Stefan vai, e liga para o bibliófilo. É imediatamente atendido. E explica do que se trata.

Ouvindo o telefonema, percebo que Mindlin se surpreendeu, do outro lado do fio, com a aparição de tal obra em oferta no mercado, e, mais ainda, com o preço que (segundo, mais tarde, me explicou o Stefan), ele, Mindlin, considerou “muito barato”…

E aí? Você pára a leitura deste “post”, neste momento, e aposta: o que aconteceu? O livro era da área de absoluto interesse do velho Mindlin. Dizia respeito ao Brasil dos 1600, estava bem conservado e era “raro, raríssimo” – além de “muito barato”.

Ou, conforme Stefan Geyerhahn colocou, ao telefone com Mindlin:

“Dr. Mindlin, o senhor está sendo a primeira pessoa para a qual estou ligando, porque acho dificílimo que apareça outro exemplar desta obra sueca…”

Bem, o bibliófilo José Mindlin NÃO adquiriu o livro.

Não porque o livro não o interessasse, pelo contrário.

Nem porque não tivesse o dinheiro (piada!). Ou porque o livro estivesse em péssimas condições, etc. (porque Mindlin mandaria restaurá-lo de imediato, sem medir despesas) etc.

???

Resposta do enigma:

José Mindlin não comprou a raríssima obra — segundo explicou a um surpreso Stefan Geyerhahn — porque ele “jamais adquiria um livro que não pudesse ler”… E ele “não lia em sueco — infelizmente”. De onde se conclui que todos, literalmente TODOS os livros da vastíssima biblioteca do bibliófilo — por ele doada à USP — haviam sido LIDOS por Mindlin, um a um, nas muitas línguas que ele conhecia. E o sueco não estava entre elas (“infelizmente” etc etc)!

Esse foi José Mindlin — ó geração de iletrados que estão por aí. Fica o exemplo para “vosmecês”, big brothers do Oiapoque ao Chuí…

Entrevista com Ingo Schulze

Edney Silvestre é um cara esperto. Tentou conduzir as primeiras respostas, mas como Ingo Schulze não foi pelo caminho sugerido, tirou o time e acabou fazendo uma boa entrevista. Ninguém vai acreditar, mas para mim foi uma surpresa ver a participação ativa de meu grande amigo Marcelo Backes na coisa. O final da entrevista… Só na Alemanha, Ingo!

Kindle, o fim do livro

OK, o título é pura provocação, não acredito nisso. As previsões são previsões, como diria Gertrude Stein. A Folha de São Paulo que o diga. Vejam uma página de tecnologia que o jornal publicou em 1996 e que foi garimpada pelo Tiago Dória:

Muitos já anunciaram o fim do rock, do romance, de um monte de coisas, mas tudo o que mexe com paixões são complicadas de matar. As únicas coisas que efetivamente acabaram foram a privacidade e o cinema de primeira linha. A nova moda é proclamar o fim do livro e a grande novidade é que tal morte é apoiada por boa parcela dos ecologistas, os quais falam nas vantagens de se produzir menos papel. Só que, como sabemos, os ecologistas não contam. Como em Copenhagen, quem decide é o mercado.

Não adianta. Eu gosto de livros. Eles existem há séculos, bem mais do que os disquetes que ainda insistem em aparecer em minhas gavetas e que têm quanto? 10 anos? Creio que o formato convencional acabará junto com o mundo, mas, neste ínterim, dividirá o espaço com os e-books.

O que é Kindle? É isso aqui:

É um aparelho criado pela Amazon que tem como função principal ler e-books (livros digitais) e outros tipos de mídia digital. O Kindle 3 lê também jornais, os mais famosos blogs dos EUA, toca mp3 e faz o diabo. É como os celulares de hoje. Pode armazenar uns 1500 livros em formato pdf ou Kindle, mas isso depende, claro, do tamanho da memória. Dizem que a luz ambiente não interfere na leitura, que podemos sublinhar e anotar nossos pitacos no texto, que tudo é maravilhoso — só faltaria o cheiro do livro — e que serão riscados da face da terra os jornais em papel, os livros, etc.

Como se publica um livro? Simples. Manda-se um arquivo para a Amazon e ele te devolvem no formato Kindle sob um módico pagamento. Como colocar à venda? Não sei, mas é óbvio que é só pagar mais à Amazon para fazer também isso.

Já há Kindles com conexão à internet — permanente ou não — , o que permite a compra de livros eletrônicos sem passagem por nenhum PC. Claro, os Kindles um dia terão as funções de um PC e talvez até possam ser guardados dentro dos saltos de nosso sapatos, apesar de que não vejo grande utilidade nisso. Os livros vendidos pelas editoras através da Amazon custam em média US$ 9,99 cada um e, se eu quiser disponibilizar meu blog lá, custaria US$ 1,99 mensais ao leitor, sendo 2/3 para eles e o resto para mim. Um jornal pode ser entregue diariamente no Kindle por US$ 2,99 mensais.

Será mais um gadget caro. Alguns o considerarão vital a ponto de verem ameaçadas suas contemporaneidades quando o vizinho comprar um Kindle que mostre séries de TV americanas ou que substitua o celular e o liquidificador. Já pensaram um que escolha a música conforme a leitura? Eu já estou esperando o Kindle câmara de vídeo com a finalidade de fazer estudos lombrosianos de comparação entre quem lê Kafka e quem vê House. Ou entre quem lê Paulo Coelho e Thomas Bernhard, sei lá.

Comércio crítico na Veja

Há algumas semanas — 2 ou 3, porque vi a tal revista na casa da minha irmã, na praia, durante a a virada do ano — , li uma crítica de Alcir Pécora a um livro de Mário Sabino. Normal, não? Nada normal. Analisemos mais a fundo: Alcir Pécora é um desses intelectuais acadêmicos paulistas supermetidos que devem frequentar diariamente a Mercearia São Pedro, saindo de lá sempre com ou três livros a mais em sua bibliografia. É um cara respeitado, ouvido. Nada lido, é certo, mas respeitado, como rotineiramente os acadêmicos são. Ou seja, obter uma crítica elogiosa de Pécora é receber um importante aval em alguns círculos. E o criticado, recebedor dos encômios desta verdadeira grife literária é Mário Sabino, o qual, nas horas vagas, trabalha como editor-chefe de Veja. E a crítica, pasmem, saiu na revista Veja.

Devo ser muito antiquado e tolo. E ético. Nunca, mas nunca mesmo eu colocaria uma crítica a um livro meu numa revista pela qual sou o responsável. Ainda mais que a revista paga a seus articulistas. Em outras palavras, Sabino pagou uma resenha favorável a Pécora. Ou alguém acha que Sabino e Veja publicariam uma opinião não laudatória? Não li o livro de Sabino — aliás, nem lembro o título — mas me chamou a atenção o fato de que resta à Pécora um pingo de honestidade… Notem como ele dá a grife e recebe a grana, mas é pudico, contido.

Seu principal ato falho é o de dizer que, dentro da obra literária do editor-chefe de Veja, há títulos interessantes. Ora, qualificar livros de interessantes é o mesmo que chamar a namorada feia do amigo de simpática, é o mesmo que dizer a um fã apaixonado que o filme não é ruim, é interessante. Mas há outros: Pécora fala na “inteligência da abordagem” e que Sabino “entregou destemidamente à narrativa as rédeas de seu andamento”. Se Pécora é uma autoridade e gostou do livro, saberia destacar coisas mais interessantes do que este punhado de lugares-comuns. Será que Sabino deu-se conta de que o trabalhinho ficou mal feito? Ou a vaidade só entende o que deseja entender?

Brilho Eterno de um Corpo Sem Lembranças, de Vladimir Nabokov

Se em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind), 2004, Jim Carrey interpreta um marido desesperado pelo fato de sua ex-esposa (Kate Winslet) tê-lo deletado da memória através de um programa maluco, em O Original de Laura Philip consegue que seu cérebro apague partes do próprio corpo enquanto vê sua Flora traí-lo sistematicamente.

Se de um lado temos o roteirista americano Charlie Kaufman e o diretor francês Michel Gondry — pessoas que talvez ainda estejam longe de uma imortalidade –, de outro há o célebre escritor russo Vladimir Nabokov, autor de obras-primas como Lolita, Fogo Pálido e, principalmente, A Verdadeira Vida de Sebastian Knight. Se o filme Brilho Eterno é maravilhoso, O Original de Laura não vale a pena. Não, não farei uma resenha do livro de Nabokov. Eu adoro Nabokov e ele não merece que eu, uma obscura pessoa de um obscuro blog, o desmereça. Nabokov mandou que, em caso de morte, O Original de Laura fosse para o fogo, pálido ou não, mas a esposa Vera não teve coragem de fazer a fogueira e o filho Dmitri igualmente o manteve até que, em 2008, 31 anos após a morte do pai, ressuscitou a ideia de publicação.

Como sói acontecer, são os vivos que julgam os mortos, já que estes têm manifestações mais discretas. Então, dou razão a Max Brod quando ele salva da destruição, para toda a humanidade, obras como O Processo e O Castelo, de seu melhor amigo Franz Kafka. Brod era um bom leitor e logo viu o que tinha nas mãos. Fez bem. Obrigado, Brod. 2666, de Roberto Bolaño, foi publicado num formato diferente e o tempo provou o acerto dos herdeiros e do editor Herralde. Solo de Clarineta, de Erico Verissimo, estava em grande parte pronto. Vale a leitura. A 10ª Sinfonia de Mahler possuía apenas o Adagio inicial, mas que adágio!!! Bach morreu durante a composição da Arte da Fuga, mas o que deixou pronto é embasbacante. Enquanto isso, O Original de Laura é um livro que apenas permite vislumbrar como Nabokov criava seus romances.

O que me deixa contrariado é o fato de que livros grandiosos de Nabokov não receberam tamanho espalhafato e luxo. Trata-se apenas de um mau presente. Nunca vi um Sebastian Knight ser lançado no Brasil em capa dura, papel de alta qualidade, fac-símiles originais com a caligrafia de Nabokov, etc. Tudo por um livro de terceira categoria — pois o que foi publicado é o conjunto das 138 fichas onde o autor escrevera quatro capítulos e anotara ideias e trechos. Seu processo de criação fazia com que escrevesse o romance em fichas separadas, o que permitia a troca de lugar entre os capítulos sem precisar redigitar tudo novamente. O que fazia era uma espécie de Crtl-X / Ctrl-V com as tais fichas, apenas reorganizando-as.

Mas então Vera morreu e Dmitri, com a saúde debilitada aos 75 anos e falto de dinheiros, resolveu publicar a coisa. A crítica está massacrando o livro. Vê nele os sinais de declínio que os últimos romances de Nabokov já demonstravam. Sim, os vivos julgam e resolvem as coisas pelos mortos, mas é bom ter um pouco de bom senso.

Para completar a desgraça, Dmitri quer publicar as fichas em série, num periódico literário, como se fosse uma novela da Globo. A respeitada revista “New Yorker” recusou-se a montar a minissérie. Depois de várias tentativas, Dmitri ofereceu-as à “Playboy” americana — que os publicará a partir de dezembro. O destino de O Original de Laura deveria ter sido o fogo mas, pasmem, será a Playboy. O público americano já viu melhores Lauras, certamente.

Laura: sacanagem post mortem com Nabô.

Ingo Schulze

Ingo Schulze é quase desconhecido no Brasil. Tem 47 anos e sabe que já escreveu o grande romance de sua vida, Vidas Novas. O livro terá lançamento no próximo dia 30 pela Cosac & Naify. Ontem, assisti à palestra do Marcelo Backes, tradutor e coautor da edição brasileira, a respeito de Schulze e do livro.

Tenho de explicar o fato do autor ter escrito seu mais importante romance ainda jovem. Ocorre que Vidas Novas deriva de sua experiência pessoal, um ex-alemão oriental tragado pelo estilo de vida ocidental aos 30 anos. Schulze talvez tenha razão ao pensar que se trata da maior experiência e tema de sua vida. Como experiência é certamente irrepetível, como tema… Bem, Schulze estará na Amazônia nos próximos dias, realizando pesquisas para seu próximo livro, o que certamente indica uma não aceitação da confortável posição de autor-do-melhor-livro-sobre-a-reunificação.

É notável como a Alemanha divulga com orgulho seus autores. Na falta de Schulze — que estará presente no lançamento em São Paulo e Rio — , o Instituto Goethe convidou seu tradutor para falar e responder perguntas por duas horas. Vidas Novas retoma o pacto fáustico num tom de ironia e diálogo com o leitor. O autor constante na capa é Ingo Schulze, claro. Afinal, foi ele quem escreveu o livro! Porém, na primeira página, ele reaparece como personegem, na pele do organizador dos papéis e cartas de um certo Enrico Türmer, escritor e redator de jornal, que passa a atuar como empresário na nova Alemanha. Seu Diabo é um homem de negócios que se apresenta a ele de gravata e simplesmente aperta sua mão. Não li o livro e posso estar dizendo coisas nem tão verdadeiras assim, mas uma das muitas curiosidades do livro é que o organizador Ingo Schulze mostra-se muitas vezes hostil, combatendo e denunciando Türmer. E, para que o diálogo se amplificasse ainda mais, Schulze pediu ao tradutor e escritor Marcelo Backes que escrevesse livremente suas próprias notas de rodapé, com liberdade para duvidar, desacreditar, ironizar e debochar da dupla de personagens-narradores. Ou seja, Schulze pediu a seu tradutor que fosse também um personagem. Detalhe: Schulze, que conhece Marcelo pessoalmente, não sabe português, e não pediu ao tradutor que mostrasse ou explicasse suas intervenções, deixou-o livre para fazer o que bem entendesse.

Backes relatou em sua palestra que escreveu 3% do que gostaria. Obviamente, mesmo que o autor o instigasse a participar de um jogo literário entre ficção e realidade, ele não se sentia bem em “participar tanto” de uma obra que é considerada um dos três maiores romances europeus da década. Além disso, há a próprio DNA do Backes tradutor, o DNA de alguém que não deve aparecer muito nem encher o saco do leitor com notinhas…, fato que muitos críticos apressados confundirão com pura loucura de um tradutor descontrolado.

Após a palestra, caminhei longamente com Backes e uma de suas irmãs até um bar. Nossos assuntos já eram outros, Ingo Schulze só reapareceu quando Marcelo falou das vacinas que tomou para acompanhar o alemão na Amazônia. Afinal, colorados que somos, estávamos preocupados com o fim-de-semana futebolístico, comentávamos as mulheres que passavam, as do bar, coisas assim.