"Peço educadamente a este senhor e a esta senhora, que me chegam por indicação da Veja, que não me leiam"

Esta entrevista, feita por mim, foi publicada em 28 de agosto no Sul21

O pernambucano Fernando Monteiro é poeta, romancista, dramaturgo, cineasta e crítico de arte. É autor, entre outros, dos romances Aspades, ETs., Etc., A Cabeça no Fundo do Entulho (ambos publicados pela Record) e O Grau Graumann (Globo). Aspades talvez seja seu livro mais importante. Premiado em Portugal — onde foi primeiramente lançado — e no Brasil, é um curioso romance que abarca vários gêneros para descrever a vida do imaginário cineasta português Vasco Aspades do Carmo. Já Grau Graumann tem como personagem principal Lúcio Graumann, um desconhecido gaúcho de Santa Cruz do Sul que foi o primeiro brasileiro laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Moribundo e ignorado, poucos o conhecem. A Academia Brasileira de Letras e os cadernos de cultura não têm o que dizer a respeito…

Muito mais conhecido é Monteiro. Ex-colunista da revista Bravo e atual colaborador do jornal literário Rascunho, da revista Continente, do Substantivo Plural e de outros veículos, costuma utilizar sua imensa erudição em comentários que discutem o Brasil e a produção cultural atual de uma perspectiva que foge ao usual e rotineiro.

É o que acontece nesta entrevista exclusiva concedida ao Sul21.

Sul21 – Uma vez tu disseste que os escritores de hoje escreviam para o passado. O que querias dizer com isso?

Fernando Monteiro – Uma vez que você não encontra mais tantos leitores que respondam com a mesma atenção dos de antes, os escritores passaram a escrever para um leitor que está morto, para um gênero de leitor que não mais existe. Porque, na verdade, o leitor é mais importante do que o autor. Como dizia Borges, o leitura e é uma atividade posterior e mais refinada do que a do escritor. Nós somos autores porque fomos e somos leitores. Borges, em sua zona de sombras, permanecia considerando-se um leitor. Uma vez, em Curitiba, participei de uma série de entrevistas onde o mote era “Por que você escreve?”. Era uma série de longas entrevistas onde a gente podia se esbaldar. Mas o essencial da minha resposta era extremamente simples: eu escrevo porque li. Quando era um jovem e bom escritor, Fernando Sabino disse que, quando a gente escreve, acaba por perder a inocência como leitor. Descobrimos o caminho da mina, a estrutura, os truques. Eu sou também cineasta e o mesmo ocorre lá. Quando nos aprofundamos muito, a coisa da magia se esvai em parte. Há coisas que é melhor não saber como são feitas…

Sul21 – Tu estarias contaminado como leitor?

Fernando Monteiro – Sim, eu leio ainda, mas sem o mesmo encantamento, até porque tem se tornado cada vez mais complicado.

Sul21 – Por quê?

Fernando Monteiro – A nacional e a internacional vão bastante mal. Não há grandes autores. A literatura, principalmente a de ficção, está num péssimo momento. Pode parecer que não porque muita coisa é publicada, mas a produção é fraca. Vejamos. De onde surgiu este naturalismo tardio que é praticado? De onde veio? Isso é uma coisa superadíssima. E a violência urbana? Essa é uma vertente que permite uma linguagem mínima, que cria histórias lineares e com pouca ou nenhuma transcendência, coisa de imaginações menores.

Sul21 – Quem tu lês e gostas?

"A boa literatura brasileira foi abandonada no ponto onde Caio Fernando Abreu e João Antônio a deixaram".

Fernando Monteiro – Sob a apocalipse encontram-se ainda coisas boas. Por exemplo, o sergipano Francisco Dantas. Mas voltando à crise antes de avançar pelos bons autores, a boa literatura brasileira foi abandonada no ponto onde Caio Fernando Abreu e João Antônio a deixaram. Ambos eram excelentes. Duas figuras inteiramente diversas, dois espíritos férteis, cada um a seu modo. A mim parece é que a literatura não mais evoluiu após o desaparecimento de ambos. O Caio estava num ponto admirável, mas lamentavelmente faleceu muito cedo. Ele teria muito a contribuir. Peço desculpas a teus conterrâneos leitores do Sul21 que são admiradores do Moacyr Scliar, mas ele nunca teve a qualidade de Caio.

Sul21 – Acho que a maioria concordaria.

Fernando Monteiro – Sendo cabotino, diria que o Caio estava sinalizando, para a literatura brasileira, coisas que tentei retomar em meus livros. Ao menos eu me esforcei. E João Antônio, num ambiente completamente diferente, paulista e interessado pelo submundo em contos maravilhosos, era um escritor notável.

Sul21 – E os outros brasileiros?

Fernando Monteiro – Eu não estou criticando por ser ranzinza, critico pelo fato de que praticamente não encontro autores para ler. No Brasil e também lá fora. O prazer de ler está sendo obstaculizado pela falta de bons autores. Então, aos 62 anos, estou relendo, porque não vou perder tempo lendo autores novos como Franzen. Melhor reler Moby Dick. Sobre os brasileiros, a jovem poeta Mariana Ianelli é muito interessante, dá prazer de ler. É uma jovem de 20 poucos anos, muito talentosa. Ah, sim, tem a Elvira Vigna também, que trafega no campo da ficção. É paulista, foi editora e escreve romances. Hoje é publicada pela Companhia das Letras. Ela tem uma produção muito interessante, de grande modernidade, sua ficção é muito delicada, muito bem construída.

Sul21 – O naturalismo deve ser evitado?

"Se você me devolve o real, eu estou assistindo o real de novo".

Fernando Monteiro – A arte transfigura o real, se não, não é arte. Se você me devolve o real, por exemplo, no cinema, eu estou assistindo o real de novo. Agora, se o autor aborda o real, mas transfigurado de algum modo, eu posso começar a ter arte. Essa é a base de tudo. Essa coisa de escritores que escrevem bem, mas me devolvem o real, o dia a dia, é pobre. Por exemplo, o trabalho do Bernardo de Carvalho é diferente, é excelente. Sem duvida alguma, ele esta atento ao que está acontecendo na literatura porque tem se manifestado em relação a esse “apagão”, tem se expressado como extremamente desencantado com o horizonte literário atual. É uma pessoa que tem batido nessa tecla da afunilação da literatura pelo mundo pop-rock. Ele está fora desse percurso.

Sul21 – A situação altera-se fora do Brasil? McEwan, Bolaño, Franzen…

Fernando Monteiro – McEwan é um escritor bem interessante. O Jardim de Cimento e Reparação são ótimos. Já Franzen é um engodo, faz uma falsa literatura profunda, comparável ao filme A Árvore da Vida. Tristeza não é necessariamente profundidade, tristeza pode ser apenas enfadonha. Tão enfadonha quanto a tuiteratura de Marcelino Freire.

Sul21 – E a tua produção?

Fernando Monteiro – Estou em vias de publicar um outro poema longo nos moldes de Vi uma foto de Anna Akhmátova [texto completo aqui] chamado Mattinata. É sobre um casal que se separa.

Sul21 – O tema do amor.

Fernando Monteiro – Sim, um dos grandes temas, assim como o amor, há a morte, a busca de Deus, o significado da vida, essas coisas abandonadas… (risos) As pessoas não parecem fazer a si mesmas este gênero de questionamento. A Montanha Mágica foi escrita, por Mann, assim como Luz de Agosto, por Faulkner, a fim de responder questões muito altas de angústia. Como as pessoas não pensam em significados mais profundos, mas sim num bom emprego, elas querem algo mais simples. Então, talvez livros assim não tenham o que fazer nas cabeceiras. Mas o livro da Lya Luft tem. O medo da morte é substituído por como é que eu faço para perder o medo do dentista.

Sul21 – Lya Luft escrevia romances. Depois ela passou a escrever crônicas e agora ela está na auto-ajuda.

Fernando Monteiro – Pois é, ela deslizou para a auto-ajuda sob as bençãos da Record. A Record ficou felicíssima. Ela teve uma síncope num programa de televisão. Tentou se retirar enquanto as pessoas a questionavam por escrever auto-ajuda. E ela disse no ar “Mas meu livro não é de auto-ajuda!!!” e foi embora. Mas é. O jornalista estava chamando de auto-ajuda o que era auto-ajuda.

Sul21 – Tu chegaste a manter contato com a literatura dela?

Fernando Monteiro – Eu olhei, mas é aquilo. Se você não tem o hábito… Ela é uma escritora de talento perdido, lançado às moscas, sob a benção da editora.

Sul21 – O que tu achas do João Gilberto Noll?

Fernando Monteiro – Ah, é ótimo, embora realize uma literatura um pouco pessoal demais. Na literatura você trabalha sempre com a sua vida, você não vai falar daquilo que não conhece, mas o Noll está ou esteve enredado num material muito autobiográfico. Me parece que está meio afastado, o que é ótimo, porque assim ele terá tempo para recriar-se, porque os últimos livros dele estavam saindo com sinais muito próximos da insistência, estava se tornando repetitivo. Acho que ele precisa de tempo.

Sul21 – Dizem que os pernambucanos são os gaúchos do nordeste. Assim como nós, os pernambucanos se acham (risos), cultuam tradições, etc. Tu utilizaste num livro a expressão “mitologias de emergência”, pra caracterizar o que faz o Suassuna em Pernambuco e o MTG no Rio Grande do Sul.

Fernando Monteiro – Bem, eu usei a expressão com absoluta segurança para o Ariano Suassuna, mas não sei se vocês poderiam usar para o MTG, porque vocês fazem uma coisa diferente, embora também com ranço conservador. O MTG quer conservar suas manifestações no âmbito do Rio Grande do Sul e dos gaúchos. O Ariano não, ele tem isso como um modelo brasileiro. A diferença grave, para o caso do Suassuna, é essa. Vocês querem conservar para que o próprio Rio Grande do Sul não perca o contato com o passado, mesmo com uma boa dose de ficção e de insularidade. Quando eu estive aí, vi que o Rio Grande do Sul vive em grande parte olhando apenas para si.

"O Suassuna é muito ambicioso. Ele pretende que a cultura brasileira abrace suas causas, ele argumenta com grande competência e sem razão".

Sul21 – Tu disseste “insularidade”.

Fernando Monteiro – Eu, como pernambucano, sinto essa insularidade. Você sente aí no extremo sul uma coisa autocentrada, o que é de certa forma interessante, porque vocês leem seus próprios autores, vão à livraria e conferem a produção de vocês. Mas aqui, o Ariano é muito mais grave, porque ele quer ter um programa estético para o Brasil, daí a “mitologia de emergência”. E é mitologia de emergência porque nós não temos mitologia. Nós não temos uma civilização como a inca ou a asteca na retaguarda. Então eu costumo dizer que o Brasil tem a alma em branco. A Europa não tem uma alma em branco, tem um passado que nós herdamos, em parte. Acontece que Ariano Suassuna gostaria de aplicar a mitologia de emergência no lugar dessa alma. Ele tenta criar o que seria uma cultura utópica brasileira. Seria uma cultura de origem sertaneja, uma coisa sobre a qual ele trabalhou literariamente, criando o movimento Armorial e outras coisas… E isso, visto de longe, é um pouco semelhante ao que vocês fazem aí. Mas é necessário reconhecer, que isso no Rio Grande do Sul é uma coisa para o próprio Rio Grande do Sul, enquanto o Suassuna é muito mais ambicioso. Ele pretende que a cultura brasileira abrace suas causas, ele argumenta com grande competência e sem razão.

Sul21 – Ele também é uma estrela da mídia.

Fernando Monteiro – Exatamente. Mas isso veio tardiamente. Ele não se lançou na mídia. À diferença dos outros, desses jovens dos quais eu estava falando anteriormente e que vão em busca da mídia, o Ariano foi buscado pela mídia por suas opiniões, por suas manifestações. Ele criou o movimento Armorial, porque ele é um daqueles intelectuais que aspiram… Deixa eu contar uma história: eu convivi com ele ainda jovem, quando fui assistente do filme “A Compadecida” em 68. Eu tinha 18 anos e convivia com Ariano. Desde aquela época, nós tínhamos longas discussões sobre isso, porque ele tentava me ensinar a respeito das coisas – eu era um garoto e ele é uma pessoa muito sedutora, muito engraçada, todo mundo ri, todo mundo acha graça e eu também. Me lembro de uma vez em que estávamos na casa dele e a gente falava de arte moderna, coisa que ele recusa. Ele tentava me explicar algumas coisas que não passavam pelo filtro dele. Por exemplo, sobre o Boi de Picasso, que remonta ao Boi de Altamira, mas que é um avanço, ele dizia: (imita a voz de Ariano) “Não Fernando, não é não um avanço, vou lhe mostrar…”. Aí ele voltava com um livro e dizia: “Olhe, repare esse boi aqui, não é melhor que o de Picasso?” Era o Boi de Altamira… E eu dizia: “Realmente, é muito bom. Claro que esse boi que tu estás me mostrando é admirabilíssimo, da idade da pedra, mostrando o boi em movimento e coisa e tal. Mas desde então, Ariano, muita coisa aconteceu. Houve um avanço enorme desde a idade da pedra, Ariano”. E ele dizia: “Não, eu gosto muito mais desse boi”. E, só pra constar, eu estava com meus 18 anos e ele com 40 e poucos e nós já tínhamos essas discussões amigáveis. Hoje eu não sei, acho que não teria a mesma atitude amigável para a coisa programática da cabeça dele, para a cultura brasileira que ele propõe. Eu acho isso muito perigoso, pois se aproxima de um fascismo, um tipo de fascismo que vem na contramão de tudo.

Sul21 – Não seria bom ter a “alma em branco” para projetar um futuro?

O boi da discórdia: Imagem da caverna de Altamira

Fernando Monteiro – Mas é claro! Quando tudo esta conectado com tudo, aí é que vem a importância de ter a tal da alma em branco. O que é que caracteriza isso? A capacidade para compreender o outro. É impressionante no Brasil, como as pessoas estão atualizadas com o que está acontecendo lá fora. Quer dizer, o brasileiro pode adquirir culturas, várias. E essa é a vantagem da alma em branco, porque as vezes o fato de você ter uma vasta cultura comum não deixa de ser um obstáculo. Quer dizer, se você viver na Inglaterra, há Shakespeare mas há também a família real. Agora, essa disponibilidade de compreender o outro nos torna estratégicos nesse terceiro milênio. O Brasil é um país de pessoas com percepções muito rápidas, exatamente por estarem livres e conectadas de alguma maneira. Honestamente, vejo isso como uma vantagem. Não quero remontar a velha imagem do país do futuro, mas, ao menos nesse quesito, o fato de não ter uma cultura antiga que nos engesse é uma vantagem pra nós. Temos uma cultura europeia que nos foi deixada como herança, a cultura do índio e a cultura do afro. Dessas três influências é que nós fazemos a cultura brasileira. E o Ariano rejeita tudo isso. Ele, em sala de aula, dizia que era muito mais importante ler José de Alencar do que Joyce. Isso a alunos. É uma coisa de imensa irresponsabilidade passar para alunos esse tipo de ideário estético.

Sul21 – Sim, porque não se trata apenas de Joyce.

Bois de Picasso: sequência de 1 a 11

Fernando Monteiro – Trata-se de quase todo mundo! E ele diz que é muito mais importante ler Iracema do que ler Joyce, porque ele via seus alunos muito mais conectados com isso. E ele dizia: “Joyce é estrangeiro, não interessa. José de Alencar é muito mais importante”. E, se na sala tiver um garoto inocente, fascinado pelos encantamentos do professor Ariano, ia atrás da conversa. Isso é grave e ele faz o tempo todo. Baseado nisso, ele criou o movimento Armorial, que é a estética de Ariano Suassuna em movimento. Ali, ele defende a coisa do sertão e rejeita a modernidade. Além de amar Alencar, ele não reconhece a obra do Tom Jobim, detesta a Bossa Nova, a tropicália. Ele chama o Chico Science de Francisco Ciência, ele não admite o inglês, o uso do inglês. Eu me lembro do Sérgio Buarque de Hollanda no prefácio de um livro de Jorge de Lima. Ele dizia que não via com simpatia os esforços em busca por essa identidade nacional, que nos fornecessem uma mitologia qualquer, mas Ariano é tão apressado que quer criar logo uma mitologia. E Sérgio dizia: “A cultura brasileira se formará muito mais da nossa indiferença do que do nosso esforço deliberado”. O Ariano não concorda, rejeita. E aí você pode dizer: “Mas Fernando, você fica no pé do Ariano”, só que Ariano foi por oito anos Secretário da Cultura de Pernambuco. E do governo municipal também. E, como administrador oficial, ele só contemplou o que dizia respeito ao mundo estético dele. Eu não estou reclamando de nada subjetivo, nem de algo do campo puramente teórico. Eu estou reclamando de um administrador cultural que durante oito anos não deu seguimento ao Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, que é dos anos 40. E ele não editou livro algum que fosse de outra linhagem. Entendeu? Ele se voltou para a orquestra Romançal porque brigou com um maestro da orquestra Armorial. Sempre incentivou as coisas do seu programa estético e isso está errado do ponto de vista da administração da cultura. Ele não queria — e não aconteceu — o Salão de Artes Plástícas porque provavelmente não tinha o Boi de Altamira (risos) e sim a arte contemporânea da qual não gosta. Mas…

Sul21 – Ele é admirado.

"“Houve um avanço enorme desde a idade da pedra, Ariano”.

Fernando Monteiro – Sim, apesar disso tudo, todo mundo gosta de Ariano. Claro, ele é muito simpático, muito sorridente, está sempre contando piada. Ele vai no Jô e o Jô dá risada dele. Só que Ariano a quatro mil quilômetros de distância e não sendo secretário de cultura é muito fácil de se gostar. Mas com ele como secretário e você como um artista de outra “linhagem”, como ele costuma dizer, você não tem vez de trabalhar com o Estado. Isso é terrível. Ele é um coronel da cultura.

Sul21 – Há outros “gurus” por aí?

Fernando Monteiro – Quando Luciana Villas-Boas diz na revista da Livraria Cultura que os jovens autores não devem escrever nem contos nem poesias, mas romances, é uma fatia dessa mesma coisa de adequar-se ao espetáculo, do que aquilo que interessa é a exposição, a mesmice. O motivo é simplesmente que “não vende” e não vendendo o autor fica com o estigma de afastar público. À princípio a gente não percebe o tamanho deste absurdo porque tendemos a respeitar uma pessoa que trabalha há 20 anos como uma das maiores editoras do país. Porém, sem o conto, não teríamos João Antônio.

Sul21 — Nem Dalton Trevisan, Rubem Fonseca…

Fernando Monteiro – Sim. Acho que o problema de não vender contos é um problema do editor. Quem acaba vendendo são os de comportamento espetacular, como o poeta Fabrício Carpinejar e outros, que se curvaram às necessidades do mercado, agindo como artistas de pop-rock. É o artista expondo a si próprio como espetáculo. O Carpinejar fez sua escolha. Não li seus livros mais recentes, mas era um bom poeta.

Sul21 – Hoje não mais, mas você escreveu romances.

"O mercado parece não estar preparado para obras fora de seu padrão".

Fernando Monteiro – Sim, ainda sou convidado para debater romances e para escrevê-los, além de andar na companhia de romancistas, muitos dos quais são meros reflexos do mercado. Abandonei o romance por várias razões, mas a principal é a de que o mercado parece não estar preparado para o que inquieta, para as obras fora de seu padrão, que era o que eu produzia. A nova forma de pensar acha que o leitor incomodado ou inquietado desistirá ou não recomendará o livro. Eu ajo como kamikaze e digo que não tenho interesse em ser lido pelo leitor médio brasileiro, não quero nem que ele goste! Eu peço educadamente a este senhor e a esta senhora, que me chegam por indicação da Veja, que não me leiam. Esse leitor médio, que as grandes editoras como a Record, a Rocco e a Cia das Letras procuram satisfazer, não me interessa. Eu fui dizer isso num encontro literário nacional e um autor muito conhecido se indignou. É notável como os grandes editores parecem desinteressados em editar qualidade como a ex-editora Globo fez em Porto Alegre nos anos 50 e 60 com excelentes resultados mercadológicos. Esta nobre função não seria também das editoras?

Sul21 – E a poesia?

Fernando Monteiro – Eu voltei para a poesia porque ela está abandonada, deixada no esquecimento. Ela não é objeto de nenhuma sanha, de nenhum apetite, então está em paz. Eu voltei para ela desde a publicação de Vi uma foto de Anna Akhmátova. Nenhuma grande editora publicaria aquele poema longo de cento e tantas páginas. É um formato no qual eu ainda acredito, apesar da crise da poesia que, na verdade, é a crise do leitor da poesia, o qual não está mais acostumado a decifrá-la. É o leitor como consumidor é quem passou a regular bisonhamente o mercado, pois não se abrem caminhos novos, é sempre mais do mesmo.

Sul21 – São livros que apenas avalizam o senso comum do leitor?

Fernando Monteiro – Exato. Eles vão ao encontro do leitor. Este não quer surpresas e muito menos pensar muito. Desde os livros de vampiros – que são entretenimento vagabundo – até o livro aparentemente profundo, mas que na verdade são uma diluição semelhante a grande parte do cinema de Woody Allen. Allen não me engana nas suas aparentes profundidades psicológicas mal imitadas de Bergman. Foi excelente comediante, apenas. Outros cineastas empenhados de outra forma, como Angelopoulos, não tem a menor facilidade de produção. Woody Allen fabrica produtos análogos ao do escritor que desenvolve produtos ao encontro do que o leitor e o expectador deseja.

Sul21 – Allen tornou-se ultimamente turístico, há odes à Barcelona, Paris, Londres.

Fernando Monteiro – Sim, o financiamento dos filmes por parte destas cidades já é um desdobramento natural de um produto que é voltado para o bem estar. Para onde ele vai agora? Sugiro Beirute, Trípoli, mas não, antes ele acabará no Rio de Janeiro.

Sul21 – Falar mal de Woody Allen gera problemas com grande parte das pessoas, não?

Fernando Monteiro – É mais ou menos como falar mal do Corinthians. Os admiradores de Allen não suportam a ideia de que ele se apropriou das características menos inquietantes do cinema moderno para criar um produto que varia muito pouco de um ano para outro. Um Fellini, um Visconti, um Antonioni que viesse expor suas angústias seriam rejeitados. Eles não encontrariam os produtores que encontraram nos anos 50 e 60.

Não há razão para comparar Adriana Calcanhotto e Ná Ozzetti, mas…

Bem, no último sábado, escrevi isso aqui numa matéria para o Sul21 (publiquei só o que está em itálico, claro):

Ao menos neste período, não há como reclamar da vida cultural de Porto Alegre. Na última terça-feira (06), iniciou o Porto Alegre em Cena, que vai de 6 a 27 de setembro. Entre os dias 7 e 20 deste mês, temos a famigerada — sim, estou sendo altamente pejorativo —  Semana Farroupilha, que dura bem mais que uma semana e, neste sábado (10), começou a 8ª Bienal do Mercosul, que se estende até o dia 15 de novembro, ultrapassando o final da Feira do Livro que irá de 28 de outubro a 12 de novembro. Considerando-se todos os eventos, ficam contemplados o teatro, a música popular, as tradições, as artes plásticas e a literatura.

E é tudo muito barato ou gratuito. Hoje, sigo nos concertos e peças. Das 20h30 até o intervalo, verei o concerto da OSPA, e depois, às 22h, vou assistir a peça uruguaia Neva. O tema é a figura de Olga Knipper, mulher de Tchékhov, que nunca foi lá muito veraz em suas histórias e que tinha um comportamento polêmico como ex-esposa do grande dramaturgo. No drama, ela vive uma crise: longe dos palcos, cuida de seu marido, que definha num sanatório alemão. Isso, a doença, macularia uma imagem de atriz perfeita construída em anos de trabalho. Muito fantasiosa, Olga representa a respeito de tudo. Por exemplo, sabe-se das muitas versões acerca da morte de Tchékhov, reinventadas pela mulher como se fosse uma cena de teatro a ser lapidada. O resultado é até hoje não se sabe como foi. Aguardemos pela noite.

Voltando (ou recém chegando) a nosso assunto: sábado, fui ver Ná Ozzetti e, ontem à noite, Adriana Calcanhotto. Foram dois shows acústicos de duas cantautoras, ambas acompanhadas por excelentes bandas; Ozzetti com um quarteto, Calcanhotto com um trio; as duas no Theatro São Pedro. Ozzetti é muito tímida e trancada no palco, Calcanhotto esconde muito melhor o fato de também ser assim. Não, não há necessidade nenhuma de compará-las e, se o faço, é apenas pela proximidade e pela diferença entre os espetáculos.

O show de Ná, Meu Quintal, morre na baixa qualidade de suas composições. A cantora — muito melhor tecnicamente e com mais extensão vocal do que Calcanhotto — mostra músicas fraquinhas com letras de bicho-grilo tardio. Salva-se algumas canções de Luiz Tatit e a excelente interpretação de Na Batucada da Viva, de Ary Barroso e Luiz Peixoto (1934). Enquanto Ná mostrava suas músicas e parcerias, eu tratava de deixar o tempo passar, revisando mentalmente a agenda, etc. Meu Quintal é apenas simpático.

Adriana Calcanhotto tem outra presença. Impõe-se, não é nada leve ou bicho-grilo como Ná. Suas músicas têm boas letras e Adriana compensa a falta de extensão de sua voz com músicas facilitadoras — simples, diretas, boas. O resultado é que Micróbio do Samba funciona maravilhosamente. É um espetáculo dedicado de cabo a rabo ao samba. Toda de preto, Adriana não faz um show “pra cima”; canta com inteligência e poesia a vida cotidiana. Sua dança quase imóvel, as poucas palavras e a fingida indiferença para com os aplausos não são apenas heranças benditas do rock, são a construção de uma personagem agradavelmente blasé durante as quase duas horas de espetáculo. Sua única fala, além da apresentação dos músicos e de um rápido boa noite, foi muito emocionante. Ela acendeu um copo de Steinhäger (isso mesmo) para homenagear Caio Fernando Abreu, que ontem faria 63 anos. Recomendo!

O Nobel de Doris Lessing

O Prêmio Nobel de Literatura é uma láurea às vezes geopolítica, às vezes literária. Foi geopolítica, por exemplo, a premiação de Nadine Gordimer em 1991 — lembrem que o apartheid foi abolido em 1990 por Frederik de Klerk e a Academia Sueca entendeu ser interessante mostrar ao mundo que havia escritores por lá — ; foi novamente geopolítico quando deu seu polpudo cheque à ridícula Toni Morrison em 1993 — presumiram que seria a hora de premiar uma mulher negra? — ; chegou a níveis rasantes quando chamou Alexander Soljenítsin em 1970, logo após ter concedido um prêmio verdadeiramente literário a Samuel Beckett em 1969. Aliás, a premiação a Soljenítsin parece ter causado tal espanto aos próprios acadêmicos – o único e duvidoso mérito literário do escritor era o de ser um notório dissidente soviético — que, no ano seguinte, resolveram dar o prêmio ao comunista Pablo Neruda durante o governo de Salvador Allende.

Pode acontecer também de um prêmio geopolítico alcançar grandes escritores. Em 1976, a Academia quis dar TODOS os prêmios a norte-americanos em razão do bicentenário de sua independência e o Nobel de Literatura acabou com o grandíssimo Saul Bellow — na verdade um canadense naturalizado. No ano passado, outro gol: quiseram dar uma demonstração de como oriente e ocidente poderiam conviver pacificamente e deram a grana ao extraordinário Orham Pamuk, autor nascido e naquela época morador de Istambul, a cidade que em que se pode ir da Europa para a Ásia e vice-versa atravessando-se uma ponte. No retrasado, a Academia quis ser apenas literária e deu a Harold Pinter um belo Nobel.

Já o de Lessing é mais complicado de interpretar. Dona de um sobrenome que encontra melhor eco na literatura alemã, ela é uma escritora que foi lidíssima entre os anos 60 e 80 e que curtia uma dourada quase-aposentaria na Inglaterra. Era feminista e comunista, tornando-se apenas o primeiro nos anos 90. Aos 87 anos, ainda publica livros cada vez menos lidos e elogiados. É, de fato, uma escritora que deveria parar ao invés de seguir publicando novelinhas secundárias.

Eu li mais de vinte livros dela e considero The Golden Notebook (1962; no Brasil O Carnê Dourado), Memoirs of a Survivor (1974; no Brasil Memórias de um Sobrevivente) e The Summer Before the Dark (1973; no Brasil, O Verão Antes da Queda) livros autenticamente grandiosos e importantes. Ela também escreveu duas famosas pentalogias: a muito esquerdista série Filhos da Violência, que é bastante boa e onde aparecem dois notáveis personagens: Martha Quest e Anton Hesse; e a chatíssima Canopus em Argos: Arquivos, que ficou famosa no Rio Grande do Sul por ser amada e idolatrada por Caio Fernando Abreu. Coisas de nosso Rio Grande…

Doris Lessing não é uma escritora de linguagem sutil. Sua frase é direta, rápida e não podemos falar numa prosa elegante. Tem notável habilidade para construir personagens e a polifonia de seus livros é bastante original, pois não é formada por apenas por vozes de personagens, mas estes recebem o auxílio de situações e ações, que muitas vezes os contradizem. Não é pouco, porém…

Thomas Pynchon, Philip Roth e Antonio Tabucchi mereceriam muito mais o prêmio. Permanecem, contudo, na excelente companhia de Tolstói, Proust, Joyce e Borges.

O Brasil só poderia ganhar um prêmio geopolítico, só que andamos muito pouco dramáticos. Não punimos torturadores, não nos preocupamos com o papel da Amazônia no aquecimento global e achamos Ariano Suassuna um gênio… Nosso estilozinho deslumbrado low-profile não está com nada.

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A visita de Cláudio Costa foi o esperado, isto é, perfeita. Convenceu-nos a uma retribuição em Minas. Vamos, é claro. Ninguém nos convida impunemente… Não nos surpreendeu o fato de ele ser casado com uma pessoa tão querida e agradável quanto a Amélia, a gente sempre fica maravilhado ao ganhar mais uma amiga. Incrível seu entendimento com a Claudia.

Publicado em 15 de outubro de 2007

O que torna ruins os livros ruins?

Ora, um monte de coisas, mas acho que o pior de tudo é a construção de um conflito desinteressante, piegas ou cheio de clichês. Ou má construção de um conflito, ignorando a seu potencial. Os clichês incomodam muito, mas quando peguei um livro de Ian Fleming (007), o himalaia de clichês era tão impressionante que era divertido… Parecia Tarantino… Aliás, quando assistimos a um filme do 007, esperamos exatamente o clichê e ai do diretor que não nos satisfizer. Não li Dan Brown, mas o filme feito sobre O Código da Vinci é outro interminável e desagradável desfiar de clichês. A falta de charme e de originalidade é uma merda, mesmo.

Eu adoro os inícios dos romances de Balzac. Quase sempre, eles começam com uma calma e elegante apresentação dos personagens. O texto avança e nos açambarca, pois já traz os conflitos grudados a cada um dos personagens como parasitas. Mas ele escreveu o desagradável A Mulher de 30 Anos, um dos maiores exeplos de ruindade que conheço. Ele estava com pressa ao escrever, tinha dívidas e fez uma desgraça de livro.

Nunca uma capa disse tanto sobre um romance

Tenho certeza de que a identificação de uma má redação é intuitiva. A correção gramatical pode ser chata, o tom pode ser chato, o brilhantismo pode ser chatíssimo, Eu não sei porque alguém tem má redação ou é chata, mas há gente muito capaz que é desinteressante. É uma pena quando um desses escritores descobre um bom tema. Dia desses, li um livro que era um porre. Era de um blogueiro. O cara sabe escrever, mas a construção da novela era (muito) periclitante, até paradoxal, e ainda o acompanhava uma nota final – havia outra, a inicial… – em que o sujeito justificava as mancadas ou, em outras palavras, sua ruindade. Insuperável chatice arrogante, pois há pessoas que apenas usam o romance para chamar a atenção das pessoas para suas existências, independentemente do texto produzido. Sei que escrever é vaidade; sei melhor que escrever bem é a vaidade recebendo a admiração alheia. Um bom mutualismo!

Também há os que têm seus modelos literários e tentam desesperadamente alcançá-los (no caso de autores) ou procurá-los (no caso de críticos). “Infelizmente, alguns dos meus colegas da Universidade julgam tudo pela proximidade a Ulisses, de Joyce, o qual releem anualmente”, li num artigo. Se o Charlles Campos, leitor e comentarista habitual do blog, julgasse tudo sob um filtro – o qual seria certamente imaginado por ele – de Faulkner, eu o chamaria de imbecil para baixo. Seria o mesmo que eu, kafkiano de quatro costados, admirar o austríaco que escreve em um só parágrafo por seus incertos e tênues parentescos com o tcheco. Durante anos a literatura brasileira sofreu do Efeito Clarice. Um monte de gente queria ser Clarice Lispector. Houve grandes epígonos que livraram-se em bom momento da sombra ucraniana – Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll e poucos mais – , mas imitar Clarice… Por quê? E para quê imitar a mais pessoal das escritoras? Ah, e céus, como escreveram porcarias!

(um dia qualquer, continuo)