100 anos da beleza e da fúria de Iberê Camargo

100 anos da beleza e da fúria de Iberê Camargo

Publicado em 16 de novembro de 2014 no Sul21

O homem sem fé não cria. Fé em quê? No que faz.
Iberê Camargo

O prédio da Fundação Iberê Camargo (foto abaixo) está fechado, mas o motivo é nobre: é que está sendo montada a exposição Iberê Camargo: século XXI, que comemora os 100 anos do nascimento do artista. A mostra comemorativa ficará aberta à visitação entre os dias 18 de novembro de 2014 a 29 de março de 2015. (E, portanto, já fechada na data desta publicação. Mas creio que o texto não fica, de modo nenhum, invalidado). Ela foi concebida contemplando os principais temas de suas obras e suas repercussões na produção de artistas brasileiros contemporâneos. Diferenciando-se do formato convencional de exposições comemorativas, em geral um conjunto representativo ordenado cronologicamente, a mostra destaca a poética de Iberê em diálogo com trabalhos de dezenove artistas brasileiros de várias gerações.

Pela primeira vez, todos os espaços do edifício sede da Fundação serão tomados como expositivos. A totalidade do prédio projetado por Álvaro Siza, desde o lado de fora ao interior tortuoso das rampas, passando pelo grande átrio, acolherá obras e conjuntos de obras com afinidades com os grandes eixos tratados pelas várias séries de Iberê Camargo. Séries como “Carretéis”, “Núcleos”, “Fantasmagorias”, “Ciclistas” e “Idiotas” serão apresentadas na companhia de trabalhos de outros artistas. O cinema, que Iberê tanto apreciava, ocupará as rampas que levam de um andar ao outro, como também a literatura, que ele amava a ponto de praticá-la.

Iberê Camargo, nascido em 18 de novembro de 1914, foi um artista sofisticado, dono de uma arte impactante, impaciente, torturada e visceral. A fase mais importante deste gaúcho de Restinga Seca não pode ser menos decorativa e indulgente. Por isso, não deixa de surpreender que, em nossa época, sistematicamente acusada de superficial e de privilegiar o entretenimento — o que também é verdade — , a arte de Iberê tenha alcançado tamanha relevância que chegue ao ponto de sua importância poder ser vista no caminho da Zona Sul de Porto Alegre desta forma:

Fundação Iberê Camargo na Av. Padre Cacique, 2000 em Porto Alegre | Foto: Bernardo Ribeiro

O ensaio de Paulo Venancio Filho, Iberê Camargo, desassossego do mundo, não deixa dúvidas sobre o caráter de Iberê: “Dostoievsquiano, revoltado, angustiado, trágico, sinistro, violento, atormentado pela consciência” foram algumas das expressões utilizadas. Ao menos quando trabalhava ou falava sobre arte, pois o pintor, fora do ambiente artístico, foi sempre descrito como um homem educado e afável.

Poucos dias antes de morrer, em 9 de agosto de 1994, Iberê Camargo, já bastante debilitado pelo câncer, acordou Maria, sua esposa, no meio da madrugada. Pediu a ela que o levasse até o ateliê, pois queria finalizar uma tela. Achava que era a última oportunidade de fazê-lo antes de ser internado. Solidão é o título da obra inacabada. Se o fato demonstra uma postura absolutamente dedicada à arte – “Minha arte e minha vida são a mesma coisa”, dizia – , o título da obra também é muito significativo para quem disse, a respeito da morte: “Sempre fui um caminhante solitário. (…) Não nasci em cacho. Nasci só e morrerei só. (…) Não participo de paradas de sucesso. Não pertenço a grupos. Vivo recolhido. Não me importo em saber de que lado sopra o vento. Sou quem sou, faço o que faço.”, declarou Iberê para Lisette Lagnado no livro Conversações com Iberê Camargo.

Não obstante a dureza destas palavras, os amigos de Iberê lembram que ele exigia a solidão apenas em seu trabalho. De resto, “era generoso, gentil, falante, conciliava a solidão da criação ao convívio tranquilo no dia a dia”. Porém seu humor era de exemplar acidez. Não, não era um otimista. E ficou ainda menos após envolver-se numa tragédia em 1980, quando o homem gentil provou ser apenas um homem controlado.

Iberê estava numa rua do Rio de Janeiro, acompanhado de sua secretária, quando testemunhou em plena rua uma briga violenta entre um casal. Nervoso, o homem ameaçou-o por estar observando interessadamente a cena, empurrou a secretária e depois Iberê. Agredido, o artista – que tinha posse de arma – disparou dois tiros, matando o agressor. Foi absolvido por legítima defesa, porém nunca se recuperou da tragédia. O caso teve grande repercussão e o pintor resolveu voltar a morar em Porto Alegre e, ao mesmo tempo, trazer a figura humana de volta a seus óleos e gravuras.

Com efeito, o caso deixou Iberê abaladíssimo e influenciou de forma cabal sua obra. Como resultado, surgiram quadros de figuras esquálidas, grotescas, torturadas, espectrais e zombeteiras, cheias de angústia. Era como um Goya moderno, dedicado a retratar não os horrores da guerra, mas de seus fantasmas interiores. Do Rio, Iberê retornou a Porto Alegre em 1982, abrindo seu atelier na rua Lopo Gonçalves. Em 1986, foi morar e trabalhar no bairro Nonoai.

A artista plástica Lou Borghetti – que depois foi aluna e assistente de Iberê – conta sobre o primeiro encontro entre ambos, ocorrido justamente em 1980.

Ele estava com uma mostra na Galeria do Centro Comercial Azenha. Naquela época eu não conhecia de perto sua pintura. Passei em frente a galeria e me deparei com uma tela grande, escura e muito dramática. Pensei: não gosto, vou embora. Andei uns metros, voltei. Parei novamente, olhando a tela através do vidro e novamente meus pensamentos eram de como alguém pode pensar algo assim, pintar assim, eu não teria esta tela em minha casa, ou teria? Olhei para dentro da galeria, com pouca gente, num pequeno espaço expositivo bem acolhedor. Entro, não entro, entro, só pra ver a tela sem o vidro e ter certeza de que não gosto. Entrei, pensei, mas quem é esse pintor que de tão forte e corajoso me provoca tanta sensação de desconforto, mas ao mesmo tempo não consigo parar de olhar. Não tive dúvida, perguntei: Quem é o pintor? E um senhor alto, atencioso e muito gentil se aproximou e disse: – Sou eu. – Ah, desculpe, eu posso ser franca? – Claro. – Não gosto da sua pintura, me aflige muito.

E ele, do alto de sua extrema gentileza disse: – Nem eu.

Este diálogo faz eco a um outro, ocorrido no Rio de Janeiro nos anos 40. Logo que chegou ao Rio, Iberê Camargo foi procurar um dos grandes nomes do modernismo, Cândido Portinari. Portinari mostrou-lhe o que tinha em seu ateliê e perguntou se Iberê gostava. A resposta foi outro “Não”. Portinari achou natural: aquele menino ainda precisava se acostumar aos modernistas. Com uma de suas pinturas, Iberê recebeu um prêmio: uma viagem à Europa. Foi lá, entre Roma e Paris, que fortaleceu sua formação. Na Itália, estudou com De Chirico e na França teve aulas com André Lhote.

Voltando ao Brasil em 1950, começou a trilhar um caminho muito pessoal: o dos carretéis que usava como brinquedos durante a infância. Na séries Núcleos, formas de carretéis invadem cada tela com pinceladas densas, camadas pastosas de tinta em tons negros ou azulados. Críticos estrangeiros, ao observarem as obras desse período, tendem a traçar analogias com o expressionismo abstrato de De Kooning e Pollock.

Mas Iberê gostava era dos mestres — dos renascentistas, de Goya, de Rembrandt — e, entre os contemporâneos, preferia associar seu espírito criativo ao de Picasso, pelo desejo de retornar aos clássicos e dar a eles uma roupagem moderna.

– Meu aprendizado não se fez apenas através de cópias de grandes mestres. Embora não tenha – graças a Deus! – cursado uma academia de arte, na juventude frequentei ateliês de mestres, na Europa. O conhecimento, uma sólida cultura plástica como a entendo, jamais poderá sufocar a originalidade de um artista, se ele realmente a tem. Conheci em Paris, um escultor brasileiro, bolsista, que não frequentava museus para não perder a personalidade, esquecendo, talvez, que só se perde o que se tem. Mo Museu do Prado, encontram-se, lado a lado, cópias e originais de mestres: Delacroix après Rubens; après Tiziano.”

De volta a Porto Alegre, começa sua fase mais soturna da carreira. Figuras espectrais e disformes permeiam séries como As Idiotas, Fantasmagorias, Ciclistas e Tudo Te é Falso e Inútil (título inspirado em um verso de Fernando Pessoa). Grande parte dos trabalhos tardios de Iberê está exibida na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. “Além de lamentar os rumos do mundo e voltar-se para os desejos e angústias da humanidade, ele produzia para apalpar a eternidade e dominar o tempo, para continuar conosco por mais tempo”, afirma o escritor Paulo Ribeiro, que conviveu com Iberê nos últimos anos de vida.

Acamado, no hospital, antes de morrer Iberê recebeu a imprensa. Com a mesma fúria presente em telas criadas com verdadeiros nacos de tinta que formam impressionantes relevos, chamou os donos das galerias de arte de débeis mentais, disse que a arte brasileira da década de 90 era feita só de bugigangas. “Ah, e se sair do hospital e quiserem me deixar de mau humor é só me convidarem para um coquetel. Não vou!”.

http://youtu.be/wB_v0iiuBHs

Abaixo, algumas das principais obras de Iberê Camargo:

Da série As Idiotas
Da série Ciclistas
Fantasmagoria IV
Carretel 1984
Face
O Grito
Hora X
Mulher de Chapéu Preto, homenagem a Maria Leontina
Carretel Azul
Tudo te é falso e inutil III
Solidão
Carretéis - Mário de La Parra
Carretéis – Mário de La Parra
Paisagem, 1941 | Foto: Pedro Oswaldo Cruz
Paisagem, 1941 | Foto: Pedro Oswaldo Cruz
Sem título, c. 1941/42 | Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti
Sem título, c. 1941/42 | Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti
Mendigos do Parque da Redenção IV, 1987 | Fundação Iberê Camargo: Digitalização
Mendigos do Parque da Redenção IV, 1987 | Fundação Iberê Camargo: Digitalização
Sem título, 1989 | Foto: Fábio Del Re
Sem título, 1989 | Foto: Fábio Del Re
Dentro do mato, 1941/1942 | Foto: Fábio Del Re
Dentro do mato, 1941/1942 | Foto: Fábio Del Re
Sem título, 1942 | Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti
Sem título, 1942 | Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti

Fontes:
— Paulo Venacio Filho, Iberê Camargo, Desassossego do Mundo, Pactual, 2001
— Lisette Lagnado, Conversações com Iberê Camargo, Iluminuras, 1994
— Jonas Lopes, artigo A arte como expressão da vida de Iberê Camargo.
— Blog pessoal de Lou Borghetti – http://louborghetti.blogspot.com.br/

Iberê Camargo
Iberê Camargo

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As imagens e a fúria de Iberê Camargo

Publicado em 18 de novembro de 2012 no Sul21

O homem sem fé não cria. Fé em quê? No que faz.
Iberê Camargo

Iberê Camargo, nascido em 18 de novembro de 1914, foi um artista sofisticado, dono de uma arte impactante, impaciente, torturada e visceral. A fase mais importante deste gaúcho de Restinga Seca não pode ser menos decorativa e indulgente. Por isso, não deixa de surpreender que, em nossa época, sistematicamente acusada de superficial e de privilegiar o entretenimento — o que também é verdade — , a arte de Iberê tenha alcançado tamanha relevância que chegue ao ponto de sua importância poder ser vista no caminho da Zona Sul de Porto Alegre desta forma:

Fundação Iberê Camargo na Av. Padre Cacique, 2000 em Porto Alegre | Foto: Bernardo Ribeiro

O ensaio de Paulo Venancio Filho, Iberê Camargo, desassossego do mundo, não deixa dúvidas sobre o caráter de Iberê: “Dostoievsquiano, revoltado, angustiado, trágico, sinistro, violento, atormentado pela consciência” foram algumas das expressões utilizadas. Ao menos quando trabalhava ou falava sobre arte, pois o pintor, fora do ambiente artístico, foi sempre descrito como um homem educado e afável. Read More

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García Márquez e Fidel na última Bravo

A última Bravo! traz uma grande matéria de capa a respeito de um tema muito importante: “O Escritor e o Ditador — O Fascínio dos Intelectuais por Líderes Autoritários”. A matéria é centrada na relação Gabriel García Márquez com Fidel Castro. A amizade é não muito considerada e sim o fascínio, a obediência, o apoio incondicional. Está correto. Depois, o artigo avança na direção de outras relações de fascínio — o de Jorge Amado por Stálin, o de Ezra Pound por Mussolini e Mussolini , o de Camilo José Cela por Francisco Franco. Todos verdadeiramente escreveram odes a seus musos, algumas bastante constrangedoras. O autor do artigo, André Lahóz, procura manter um equilíbrio entre os políticos de direita e de esquerda, mas acho que perdeu uma bela oportunidade de falar no Brasil quando tocou levemente no tema da questão moral da complexa relação entre governantes e intelectuais. Também, coitado, Lahóz é editor-chefe da Exame…

Em nosso país de compadres, parece ser difícil falar nos escritores que buscam e buscaram cargos junto a governos ditatoriais. Mais importante do que o fascínio ou apoio que escritores destacados dão isolada e publicamente, talvez fosse analisar o mar de intelectuais que trabalham e trabalharam silenciosa e vergonhosamente para esses governos. No Brasil, meus caros, a coisa é disseminada até hoje. Eu mesmo conheço um importante escritor gaúcho que arranjou uma boquinha com a Yeda e, olhando mais para trás, quem não sabe que o ministro Gustavo Capanema tinha em seu time de assessores gente célebre e trabalhadora como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos e Vinícius de Morais, entre outros? Ora, isso ocorre até hoje, é só prometer um cargo que nossos intelectuais aceitam ou dobram-se com a maior facilidade. Sim, poucos morrem em revoluções no Brasil… Por isso, acho absolutamente sem sentido o final do artigo no qual Lahóz declara que, hoje, passados os dias dos seguidores de Marx e Lênin, abençoadamente substituídos pelo seguidores de John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville — repito aqui o ato falho de Lahóz ao citar o Karl Marx da primeira dupla (a dos esquecidos) apenas pelo sobrenome, enquanto que a segunda (a dos triunfantes) pelo nome completo, como se fosse necessário esclarecer quem fossem esses “famosos faróis” — , então,como dizia, passados os dias do seguidores de Marx e Lênin, hoje seria complicado para Hugo Chavéz, Evo Morales ou Kirschner (?) laçarem escritores que os bajulem e legitimem (mas ele acha mesmo que GGM legitimou Castro?). O final foi 100% Veja. Viva o Admirável Mundo Neoliberal!

Mas vale a leitura.

Logo após o artigo de Lahóz, há outro de Sérgio Rodrigues. Este faz uma excelente resenha sobre o livro Gabriel García Márquez: Uma Vida, notável investimento de 17 anos do inglês Gerald Martin, a ser lançado no Brasil em março. A biografia, apesar de autorizada, não contorna fatos embaraçosos — dentre os quais Omar Torrijos e Andrés Pastrana seriam os maiores, em minha opinião… — que foram descritos pelo inglês, segundo Sérgio, com compreensiva economia de adjetivos. Porém Sérgio também comete um pecado crasso.

(Certa vez, li um longo ensaio sobre a história do maxixe. Lá pela metade, o autor escrevia en passant que Pixinguinha era o maior compositor brasileiro de todos os tempos. A curta afirmativa parecia prescindir de quaisquer argumentos, pois era matéria transcorrida em julgado, assim como dizer que a água molha… Ora, sugeri educadamente ao autor que retirasse aquela frase que forçava uma verdade não tão clara assim. Houve concordância.)

A historinha acima adequa-se a Sérgio Rodrigues quando ele dá a entender que o conceito ou a ideia de “esquerda”, na política, está morto. Sem maiores explicações, ele decide que GGM tem uma atuação pública de esquerda que “sobreviveu à própria ideia de esquerda” (as aspas são minhas). Ora, este é um falso truísmo (Def.: Verdade trivial, tão evidente que não é necessário ser enunciada). Agora mesmo, a fim de ver se a matéria já tinha transcorrido em julgada, consultei teses contemporâneas de Ciências Políticas e vi que a validade de tais conceitos é efetivamente debatida, só que a maioria das teses, mesmo as de direita, reafirma que são conceitos válidos e mais, sugerem que dizer isso é uma espécie de vezo da direita mais truculenta.

Não sei exatamente o que Lahóz e Rodrigues escreveram. Ás vezes vem um editor e altera o texto, sei disso. Mas penso que a ideologia da Veja está pegando fundo em toda a Editora Abril. Ou a ideologia da Abril pegou na Veja, deu lucro e agora está sendo repassada, sei lá.

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