García Márquez e Fidel na última Bravo

A última Bravo! traz uma grande matéria de capa a respeito de um tema muito importante: “O Escritor e o Ditador — O Fascínio dos Intelectuais por Líderes Autoritários”. A matéria é centrada na relação Gabriel García Márquez com Fidel Castro. A amizade é não muito considerada e sim o fascínio, a obediência, o apoio incondicional. Está correto. Depois, o artigo avança na direção de outras relações de fascínio — o de Jorge Amado por Stálin, o de Ezra Pound por Mussolini e Mussolini , o de Camilo José Cela por Francisco Franco. Todos verdadeiramente escreveram odes a seus musos, algumas bastante constrangedoras. O autor do artigo, André Lahóz, procura manter um equilíbrio entre os políticos de direita e de esquerda, mas acho que perdeu uma bela oportunidade de falar no Brasil quando tocou levemente no tema da questão moral da complexa relação entre governantes e intelectuais. Também, coitado, Lahóz é editor-chefe da Exame…

Em nosso país de compadres, parece ser difícil falar nos escritores que buscam e buscaram cargos junto a governos ditatoriais. Mais importante do que o fascínio ou apoio que escritores destacados dão isolada e publicamente, talvez fosse analisar o mar de intelectuais que trabalham e trabalharam silenciosa e vergonhosamente para esses governos. No Brasil, meus caros, a coisa é disseminada até hoje. Eu mesmo conheço um importante escritor gaúcho que arranjou uma boquinha com a Yeda e, olhando mais para trás, quem não sabe que o ministro Gustavo Capanema tinha em seu time de assessores gente célebre e trabalhadora como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos e Vinícius de Morais, entre outros? Ora, isso ocorre até hoje, é só prometer um cargo que nossos intelectuais aceitam ou dobram-se com a maior facilidade. Sim, poucos morrem em revoluções no Brasil… Por isso, acho absolutamente sem sentido o final do artigo no qual Lahóz declara que, hoje, passados os dias dos seguidores de Marx e Lênin, abençoadamente substituídos pelo seguidores de John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville — repito aqui o ato falho de Lahóz ao citar o Karl Marx da primeira dupla (a dos esquecidos) apenas pelo sobrenome, enquanto que a segunda (a dos triunfantes) pelo nome completo, como se fosse necessário esclarecer quem fossem esses “famosos faróis” — , então,como dizia, passados os dias do seguidores de Marx e Lênin, hoje seria complicado para Hugo Chavéz, Evo Morales ou Kirschner (?) laçarem escritores que os bajulem e legitimem (mas ele acha mesmo que GGM legitimou Castro?). O final foi 100% Veja. Viva o Admirável Mundo Neoliberal!

Mas vale a leitura.

Logo após o artigo de Lahóz, há outro de Sérgio Rodrigues. Este faz uma excelente resenha sobre o livro Gabriel García Márquez: Uma Vida, notável investimento de 17 anos do inglês Gerald Martin, a ser lançado no Brasil em março. A biografia, apesar de autorizada, não contorna fatos embaraçosos — dentre os quais Omar Torrijos e Andrés Pastrana seriam os maiores, em minha opinião… — que foram descritos pelo inglês, segundo Sérgio, com compreensiva economia de adjetivos. Porém Sérgio também comete um pecado crasso.

(Certa vez, li um longo ensaio sobre a história do maxixe. Lá pela metade, o autor escrevia en passant que Pixinguinha era o maior compositor brasileiro de todos os tempos. A curta afirmativa parecia prescindir de quaisquer argumentos, pois era matéria transcorrida em julgado, assim como dizer que a água molha… Ora, sugeri educadamente ao autor que retirasse aquela frase que forçava uma verdade não tão clara assim. Houve concordância.)

A historinha acima adequa-se a Sérgio Rodrigues quando ele dá a entender que o conceito ou a ideia de “esquerda”, na política, está morto. Sem maiores explicações, ele decide que GGM tem uma atuação pública de esquerda que “sobreviveu à própria ideia de esquerda” (as aspas são minhas). Ora, este é um falso truísmo (Def.: Verdade trivial, tão evidente que não é necessário ser enunciada). Agora mesmo, a fim de ver se a matéria já tinha transcorrido em julgada, consultei teses contemporâneas de Ciências Políticas e vi que a validade de tais conceitos é efetivamente debatida, só que a maioria das teses, mesmo as de direita, reafirma que são conceitos válidos e mais, sugerem que dizer isso é uma espécie de vezo da direita mais truculenta.

Não sei exatamente o que Lahóz e Rodrigues escreveram. Ás vezes vem um editor e altera o texto, sei disso. Mas penso que a ideologia da Veja está pegando fundo em toda a Editora Abril. Ou a ideologia da Abril pegou na Veja, deu lucro e agora está sendo repassada, sei lá.

16 comments / Add your comment below

  1. De fato, Milton,
    o final é digno de um panfleto sectário como a Veja.
    Não ando com muita paciência para defensores ideológicos do mercado. Está certo, as tentativas de construção de sociedades e governos a partir do socialismo revolucionário não atenderam às expectativas de quem sonhou ou lutou por elas.

    Porém, por outro lado, as idéias de Mill, Smith e outros produziram o quê? Ora, produziram este mundo maravilhoso, com justa distribuição de riqueza e oportunidades, onde não há fome, nem miséria, nem condições desumanas de sobrevivência…
    Será preciso lembrar que é este mesmo sistema que produziu Wall Street, Detroit, a Microsoft, mas também o Haiti, a Nigéria e a Índia?

    Em seu final, o texto empilha falácias: diz que Saramago “desembarcou da canoa cubana”, o que é verdade, mas o sentido da frase é dar a enteder que ele mudou suas posições políticas e hoje simpatiza com o liberalismo, o que é um absurdo. Liberalismo que, aliás, como costuma acontecer na retórica de propaganda, é colocado ao lado da palavra democracia…

    Mas, então, porque essa insistência em atacar Marx e outros pensadores de esquerda? O colapso de suas idéias não é tão evidente? Porque ainda gastar tempo lutando contra elas?
    Ora, porque, ainda que as soluções propostas por elas tenham se esfarelado no final do século XX, muitas das críticas que fazem ao sistema vigente ainda são contundentes e ardem como um corte aberto.

    1. Farinatti,

      quando eu era criança e minha mãe estava irritada comigo, ela ameaçava me bater com um gato morto até fazê-lo miar. Hoje, eu me identifico com o gato morto. Alguns caras querem que a gente mie.

      Nossa utopia foi-se? Foi-se. Hoje os governos de esquerda não são nada revolucionários e muitas vezes respeitam tanto as regras que tornam-se, de devedores, em credores do FMI. Porém, o debate sobre a competência da esquerda para administrar é indesejado pela direita. As conquistas sociais e a ínfima melhoris da distribuição de renda deve ser esquecida. O que eles querem é voltar com ao ranço.

      O ranço é o gato morto. Então, voltam a discutir os crimes contra a opinião cometidos por Fidel, o twitter antirrevolucionário do Chávez, etc. Tanto usam esse gato morto para bater em nós que um dia ele mia de novo.

      E noto certo desespero nas hostes hostis. Acho que poderíamos utilizar os próximos 8 anos de governo para domesticar a imprensa, para desfazer alguns monopólios, para abrir o mercado, aumentar a competição, essas coisas bem capitalistas que eles detestam quando é com eles…

      Grande abraço.

        1. Milton,
          1. domesticar a imprensa? O Amrmando Falão morreu ontem.
          2. desfazer alguns monopólios? Justamente a visão de capitalismo da DR é o contrário. O capitalismo mais darwinista possivel. Escolhe grandes empresa e o governo faz ela “fundirem-se” com outras criando a stais das muiti nacionais: BROI, SADIGÃO, GOLRIG e assim vai. às agraciadas tudo, as demais que danem-se. E isto é esquerda, hein?
          3. abrir o mercado – pras madeireiras chinesas?
          4. aumentar a competição: vide 2
          Viu, nada como entregar o governo a um esquerdista. Ele sim pode fazer o programa da direita sem percalços.

          Branco

        2. Quando falo em domesticar a imprensa, sonho com uma lei argentina aqui. Esses grupões maravilhosos: Band, Abril, Globo, Record, FSP, todos tão iguais, grandes, inúteis mas pouco formadores de opinião — não podem contra os fatos — , mas chatos, chatos, chatos, principalmente para um consumidor médio de notícias como eu.

          Os monopólios, a abertura de mercado e a competição citadas por mim referem-se à imprensa (chata), não? Concordo contigo sobre a SadiGão, a BrOi e outras, só que o assunto é im-pren-sa.

        3. … divulgados pelo IVC no início deste mês relativos ao ano de 2009: a circulação média da Folha de S.Paulo é de 295 mil exemplares/dia e caiu 5%; do jornal O Globo, de 257 mil e caiu 8,6%; e do Estado de S.Paulo, de 213 mil e caiu 13,5%.

          Vai cair mais! Um dia a Veja cai!

  2. a Bravo foi uma revista cultural excelente até quando foi “adotada” pela editora Abril. Seus artigos caudalosos foram enxugados, enciclopédias como Hugo Estenssoro e Sérgio Augusto foram substituídos – tenho uma edição com um artigo imperdível do Tom Zé. Virou uma revista pra calouro de curso de artes.
    E agora “mainardizaram” ou “reinaldaram” a Bravo.

  3. Às vezes acho que acabamos por cair na contradição de, à custa de sempre assinalarmos o Inimigo, tornamos Seu nome sempre relevante, impedindo que O esqueçam. Mais ou menos o que faz a Igreja Universal com o coitado do Satanás, mas sem o deliberado propósito financeiro. Ao menos eu nunca ganhei dinheiro com o Mainard e o Azevedo. (Esses dois tornaram-se moeda financeira na Bolsa Nacional das Cotações das Ideias Estúpidas; eu mesmo já paguei com 300 mainardis a primeira prestação de um dos volumes da biografia do Canetti.)

    Direita e esquerda?? Onde?? Reconheço com um terno compadecimento a nostalgia que nós, que nascemos na década de 70, e o Milton, que ouvia pelo rádio, em suas ameaçadas tardes idílicas da infãncia, as últimas notícias da invasão polonesa pelas tropas nazistas, reconheço (como ia dizendo) a nostalgia que nos faz a falta das grandes causas, das nobres causas, das utopias. Como na definição da Arendt, viviamos os últimos resquícios dos tempos interessantes: o rescaldo da guerra do Vietnã, a revolução sexual e os tumultos de 1968, as ditaduras latinoamericanas, a abertura e exposição pontual dos arquivos secretos da CIA sobre as intervenções imperiais dos EUA nos países subdesenvolvidos, o boom da literatura hispanoamericana… Nesses extertores finais do agonizante corpo do século XX (um iminente cadáver proliferado de chagas e cãnceres inéditos!), ainda podíamos respirar o adrenérgico ar do idealismo que, fracassado em todo revolto mundo transatlântico e naquelas pradarias soviéticas recém desmascaradas, por aqui tínhamos o privilégio de vestí-lo como fazemos em relação a todo pensamento modístico europeu, como quem requenta um suflê e o consome com a boca salivante para a qual o ranço e a semsaboria parecem suculentos.

    Hoje, para nós que podemos prescindir_com dor e lamento, mas podemos_ da realidade virtual, nós cuja adolescência privilegiava mais o exercício dos pés nas caminhadas com os amigos que o amaciamento do glúteo na cadeira diante a Net, sabemos que se há um nome para esse tempo estranhíssimo com o qual temos que acostumar (para não sermos identificados tão imediatamente como “os velhos”) é: a Era da Anestesia. Para os que estão anestesiados, não há alternativa orientadora para esquerda, direita, para frente, para trás, mas só um presente perpétuo, sem glória, sem conflito. Nossos músculos, já amaciados pelo conforto de não termos de andar em marcha naquelas esporádicas e relativamente válidas jornadas diante tribunais, congressos ou quartéis, que um pai ou um avô por ventura fazia, passou para nossos filhos a informação assimilada de que daqui para frente a coisa redobra em conforto, em mais presente, agradável, anestésico…em flacidez. Um dos motivos que abandonei a carreira de professor é que não aguentava olhar aqueles olhos indevassáveis de trinta alunos sem peleja e sem misericórdia para seus próprios espíritos, veementes na decisão de serem apenas corpos respondendo às informações fibrilares de consumo e exaltação vazia de um mundo abolido de passado. Sem saberem, eles realizaram para si o sonho de Stephen Dedalus de fugirem do pesadelo da História.

    Por isso quando vejo alguém desesperadamente crendo em visões tradicionais da velha política, me enterneço com sua tentativa em se agarrar ao boneco da infãncia desaparecido, encontrado por acaso depois de décadas atrás do armário da antiga casa revisitada. E tanto mais vejo uma triste nobreza nisto quando_é claro_, se tenta reproduzir na realidade o fogo fátuo da Esquerda. Por isso amo tanto “Montanha Mágica”, e me refugio lá sempre que possível: deitado num dos quartos daquele asilo andino de Berghens, ouvindo humanistas poderosos e agonizantes sentados ao meu lado, coléricos e a ponto de se matarem por uma causa; respirando o mesmo ar daquele holandes célebre que, em um mundo já condenado, agarrou-se a Deus contra todas as evidências, porque como não pressentir claramente que dali para frente os ateus, sempre enganados pela vaidade, retiraria a ideia de deus das mínimas nuances sofisticadas para aspergi-la por cima dos mais variados objetos que iriam cultuar como atestado devoto de sua elegante distância ao deus morto?

    Antes de GGM, teve Rômulo Galegos, que perdeu o nobel por ter-se vendido a uma comissão de ministros de Estado que foram chantagear os acadêmicos de Estocolmo. E Jorge Luis Borges, apolítico mas cheio de vênias para os poderes conservadores caudilistas, que não evitou de ouvir de um dos políticos patriarcais, de seu lado em cima do palanque, que “havia lido todos os seus romances”, ele, um contista empedernido que nunca havia escrito um. Ou Vargas Llosa, que, cheio de discurso reacionário, em vez de exercer o exílio incorruptível e sem preços do escritor militante, se lançou a candidato a presidente, perdendo para o Fujimori, futuro perpetrador de crimes contra a humanidade e preferido pelas massas peruanas, como o são todos os canalhas que vertem mel pela boca pela ralé.

    Talvez por isso amo tanto o eternamente juvenil Cortázar, e o mais lamentavelmente fadado a desaparecer entre os ficcionistas deste lado da Terra. Em seu livro sobre a Nicarágua, ele sai tirando fotos da população, fotos de crianças sorrindo nas praças, de mulheres com turbantes coloridos, de quadros pintados pela população sorridente. Ao chegar em sua casa e organizar os slides para ver as fotos reveladas, sozinho na sala, os sorrisos, o frescor, o sol andino, se transformam em fotos de campones pendurados pelos pescoços, em mulheres nicaraguenses estupradas, em crianças mortas pisoteadas por cavalos da milícia, em cadáveres mornos escorados no muro…

    Ou como Camus, um outro escritor em processo de nebulização, que não acreditava em nenhum modelo política que custasse a vida de um único homem. Pois o resultado dessa Era da Anestesia é que o chão não consegue permanecer com a mesma pureza intocável no presente, mas vai se revoluteando lentamente para se abrir em novíssimas covas coletivas.

  4. milton, li tudo do GGM, escrevi uma monografia de final de curso sobre ele, e o acho imprescindível. Mas dez anos atrás, ele compôs uma loa descarada e de baixíssima qualidade (ecoando todos os cacoetes de seus romances) de Castro, umas oito páginas de chatíssima cantilena sobre um herói sobrehumano que dorme pouco, tem Hemingway como mestre, é dotado de uma capacidade natural de escrever bem e semi-deus em geral, e a vendeu para todas as principais revistas mundiais (a Veja a ostentando como matéria especial, inclusive!). Se duvida, consulte o site da revistinha. Sobre Omar Torrijos, Graham Greene chegou a compôr todo um livro sobre ele. A autobiografia de Márquez_ indispensável_ ele conta algo extraordinário para qualquer adepto da esquerda: seu casamento foi feito pelo revolucionário padre dissidente Camilo Torres, que breve deixaria a vocação e se tornaria um líder revolucionário da mesma estirpe do Che, cultuado mas pouco conhecido.

  5. Eu acho que a comparação com os escritores brasileiros aí ficou um pouco fora de esquadro.

    Não sei no caso do tal gaúcho Yedista.

    Mas o caso dos modernistas é razoavelmente mais complexo.

    Primeiro porque, por mais autoritário que tenha sido o governo Vargas, não há como negar que ele promoveu avanços sociais incríveis sobre a República Velha. O controle da “democracia” pelos oligarcas só deixava aberta a porta da modernização pela via autoritária.

    Quem eram os “constitucionalistas” em 1932?

    No Estado varguista os escritores assumiram uma função pública de construir a nação. E os cargos no Estado ajudaram a suprir uma deficiência de mercado. Tínhamos ótimos escritores no Brasil, mas o mercado literário praticamente não existia.

    Aliás, foi criado por estes mesmos modernistas, que são até hoje peça principal do nosso cânone literário.

    Acho que o caso GGM-Castro se parece unicamente com o caso Jorge Amado-Stalin, ou Jorge Amado-Prestes. É só ler coisas como Subterrâneos da Liberdade, O cavaleiro da esperança ou O mundo da paz.

    São livros de propaganda política descarada, mas não invalidam tudo o mais que o autor fez antes e depois de sua fase de comunismo oficial. Acho que o mesmo vale para o GGM.

    1. Talvez, André. Mas tu não achas que os poemas mais políticos de CDA têm pouco a ver com quem aceita carguinhos? Villa tudo bem, não há música erudita sem o Estado no Terceiro Mundo, sabemos. E Portinari?

      Bem, sei lá.

      1. Não conheço muito a obra do Drummond, a bem dizer só as coisas que li na escola. Sempre achei ele o máximo. Aliás, era secretário do ministro da educação, no tempo em que o Brasil criou suas universidades, etc.

        Já o Villa, adoro as músicas, mas a personalidade política era muito canalha.

        O Portinari é uma coisa fantástica. Não dá pra condenar o cara por atender encomendas do Estado. Teríamos que punir também o Niemeyer.

        E quanto ao GGM, depois de escrever “100 anos de solidão” o cara ganhou crédito para fazer qualquer merda pelo resto de sua existência…

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