Ontem, peguei um Uber com um haitiano. Logo notei que o sotaque me era estranho e ele me disse que sua língua preferencial era o francês.
— E o crioulo?
— O crioulo é a língua das ruas. O francês é a língua da escola, dos livros e dos documentos. Eu falava crioulo na rua, mas tudo o que escrevia e lia lá era em francês.
— São línguas parecidas?
— Sim. Bon jour, bon soir, quase tudo igual, mas o criolo tem algumas palavras diferentes, nossas.
— O francês é oficial?
— Sim. Somos um dos 2 países da América com língua oficial francesa. O outro é o Canadá.
Perguntei como ele aprendera o português.
— Em Manaus, com um professor angolano. Três meses de aula. Bom professor, mas com aquele sotaque e a fala rápida dos portugueses. Tinha que suar para acompanhar.
— E o clima em Manaus, é parecido com o do Haiti?
— Não. O Haiti tem o melhor clima do mundo. É seco e agradável. É dos poucos motivos de orgulho. O sol do Haiti é vitamina, o de Manaus é doença.
— Sim, minha mulher viveu 7 anos lá e concordaria. E como vieste parar em Porto Alegre?
— Meu filho conseguiu emprego aqui. Me ajudou a alugar este carro e estou dirigindo há 4 semanas, sem conhecer quase nada da cidade.
— E tu sente o racismo?
— Claro que sim. Brasileiro não é fácil. Me olham estranho. É difícil alguém sentar do meu lado como o senhor. E reclamam que eu não sei o caminho. Não sei mesmo. Ainda bem que tem o banco de trás, né?
E abriu enorme sorriso.
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(Boa sorte no Brasil, M., vais precisar. Detalhe: M. tem 4,66 na avaliação. Não sei se é merecido).
Minha namorada é uma brasileira nascida em Mogilev, na Bielorrússia. Eu sou um brasileiro neto de portugueses nascidos numa pequena localidade próxima de Aveiro, em Portugal. Minha namorada chegou aqui com menos de 30 anos de idade, é altamente qualificada e logo conseguiu emprego. Depois, fez concurso para uma orquestra sinfônica, obtendo vaga. Meu avô, de formação menos sofisticada, chegou mais ou menos com a mesma idade e trabalhou como estivador em Porto Alegre. Depois, o velho Manuel abriu sua padaria, chamada Lisboa.
Nossos imigrantes adoram contar histórias fantasiosas de suas famílias. A maioria delas é absolutamente mentirosa. O pessoal veio para cá porque era pobre. Muitos passaram fome. Ninguém era nobre nem tinha ligações com a realeza. Somos quase todos imigrantes recentes. A maioria de nós, brasileiros, somos netos e bisnetos de famílias pobres europeias que estão aqui há menos de dois séculos. Se não somos descendentes de europeus, somos descendentes de escravos que chegaram antes dos primeiros por aqui.
Acho triste, acho revelador de pobreza de conhecimento de sua história familiar e do Brasil, quando alguém reclama dos haitianos, dos médicos cubanos e agora dos ganeses. Somos quase todos imigrantes. E recentes.
Além do mais, quando se torce o nariz — especialmente para os que chegam dos países citados acima — há racismo embutido. E há também o preconceito de classe. Afinal, haitianos, cubanos e ganeses são gente normalmente pobre. Assim como meus parentes, eles passavam fome no local onde nasceram ou moravam. Que coincidência, não? Se fossem brancos europeus, talvez fossem saudados como pessoas do primeiro mundo reconhecendo boas possibilidades em nosso país. Já li reportagens ufanando-se disso.
Há imigrantes que, como os haitianos, cubanos e meu avô, vieram simplesmente buscando oportunidades, mas há aqueles que vieram atender nossas necessidades de mão-de-obra. Seus fluxos migratórios atendem à demandas por força de trabalho no Brasil, onde determinadas ocupações já não são preenchidas apenas por brasileiros, como operários da construção civil, empregadas domésticas, costureiras, etc.
A imigração é um fenômeno mundial, assim como a exploração das fragilidades dos imigrantes. Assim, devem ser protegidos e auxiliados. O fato da maioria de nossos antepassados ter sido explorada quando aqui chegou é mais um motivo para tratarmos bem os que, agora, chegam em busca de sustento para construir nosso país. Esse papo crescente de ajudar os brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, do está ruim sem vocês, pior com vocês, é de uma tolice vergonhosa. Ainda vindo de quem não suporta o Bolsa-Família…
Não penso que o velho Manuel tenha vindo para o Brasil a fim de roubar o emprego de algum brasileiro que chegou um pouco antes. Não gostaria de pensar que ele sofreu preconceito. Então, tratemos os ganeses como seres humanos que estão fazendo agora o que nossos ascendentes fizeram há pouco tempo, tá? Não é gente inferior, não. É gente necessitada, apenas.
A Folha de São Paulo realizou uma enquete com 70 jovens músicos, escritores, diretores de cinema e de teatro, atores de TV e artistas plásticos, todos com até 40 anos de idade. A amostragem não é a melhor possível, mas o resultado foi o esperado: Caetano Veloso — que completa 70 anos hoje — e Chico Buarque foram eleitos como os artistas vivos mais importantes da MPB. É curioso: esta dupla, que já dividiu discos, palcos e até programa de TV, não é nada homogênea. Se Chico é uma unanimidade, Caetano está longe disso; se Chico é musicalmente mais conservador, Caetano se reinventa a cada trabalho; se Chico é a continuidade da tradição do samba e da bossa nova, Caetano é o artista que adora novidades, que visita o rock e a música latino-americana; se Chico traça uma trajetória coerente e em linha reta em suas intervenções políticas, Caetano é tortuoso, sendo o costumeiro autor de infelizes intervenções na vida brasileira. Sim, o que deveria importar é o artista e sua produção, mas é impossível não lembrar das entrevistas de Caetano, nas quais Lula já foi um “analfabeto que não sabe falar e é cafona, grosseiro”. Também não podemos esquecer que Caetano e Gil fizeram uma Tropicália II que simplesmente excluiu todos os outros membros do movimento inicial. Gil tratou de ficar quieto, talvez envergonhado, porém o boquirroto Caê tentou justificar o fato, criando uma explosiva inimizade com Tom Zé, o qual costuma ofendê-lo com termos bastante chulos, além de desprezar publicamente os repetidos elogios de Caetano.
Caetano Veloso nasceu em 7 de agosto de 1942 em Santo Amaro, na Bahia. Foi o quinto dos oito filhos de José Teles Velloso, funcionário público dos Correios, e Claudionor Viana Teles Velloso, Dona Canô. Aos 17 anos, Caetano recebeu uma compreensível iluminação que o deixou fascinado pela arte musical: ouviu, num programa da Rádio Mayrink Veiga, a canção Chega de Saudade e tomou conhecimento do disco homônimo de 1959 de João Gilberto.
Desta forma, iniciou a carreira interpretando canções de bossa nova, sob a imensa sombra de João Gilberto. Depois, inseriu-se no estilo musical que ficou conhecido como MPB (Música Popular Brasileira). Porém, Caetano — uma figura magérrima que logo deixou crescer os caracóis de seus cabelos — foi o membro da MPB que mais esteve associado ao movimento hippie do final dos anos 60. Seu primeiro LP foi Domingo (1967), em parceria com Gal Costa. A sonoridade era totalmente bossa nova. O disco não vendeu muito, mas foi aclamado por artistas importantes, como Elis Regina, Wanda Sá e Dori Caymmi.
No segundo LP já tínhamos o Caetano que conhecemos. Caetano Veloso foi lançado em janeiro de 1968 e trouxe canções como Alegria alegria, No dia em que vim-me embora, Tropicália, Soy loco por ti América e Superbacana. Alegria alegria fez escândalo no terceiro Festival de Música Popular Brasileira (TV Record, outubro de 1967), juntamente com Gilberto Gil, que interpretou Domingo no Parque, classificadas respectivamente em quarto e segundo lugar. Era o início do Tropicalismo, movimento considerado “alienado” pela esquerda da época por incluir guitarras elétricas.
Em julho do mesmo ano, veio o fundamental álbum Tropicália ou Panis et Circensis. Trata-se de uma obra coletiva que apresentava Os Mutantes, Torquato Neto, Rogério Duprat, Capinam, Nara Leão, Tom Zé, Gil e Gal. Ouvindo o disco hoje, fica claro que, apesar das canções serem basicamente de autoria de Gil e Caetano, a revolução localiza-se na presença de Rogério Duprat nos arranjos, assim como na habitual e abençoada loucura de Tom Zé.
A postura de Caetano e seu modo hippie tropical de vestir deixava nervosa a ditadura militar. Havia desconfiança sobre aqueles baianos meio estranhos, ainda mais que seu amigo Gilberto Gil tinha canções bastante contestadoras. Por esse motivo, várias canções da dupla foram censuradas. Em dezembro de 1968, Veloso e Gil foram presos, sob a acusação de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira. Foram levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio, onde tiveram suas cabeças raspadas, suprema humilhação, mas dentro da ideologia militar de “cabelos longos, ideias curtas”…
Foram soltos em fevereiro de 1969, numa quarta-feira de cinzas, e seguiram para Salvador, onde tiveram de se manter em regime de confinamento, sem aparecer nem dar declarações em público. Em julho de 1969, após dois shows de despedida no Teatro Castro Alves, Caetano e Gil partiram para o exílio na Inglaterra. Antes de partir, Caetano gravou as bases de voz e violão do próximo disco, Caetano Veloso, que foram mandadas para São Paulo, onde o maestro Rogério Duprat faria e gravaria os arranjos. No repertório, destaque para as canções Atrás do trio elétrico, Irene, Não identificado, Charles anjo 45 e Marinheiro só. Caetano apenas retornou definitivamente ao Brasil em janeiro de 1972.
Durante a ditadura militar, as intervenções de Caetano Veloso foram mais no sentido da defesa da contracultura, mais próximas dos acontecimentos do Maio de 1968, do que propriamente contra o regime militar. Mas bastava para incomodar muito. Os tropicalistas se preocupavam em ser de esquerda, não eram marxistas-leninistas, stalinistas, trotskistas ou maoístas. Porém, os militares achavam aquilo muito perigoso e não aprovavam sua irreverência. Na época da prisão dos dois cantores, em dezembro de 1968, os militares nada tinham de concreto contra eles, apenas a acusação de que tinham desrespeitado o Hino Nacional, cantando-o aos moldes do tropicalismo na boate Sucata. Juntou-se a isto a provocação de Caetano Veloso na antevéspera do natal de 1968, ao cantar “Noite Feliz” num programa de televisão apontando uma arma para a própria cabeça.
A Globo, com Chico Anísio, tratava de ridicularizar e tornar palatável a turma baiana com o quadro humorístico Baiano e os Novos Caetanos, onde todos eram muito “desbundados”, adotando uma postura ultra–light e levemente drogada em relação à vida.
Mas os militares tratavam de se envolver. Em 1973, Caetano Veloso teve a sua canção Deus e o Diabo vetada pela censura. Era ofensiva às tradições religiosas. Em 1975, o álbum Joia trazia na sua capa Caetano Veloso, sua Dedé e o filho Moreno completamente nus, com algumas pombas cobrindo-lhes a genitália. Censurado, o álbum foi relançado com uma nova capa, onde ficaram apenas as pombas. Tudo isso tornou Caetano um adversário da ditadura militar, papel que ele cumpriu rigorosamente, fazendo oposição a seu modo, atacando a “moralidade” que os militares queriam preservar.
Antes de Joia, tivemos o extraordinário Transa (1972), que continha Mora na filosofia (de autoria da dupla Monsueto e Arnaldo Passos) e Triste Bahia, o qual iniciou uma trilogia marcada pelo experimentalismo. O segundo trabalho nesse caminho foi o polêmico Araçá Azul (1973), um disco até hoje difícil de ouvir, verdadeiro recorde de devoluções. Ele foi retirado de catálogo e relançado apenas em 1987. O último disco da trilogia experimental foi o citado Joia (1975), lançado juntamente com Qualquer coisa, cuja capa era semelhante a do álbum Let it be, dos Beatles. O experimentalismo, a disposição para abraçar o novo, são qualidades que não podem ser retiradas de Caetano.
Caetano Veloso não tem realizado trabalhos com a qualidade que tinha no passado. Analisando seus discos, não selecionamos nenhum deste século. O último trabalho de nível superior de Caetano certamente foi Livro (1997) e, indo em direção ao passado, Circuladô (1991), Estrangeiro (1989), Uns (1983), Cinema Transcendental (1979), Muito (1978) e Bicho (1977), além dos citados anteriormente. Também digno de nota é Totalmente Demais (1986), trabalho ao vivo onde Caetano aparece com seu violão cantando canções de outros autores. É neste disco que ele aparece pela primeira vez como grande intérprete, fato que o tempo apenas acentuou.
Romário cunhou a célebre frase “Pelé calado é um poeta“. Talvez seja um exagero aplicá-la de forma geral a Caetano Veloso, mas o compositor, cantor e escritor baiano tem efetivamente o costume de criar frases polêmicas que não apenas pisam o limite do mau gosto como muitas vezes o ultrapassam. O talentoso Caetano, um autêntico poeta quando escreve suas músicas e letras, costuma dar vazão a humor ou publicidade bastante duvidosas em suas entrevistas.
Um capítulo à parte é o livro Verdade Tropical (1997), onde relata de uma forma muito pessoal a história e lembranças do Tropicalismo, de sua infância, da prisão e do exílio. O livro é excelente, cheio de informações, mas gerou uma grande polêmica com o ensaísta Roberto Schwarz, que o criticou asperamente em Martinha Versus Lucrécia — Ensaios e Entrevistas (2012). Segundo Schwarz, “Verdade Tropical deve muito de seu interesse literário a certa desfaçatez camaleônica em que Caetano, o seu narrador, é mestre”. O autor aponta em Caetano uma “autoindulgência desmedida, um confusionismo calculado e momentos de complacência com a ditadura, o qual está plasmado quando Caetano atenua os aspectos negativos ou críticos, dando realce ao encanto dos absurdos sociais brasileiros, tão nossos”.
Caetano e seus admiradores mostraram-se muito contrariados com as críticas de Schwarz ao livro. Claro que Caetano respondeu a seu modo, atacando o esquerdismo de Schwarz em inacreditável livre-associação: ““Sempre me pergunto por que Roberto Schwarz ou Marilena Chauí nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte. Por que Lula e Tarso Genro mandaram de volta, num avião venezuelano, os atletas cubanos que tinham pedido asilo político ao Brasil? Isso é admissível? Ninguém na esquerda reclama de nada disso”. Não se sabe o que tais afirmações têm a ver com o livro.
Porém, não obstante toda a polêmica que envolve o nome de Caetano, seu nome está presente no cerne do que foi a música brasileira dos anos 60 para cá. Tem o mérito indiscutível de ser um autor inquieto e corajoso, que dialoga com a vanguarda e com o brega. O autor de canções como Língua (do disco Velô), Sampa, Alegria alegria, Haiti, Terra, Muito Romântico, O Ciúme, Você é linda, etc. está acima até de sua admiração por Antônio Carlos Magalhães. Ah, se Caetano falasse menos…
Gisele Bündchen doou US$ 1,5 milhão ao Haiti; Madonna, US$ 250 mil; este menino conseguiu quase U$ 300 mil; vários países, inclusive o Brasil, fizeram vultosas doações. Ontem, José Saramago, anunciou que a editora com a qual trabalha em Portugal e na Espanha, a Alfaguara, relançará A Jangada de Pedra em edição cuja renda irá 100% para o país caribenho. Em nota, Saramago explicou que a iniciativa é da sua fundação e só foi possível graças à “pronta generosidade das entidades envolvidas na edição do livro”. As entidades são a editora, distribuidoras e livrarias ibéricas. Uma bonita atitude, uma atitude esperada. Saramago completa: “Se chegássemos a 1 milhão de exemplares vendidos, seriam 15 milhões de euros de ajuda. Diante da calamidade que atingiu o Haiti, a soma não seria mais que uma gota d’água”. O livro terá relançamento no dia 28 de fevereiro a partir da campanha “Uma jangada de pedra a caminho do Haiti”.
Uma vez, durante uma entrevista a que estava presente, ouvi Saramago dizer que A Jangada de Pedra era uma decepção. A plateia protestou com razão. Ocorre que o romance começa quando uma falha separa a Península Ibérica do resto da Europa e a transforma em uma enorme balsa de pedra à deriva no Atlântico. Saramago disse que um romance não pode começar por um fato tão extraordinário que jamais poderá ser superado depois. Bobagem, Saramago leva o livro brilhantemente até seu final. Não contarei o final. É muito significativo e, sim, meu caro Saramago, tão extraordinário quanto o início da Jangada. Acho o livro muitíssimo consistente e bom.
Achei a ideia maravilhosa e tentarei comprar um exemplar.
Estou esperando. Esperando o livro? Sim, também. Mas antes espero que Lasier Martins reclame do comunista Saramago, assim como criticou o meia-esquerda Lula por sua ajuda humanitária. Para quem não é do Rio Grande do Sul e não conhece a estupidez que nos impinge a “Globo daqui”, indico este post.
Saudades de um tempo em que os cartunistas brasileiros não eram borra-bostas de donos de jornais. Sim, os cartuns abaixo poderiam sair na grande imprensa brasileira, mas a fama de El Roto (Andrés Rábago) fez-se com humor “incorreto”, politizado, negro e agressivo. Suas séries sobre o campo de concentração de Gaza merecem sair em livro, se é que já não saíram.