Ah, tá, vai contar pra mim que tu não é imigrante?

Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Caxias auxilia os ganeses a encaminhar documentos | Foto: Rafael Lopes/ Câmara de Vereadores de Caxias do Su
Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Caxias auxilia os ganeses a encaminhar documentos | Foto: Rafael Lopes/ Câmara de Vereadores de Caxias do Sul

Minha namorada é uma brasileira nascida em Mogilev, na Bielorrússia. Eu sou um brasileiro neto de portugueses nascidos numa pequena localidade próxima de Aveiro, em Portugal. Minha namorada chegou aqui com menos de 30 anos de idade, é altamente qualificada e logo conseguiu emprego. Depois, fez concurso para uma orquestra sinfônica, obtendo vaga. Meu avô, de formação menos sofisticada, chegou mais ou menos com a mesma idade e trabalhou como estivador em Porto Alegre. Depois, o velho Manuel abriu sua padaria, chamada Lisboa.

Nossos imigrantes adoram contar histórias fantasiosas de suas famílias. A maioria delas é absolutamente mentirosa. O pessoal veio para cá porque era pobre. Muitos passaram fome. Ninguém era nobre nem tinha ligações com a realeza. Somos quase todos imigrantes recentes. A maioria de nós, brasileiros, somos netos e bisnetos de famílias pobres europeias que estão aqui há menos de dois séculos. Se não somos descendentes de europeus, somos descendentes de escravos que chegaram antes dos primeiros por aqui.

Acho triste, acho revelador de pobreza de conhecimento de sua história familiar e do Brasil, quando alguém reclama dos haitianos, dos médicos cubanos e agora dos ganeses. Somos quase todos imigrantes. E recentes.

Além do mais, quando se torce o nariz — especialmente para os que chegam dos países citados acima — há racismo embutido. E há também o preconceito de classe. Afinal, haitianos, cubanos e ganeses são gente normalmente pobre. Assim como meus parentes, eles passavam fome no local onde nasceram ou moravam. Que coincidência, não? Se fossem brancos europeus, talvez fossem saudados como pessoas do primeiro mundo reconhecendo boas possibilidades em nosso país. Já li reportagens ufanando-se disso.

Há imigrantes que, como os haitianos, cubanos e meu avô, vieram simplesmente buscando oportunidades, mas há aqueles que vieram atender nossas necessidades de mão-de-obra. Seus fluxos migratórios atendem à demandas por força de trabalho no Brasil, onde determinadas ocupações já não são preenchidas apenas por brasileiros, como operários da construção civil, empregadas domésticas, costureiras, etc.

A imigração é um fenômeno mundial, assim como a exploração das fragilidades dos imigrantes. Assim, devem ser protegidos e auxiliados. O fato da maioria de nossos antepassados ter sido explorada quando aqui chegou é mais um motivo para tratarmos bem os que, agora, chegam em busca de sustento para construir nosso país. Esse papo crescente de ajudar os brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, do está ruim sem vocês, pior com vocês, é de uma tolice vergonhosa. Ainda vindo de quem não suporta o Bolsa-Família…

Não penso que o velho Manuel tenha vindo para o Brasil a fim de roubar o emprego de algum brasileiro que chegou um pouco antes. Não gostaria de pensar que ele sofreu preconceito. Então, tratemos os ganeses como seres humanos que estão fazendo agora o que nossos ascendentes fizeram há pouco tempo, tá? Não é gente inferior, não. É gente necessitada, apenas.

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  1. Certa vez li um artigo do John Updike no qual ele analisava esse mesmo fenômeno nos Estados Unidos: como os irlandeses e escoceses chegados antes, na primeira metade do século 19, consideravam os “latinos” italianos chegados mais pro fim do século gente de segunda classe. E depois como esse pensamento se transfere para os mais variados tipos de “chicanos” incluindo cubanos, porto-riquenhos, sul-americanos em geral e até mexicanos, que são a bem dizer uma onda migratória que não se mexeu, já que os Estados Unidos foram absorvendo metade do território do México com aquela gente lá dentro.

    Para além do racismo, que de fato existe, há também, creio, um impulso atávico que o Updike descrevia usando uma imagem que me pareceu interessante: a da cabine de trem. A pessoa chega em uma cabine de trem vazia antes do comboio partir. Senta, escolhe o melhor lugar, distribui suas bagagens, se instala confortavelmente. E antes do carro partir, um outro passageiro entra no vagão. O passageiro que chegou primeiro sente, em um primeiro momento, seu espaço invadido – mesmo que seja algo completamente absurdo, dado que aquele espaço não é nem nunca foi dele. Claro que aí entra a regra civilizatória de que não importa o que o primeiro passageiro sinta, ele cede espaço porque é o que a regra determina.

    Problema é que no Brasil esse impulso se une a racismo e a uma resistência mais disseminada do que deveria a se aceitar que a regra vale pra todo mundo.

  2. Sobre os imigrantes haitianos e africanos que têm aportado por aqui.
    De fato, não faz o menor sentido reprimir ou maldizer essas ondas de imigração. Primeiro, porque nós mesmos somos todos imigrantes. Segundo, porque nós dependemos desses novos imigrantes para fazer girar a roda da nossa economia – especialmente em um Estado como o nosso, cada vez mais carente de mão-de-obra.
    Recentemente, editei uma série de fascículos sobre a economia de várias regiões do Rio Grande do Sul para o Grupo Amanhã. Em todas as regiões, sem exceção, a grande reclamação dos empresários – donos de indústrias, lojistas, prestadores de serviços, etc – é a mesma: falta gente pra preencher vagas funcionais, aquelas do chão-de-fábrica, que exigem baixa qualificação.
    Nós, brasileiros e gaúchos, não topamos mais ocupar essas vagas. Ou topamos, desde que seja só por um tempo, até acharmos uma oportunidade que remunere melhor. Muitas empresas gaúchas têm candidatos sobrando para vagas de alta qualificação, como gerências e diretorias. Mas não conseguem achar ninguém para as vagas de baixa e média qualificação – de operadores de máquinas a auxiliares de almoxarifado.
    Pois bem: agora os ganeses querem essas vagas. Os haitianos também. Até senegaleses andam pelo interior do Estado em busca dessas oportunidades que – repito – quase ninguém aqui quer. Vamos fechar as portas a eles?
    Se vamos, é bom saber que isso também prejudica as nossas muy valorosas empresas – aquelas mesmas que nos dão orgulho por gerar de receitas, riquezas, impostos, renda, etc.
    Liberdade de ir e vir deveria ser um valor moral e, acima de tudo, universal.

  3. Excelente texto, só faltou um detalhe, pelas reportagens que assisti na TV, os haitianos que vieram também são qualificados, com formação universitária inclusive, alguns são engenheiros. Deve ser o caso de alguns ganeses, que agora são vítimas de xenofobia. Não que isso faça diferença, porque no caso deles há também o preconceito racial.

  4. Sensacional. Moro aqui em Caxias, e vejo com certa frequência os imigrantes africanos e haitianos trabalhando em supermercados, grandes centros de compra, e afins. Trabalho na rede Blue Tree Towers aqui, e tenho uma colega de cozinha nigeriana. As oportunidades são dadas, mas ainda tem muita coisa faltando para eles. Os salários são menores, alguns ficam trabalhando pelo centro como ambulantes ou camelôs, outros não ganham oportunidade por causa da cor (sim, em 2014, acredite) ou porque ainda não falam português direito. Mas enfim, se os órgãos responsáveis não fazem sua parte (e não fazem, visto que boa parte não consegue se regularizar), boa parte da população ajuda como pode.

  5. Pensei sobre isso dias atrás, só que no fluxo inverso (em função da idolatria européia que surgiu com a vitória da Alemanha no jogo com o Brasil), de quanto os países europeus se desenvolveram quando resolveram exportar seus pobres para colonizar a América… Obrigado pela bela reflexão.

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