Em 1928, já sofrendo as restrições impostas pelo regime stalinista, Mikhail Bulgákov começou a escrever sobre o dia em que satã e sua comitiva chegaram em Moscou e a deixaram de cabeça para baixo. A história, concluída postumamente doze anos depois e intitulada O Mestre e Margarida, só chegou ao público 40 anos depois daquela primeira linha. O longo tempo para finalizar o livro está relacionado às dificuldades que Bulgákov enfrentou.
Além da pressão econômica e política promovida pelo Estado soviético, o escritor foi diagnosticado com neurosclerose hipertônica e perdeu quase todos os movimentos e a visão. Até sua morte, o escritor ditou ajustes e correções para sua terceira esposa, Ielena Serguêievna, que finalizou a obra. Publicado pela primeira vez na revista Moscou em duas edições, em 1966 e 1967, a edição teve cerca de 14 mil palavras censuradas.
Ao longo dos anos, os originais foram submetidos a diversos especialistas e muitas versões do livro coexistiram. Na tentativa de unificá-los, a pesquisadora Ielena Kolycheva promoveu um extenso estudo para chegar a uma versão mais próxima da vontade de Bulgákov, utilizando seus manuscritos e duas versões em circulação. Foi o estabelecimento do texto gerado na conclusão da pesquisa, publicado em 2014, que a Editora 34 utilizou como base para a tradução do livro, lançado em 2017.
O Mestre e Margarida é considerada a grande obra-prima de Bulgákov porque seu estilo, procedimentos artísticos e críticas sobre o regime soviético estão em plena forma. O próprio escritor sentia isso. Segundo o relato da viúva, quando estava morrendo o escritor disse: “Talvez isso esteja certo. O que poderia eu escrever depois de O Mestre?”.
Em suas obras, Bulgákov utilizou a sátira, o sarcasmo e a ironia como armas políticas. Escrevia contra a nova política econômica (NEP), contra o burocratismo, contra o discurso oficial e sua influência no homo sovieticus. Em seus livros, a história contemporânea e sua autobiografia aparecem como fortes elementos, mas revestidos por uma forte dose de fantasia.
Bulgákov nasceu em Kiev, atual capital da Ucrânia, onde estudou e se formou em medicina. Antes de começar a escrever, começou uma carreira médica no serviço militar na primeira guerra. Sua relação com o regime soviético sempre foi conflituosa e, na Guerra Civil, lutou ao lado dos Brancos. Em 1920, Mikhail largou o exército e começou seu trabalho como escritor na imprensa, publicando folhetins e reportagens já com seu tom sarcástico. Pouco tempo depois, arriscou-se na escrita de novelas e contos.
Na metade da década, quando já estava consolidado no círculo literário russo, começou a ter o mesmo tratamento que era destinado aos outros dissidentes, como seu amigo Evguênii Zamiátin, autor de Nós. Gradualmente deslocado para fora da cena literária numa espécie de ostracismo, passou por dificuldades econômicas e perseguição política. Em 1926, seus diários e novelas foram apreendidas, a crítica começou a execrá-lo e ele declarou que estava em uma “morte em vida”. Foi dentro desse contexto que, em 1930, escreveu uma carta para Stálin solicitando sua ida ao estrangeiro. A correspondência foi respondida por um telefonema do próprio Josef Stálin que, além de garantir que não havia nenhuma perseguição ao escritor, declarou sua admiração pela peça O dia dos Turbin e lhe garantiu um emprego no Teatro de Arte de Moscou.
No entanto, a passagem pelo teatro foi conturbada e a censura continuou. Nesse período, diversos textos do escritor foram apreendidos e devolvidos tempos depois. Com medo, Bulgákov queimou esses manuscritos. Anos depois descobriu-se que o Estado havia feito cópias de seus escritos e arquivado tudo num dossiê sobre o escritor. Dentro de O Mestre e Margarida, tal contexto e experiência de vida se tornam mais uma das diversas referências espalhadas pela narrativa, assim como seu conhecimento musical e literário, sua vida nos teatros e o cotidiano dos soviéticos.
A narrativa do romance nos guia conforme satã, representado pela figura do prof. Woland, chega em Moscou com seu séquito — a vampira Hella, um gato que fala e anda em duas patas chamado Behemoth, um ruivo pequeno e bronco com um canino de fora chamado Azazello e seu escudeiro alto e desengonçado, chamado de Koroviév ou de Fagote — e instaura o caos gradualmente.
Sua primeira aparição é no Lago do Patriota, interferindo na discussão entre um poeta, Ivan Nikoláievitch, e um editor de revista, Mikhail Berlioz. Ambos discutem o texto encomendado que, segundo o desejo do editor, deveria defender a existência de Jesus como um absurdo ao invés de caracterizá-lo como uma personagem histórica desmistificada. Woland interrompe a conversa, questionando a certeza de Berlioz sobre a inexistência de Jesus e de quaisquer forças superiores.
Essa conversa entre os três sujeitos introduz uma narrativa secundária que permeará toda a história: o julgamento de Jesus por Pôncio Pilatos — em um primeiro momento, contada por Woland em frente ao lago, mas que se revelará como o livro escrito pelo Mestre, personagem que dá nome ao romance.
Esses capítulos iniciais servem como ponto de entrada para a descrição de uma sociedade controladora e paranoica, deixam a atitude covarde de Pilatos em pé de igualdade com o cotidiano dos cidadãos nos tempos stalinistas e apresenta a ideia de um ateísmo militante presente naquele tempo na Rússia. Nesse contexto, com tantas certezas de que Deus não existe, o diabo se torna a força motriz possível para os russos.
Fáustico
O Fausto, de Goethe, e mais ainda sua adaptação operística por Gounod, aparecem como fortes inspirações para a inversão de realidade que critica a sociedade por meio do escárnio, tão presente nas obras de Bulgákov. O Mefistófeles do original é bem diferente do criado por Bulgákov. Ele não faz pactos pela alma de ninguém, não se torna servo. Sua intenção é ser servido e realizar o baile anual de primavera no submundo, tendo como pré-requisito uma anfitriã aleatória chamada Margarida.
O livro se mostra mais carnavalesco do que infernal, mesclando o bem e o mal, o humano e o divino. A epígrafe do livro, também retirada do Fausto de Goethe, insinua a mistura entre as duas faces opostas: “— Pois bem, quem és então?/ — Sou parte da Energia que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria”. É por meio desse poder “diabólico” que Bulgákov trata da arte e do amor, e de como libertá-los de suas amarras.
Sobre a arte, Bulgákov traz dois criadores incompreendidos, o poeta Ivan Nikoláievitch e o Mestre, dentro de um contexto em que a literatura era subordinada às forças oficiais, onde os escritores eram assim considerados pelo seu credenciamento no Estado e não pela qualidade do que escreviam. Como dito no próprio livro, tais “artistas” estavam mais preocupados com suas férias no campo do que com o desenvolvimento estético.
No entanto, apesar da realidade perversa, a verdadeira literatura se mostra forte e resistente, simbolizada pelo trabalho do Mestre. A frase “os manuscritos não ardem”, repetida ao longo da narrativa, dialoga com a vida de Bulgákov. Além dos manuscritos apreendidos pelo Estado que queimou posteriormente, também tentou queimar o rascunho de O Mestre e Margarida, impedido pela esposa. Dentro do romance, o Mestre também queima os manuscritos de seu livro em uma fornalha, mas as forças diabólicas de Woland o recuperam.
Por fim, no campo do amor, Margarida aparece como uma força celestial, um poder feminino necessário na criatividade masculina. Além disso, a personagem se relaciona com as mulheres do Fausto de Goethe, a terceira esposa de Bulgákov, Ielena Serguêievna, e ao amor incondicional da doutrina ortodoxa na Rússia.
II — As circunstâncias em que foi escrito O Mestre e Margarida
Bulgákov escreveu O Mestre e Margarida sem a menor perspectiva de publicação. Escreveu para a gaveta. Os motivos eram óbvios — o romance era uma sátira à União Soviética produzido durante a época stalinista –, mas os detalhes são surpreendentes.
Imaginem: o escritor era cristão ortodoxo. Isto numa época em que a religião era proibida. A URSS era um estado ateu. A perseguição aos religiosos começou em 1917 e a eliminação em massa começou em 18. O ápice foi entre 1937 e 38, enquanto Bulgákov escrevia o romance. Em 37, foram presos 136.900 padres e funcionários de igrejas. Destes, 85.300 foram simplesmente executados. Em 38, foram presos 28.300 e executados 21.500. Espero que estes números deixem claro quão impossível era falar do assunto Religião naquela época.
Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir regularmente a concertos, óperas e peças de teatro. Ele pessoalmente assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Nos anos 20, ele assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou e ia aos camarins cumprimentar os atores a cada sessão que ia. Esteve presente também na estreia, quando a cortina foi erguida nove vezes a fim de que os atores fossem aplaudidos. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. Bulgákov reclamava que era um dramaturgo conhecido no exterior, mas que na URSS estava fadado à miséria, à rua e à ruína. A lenda diz que foram várias ligações de Stálin, mas uma aconteceu com certeza.
O conteúdo geral desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim, ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude do Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Sim, trabalhou com Stanislavski. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.
Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dentro dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.
Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever classicamente cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.
Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Em 1916, aos 25 anos, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco. No início da Primeira Guerra Mundial, como médico voluntário da Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões.
Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris. Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.
As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, e parou de injetá-la em 1918, aos 27 anos. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, aos 28, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.
Em 1932, aos 41 anos, Bulgákov casou-se pela terceira vez com Elena Shílovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos. Bulgákov trabalhou no romance de 1928 a 1940, ano de sua morte.
Em 1931, irritado com a censura a uma de suas peças, queimou o manuscrito do romance, mas voltou a ele dias depois.
Para quem hoje lê Bulgákov, talvez o fato do escritor não apoiar o regime comunista seja apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. E todos nós temos governantes, feliz ou infelizmente. Não obstante o amor do chefe Stálin, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião. Em 1926, levaram todos os manuscritos encontrados em sua casa, esboços e diários. Devolveram 3 anos depois. Só sete décadas e 50 anos após a morte do escritor, quando da abertura dos arquivos da KGB, os documentos foram conhecidos. Não continham nada comprometedor.
Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920. Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, há um fato que comprova certa independência do escritor: os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria mais um vendido. É curiosa a posição onde Stálin colocou seu potencial inimigo Bulgákov, muitos dos escritores que não apoiaram a revolução foram presos, muitos foram mortos. Bulgákov não.
Bulgákov foi morrer de um problema renal em 1940, aos 48 anos.
Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.
Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.
Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.
A novela satírica O Mestre e Margarida, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo.
Vou dividir este texto em vários capítulos, aproveitando coisas que já escrevi e escrevendo e pesquisando e copiando de outros, ladrão que sou. Apesar dos vários capítulos, este texto estará dividido em três grandes partes:
I — O Diabo de Bulgákov (capítulo curto, que pretendo terminar neste post); II — As circunstâncias em que foi escrito O Mestre e Margarida; III — O livro.
O Mestre e Margarida apresenta sua própria epígrafe — retirada do Fausto de Goethe — e ela trata do diabo, mas acho que preciso de outra, que pesquei do próprio livro de Bulgákov:
O que seria do bem se o mal não existisse, e como veríamos a Terra se as sombras desaparecessem? Afinal, as sombras resultam dos objetos e das pessoas.
Mikhail Bulgákov — O Mestre e Margarida
Então tratemos do demônio, do diabo, de Satã.
I — O Diabo de Bulgákov
A figura do demônio ganhou força na Idade Média. As mais variadas religiões jamais tiveram pudor de invocá-lo. Até hoje, nossos bispos evangélicos gritam que algumas saias e posturas são coisas de Satanás. E faz tempo que é assim.
Em parte de A Divina Comédia (1321), Dante Alighieri descreve os horrores que aguardam os pecadores no inferno. O foco do poema é a busca de Dante por sua amada Beatriz, que começa justamente no inferno, em cuja entrada há a famosa advertência: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. Lá dentro há nove círculos, onde são julgados os vários tipo de delitos. Há vários demônios, mas no nono círculo está o maior deles, Lúcifer, o que julga os traidores. Ali não é quente, é frio e Lúcifer está lá, aprisionado da cintura para baixo, com suas grandiosas asas.
Em Paraíso Perdido (1667), John Milton narra a expulsão de Lúcifer do Paraíso. Na obra, um despeitado Lúcifer diz que é “melhor ser rei no Inferno do que servir no Céu”.
Em O Diabo Enamorado (1772), Jacques Cazotte faz com que o Demônio se apaixone por um jovem que o invocou, assumindo a figura de uma bela mulher. Aqui, o demônio já adquire a característica da sedução, mas ele mesmo não tem uma imagem humana. Vejam abaixo a mulher sedutora e como ele é de verdade na imaginação dos ilustradores…
A lenda alemã de Fausto inspirou o clássico de Goethe (1808 e 1832), que inova ao dar aparência humana ao demônio. Mefistófeles aparece cheio de seduções, enganando, mentindo e propondo negócios.
E há uma ópera de Gounod, de 1859, baseada no Fausto de Goethe. Faço questão de citá-la aqui pelo fato de Bulgákov tê-la assistido 41 vezes! Sabe-se disso porque ele guardava todos os ingressos de peças e concertos que assistia.
E notem como o Mefistófeles de Gounod foi retratado no Municipal do Rio há poucos anos:
Por que coloco todas essas imagens? Ora, para mostrar que a representação artística do Diabo mudou paulatinamente. Ele não somente passou a ter forma humana como adquiriu primeiro a sedução e depois o ar zombeteiro.
E como é o Woland de Bulgákov? Bem, vejamos o caso russo.
Nos contos populares russos, as esferas Deus/Diabo — o Bem e o Mal — são interligadas, unidas. Assim, Baba-Iagá, a bruxa das florestas, a fiel ajudante do Diabo, ora faz maldades — rouba crianças, mata, envenena heróis –, ora se transforma numa criatura bondosa — ajuda o herói, fornecendo-lhe a comida, o cavalo, a poção mágica, etc. Baba-Iagá não encarna o mal.
O séquito dos vários diabos tem diferentes membros: a coruja, o gato, os defuntos, os vampiros, etc. E também os lobos, os corvos, as cobras. Entretanto, todos eles, em algumas ocasiões, podem muito bem ajudar ao herói. Como em Bulgákov.
E há mais seres que carregam o diabólico, o demoníaco: os poetas, os músicos e outras “almas perdidas e pecadoras” como os orgulhosos, os solitários, os rebeldes, os ateus, os ladrões, os bandidos, os bêbados, os jogadores, os vagabundos, os ciganos, os amantes… Isso explicaria a simpatia que o diabo de Bulgákov tem pelo Mestre — que é um bom escritor e que, além disso, escreveu um romance não só sobre os sofrimentos e a sabedoria de Jesus, como também sobre a fraqueza e o padecimento moral de Pôncio Pilatos. E isso explicaria também a simpatia que Woland tem por Margarida — uma adúltera, amante do Mestre.
No folclore russo, o Diabo tem algumas características bem determinadas e estas mesmas características marcam o Diabo e seu séquito no romance de Bulgákov:
— os olhos verdes, ou, então, um olho diferente do outro em cor: “ele aparentava ter bem uns quarenta anos. Boca ligeiramente torcida. Bem escanhoado. Trigueiro. O olho direito negro, o esquerdo — não se sabe por quê — verde”;
— a força poderosa, orgulhosa de um “super-homem” ou então uma força brincalhona, mas briguenta (o gato Behemoth e Korôviev — os membros do séquito diabólico no romance de Bulgákov — são possuidores desta força brincalhona). Sim, em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Korôviev — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno e forte Azazello e a bruxa Hella, sempre nua. O povo russo relaciona também a ventania, a nevasca, o incêndio — lembremos que foi justamente o incêndio que acabou com a casa de escritores e com o misterioso apartamento n.° 50 — com o Diabo;
— a cor preta ou vermelha. O vermelho é a cor da paixão, do sangue e do fogo. Outra cor diabólica é o preto. Os personagens diabólicos costumam ter os cabelos pretos — ou o pelo preto, como o Gato, que era “negro como corvo, ou como fuligem” — ou, então, o cabelo vermelho, como Korôviev, que tinha “cabelos ruivos brilhantes”;
— a marginalidade caracteriza os “filhos queridos” do Diabo. Este “marginal” pode ser uma espécie de um gênio, um poeta, um músico, mas pode também ser uma variante baixa: um ladrão, um bandido. Com a marginalidade vem a solidão e a ausência de filhos. Margarida, há vários anos casada, não tem filhos, é uma pessoa solitária, que sente-se abandonada pelo marido. Tudo isso a colocaria naturalmente ao lado do Diabo. O Mestre também não tem familia;
— o Diabo é o proibido e a rebeldia. Tudo o que não poderia haver na União Soviética. O Diabo (Deus) está com Margarida, está com o Mestre, está com Ivan Bezdômny, no final do romance, quando este se recusa a escrever poesia encomendada;
— o Diabo é um mestre do jogo, da sedução, da representação teatral e da arte em geral. A própria palavra ‘arte’ — em russo ‘iskusstvo’ — vem do verbo ‘iskusit’, “seduzir”, “representar”, “ser falso”. Na Rússia, o Diabo troca as máscaras e os papéis, e no romance de Bulgákov, ele também é um ator por excelência.
Eco do Fausto de Goethe, pelas reflexões filosóficas, o romance começa com esta epígrafe:
— Pois bem, quem és então?
— Sou uma parte desta força que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.
Goethe, Fausto.
O Diabo aparece já nas primeiras páginas do romance e passa a desempenhar o papel substancial no texto. Mas, conhecendo o contexto histórico da União Soviética da época — é nosso próximo assunto –, quando o romance foi escrito, o leitor atento logo deixa de encarar o livro como “fantástico”, começa a sentir que “tem mais”. O objetivo do livro é fazer com que o leitor hesite em escolher entre a explicação natural e a sobrenatural dos acontecimentos. O efeito produzido pelas situações grotescas é desorientador. O mundo de O Mestre e Margarida é cheio de milagres, um mundo teatral.
Só que não é uma fantasia livre. Tudo aquilo que de sobrenatural acontece tem o outro pé na realidade. Por exemplo, quando, no epílogo, Bulgákov conta a perseguição aos gatos pretos, pois a polícia está atrás do gato Behemoth:
Cerca de uns cem desses animais pacíficos, dedicados e úteis ao homem tinham sido fuzilados ou exterminados por outros meios em diversos pontos do país. (…) Gatos, de aspecto às vezes bastante estropiado, foram entregues a destacamentos policiais de diversas cidades. Por exemplo, em Armavir, um desses bichos, sem culpa alguma, foi levado à polícia com as patas dianteiras amarradas por um cidadão. (Pág. 384, edição da 34)
Mas não se enganem, a maior parte do livro é pura sátira. Ele tem cenas belas, a maioria delas hilariantes e, se você pensar que Bulgákov viu a URSS dos anos 30 como Doutor Jivago estará navegando num mar de enganos.
.oOo.
Texto parcialmente adaptado e copiado do trabalho Quem é o Diabo?” de Elena Godoy.
Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir a concertos, óperas e peças de teatro. Foi ele, pessoalmente, quem assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Também assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. A lenda diz que foram várias ligações, mas uma aconteceu com certeza.
O conteúdo desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude de Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.
Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dentro dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.
Nós também. Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.
Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Em 1916, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco. No início da Primeira Guerra Mundial, como médico voluntário na Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões.
Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris. Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.
As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, mas parou de injetá-la em 1918. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.
Em 1932, Bulgákov casou-se com Elena Shílovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos.
Para quem hoje lê Bulgákov, o fato do escritor não apoiar o regime comunista é apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. Porém, como dissemos acima, Stálin adorava de uma de suas peças. Não obstante o amor do chefe, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião.
Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920. Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, curiosamente, os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria apenas um vendido. É curiosa a posição de admiração de Stálin, apesar da polêmica. Muitos escritores que não apoiaram a liderança de Stálin foram presos. Bulgákov não.
Bulgákov morreu de um problema renal em 1940, aos 48 anos.
Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.
Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de H. G. Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.
Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição, escrita em termos perturbadores. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso ajudar a louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.
A grande obra-prima
A novela satírica O Mestre e Margarida, escrita para a gaveta, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e que contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo.
Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida pelo reflexo da obra não somente na cultura russa, mas na mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock homenageiam Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.
O romance começou a ser escrito em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, apenas sua mulher sabia da existência do romance.
Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova edição — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor.
Uma amiga russa me escreve por e-mail: “Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland, Manuscritos não ardem, é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é Ánnuchka já derramou o óleo, para dizer que o cenário de uma tragédia está montado”.
As cenas de Pôncio Pilatos, a do teatro, a do belíssimo voo de Margarida e a do baile são citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa.
A ação do romance ocorre em duas frentes, alternadamente: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia espetacularmente. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Korovin — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua.
Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que formam uma atordoante série de cenas hilariantes.
Naquela Moscou o diabo está em casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram notável criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde sempre à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas a base de criação de Bulgákov é outro cômico ucraniano: Gógol.
O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira à Rússia soviética ou como crítica à superficialidade das pessoas. Há mais pontos bem característicos: Bulgákov jamais demonstra nostalgia da Rússia czarista — apenas da religião — e Woland não está em oposição direta a Deus. Ele é como um ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas. E as punições de Woland são criativas, desconcertantes.
Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.
Nas imagens finais de O Mestre, Mikhail Bulgákov dá uma dura avaliação do mundo que encontrou. Ele seria infernal e sem esperança. Era óbvio que as tentativas de se tornar parte do mundo soviético falharam. Ele não entendia aquele novo idioma.
Obs.: A tradução de Zoia Prestes, para a Alfaguara, é bastante superior à antiga, lançada lá por volta de 1993 pela Ars Poetica. Mas a mais recente, de Irineu Franco Perpétuo, para a Editora 34, é ainda melhor.
~ Curiosidades ~
A venda da alma
Sabe-se que Bulgákov foi muitas vezes ao Bolshoi para ver e ouvir a ópera Fausto, de Charles Gounod. Esta ópera sempre o animava, ele voltava feliz para casa. Mas, um dia, Bulgákov voltou do teatro em estado muito sombrio. Ele tinha começado a escrever sua peça sobre Stálin, Batumi. Bulgákov reconheceu-se na imagem de Fausto. Como escrevemos acima, a peça jamais foi concluída por ter sido indiretamente reprovada por Stálin.
Personagem desaparecido
Em 1937, nos 100 anos de aniversário da morte de Pushkin, vários autores apresentaram peças dedicadas ao poeta. Entre elas, havia uma de Bulgákov. Alexander Pushkin distinguia-se das obras de outros autores pela ausência do personagem principal. Bulgákov acreditava que a aparição do homenageado no palco tornaria tudo vulgar e insípido. Sua peça foi considerada a melhor daquele ano.
Tesouro
No romance A Guarda Branca, Bulgákov descreveu com bastante precisão a casa em que morara em Kiev. Lá, haveria um tesouro. Os novos proprietários da casa quase a derrubaram, quebrando paredes ao tentar encontrar o dinheiro descrito no romance. É óbvio que não encontraram nada e ainda ficaram irritados com o escritor.
História de Woland
Woland recebeu seu nome a partir do Fausto de Goethe. No Fausto, ele é citado apenas uma vez, quando Mefistófeles pede para que espíritos malignos abram espaço pois “O nobre Woland está chegando!” Em outros Faustos ele aparece como Faland ou Phaland. A primeira edição de O Mestre continha uma descrição detalhada (15 páginas manuscritas) de Woland. Esta descrição está perdida. Além disso, na versão inicial, Woland era chamado Astaroth (um dos demônios mais altos do inferno, de acordo com a demonologia ocidental). Mais tarde, Bulgákov o substituiu.
O protótipo de Behemoth
Em russo, diz-se Begemot. O ultrafamoso assistente de Woland tinha um protótipo real, só que este não era um gato, mas um cachorro: o grande cão preto de Bulgákov chamava-se Behemoth. Esse cachorro era muito inteligente. Uma vez, quando Bulgákov estava comemorando o Ano Novo com sua esposa, logo após o relógio de parede dar doze badaladas, o cachorro também latiu 12 vezes, embora ninguém lhe tivesse ensinado.
Memória
Desde os primeiros anos de vida, Bulgákov demonstrou possuir uma memória excepcional. Lia muito. Diz a lenda que ele leu tantas vezes o romance Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, que o sabia de cor.
Coleção
Bulgákov tinha todos os ingressos de teatro — peças, ópera e concertos — a que compareceu.
Crítica soviética
O escritor também colecionava, coladas em um álbum, recortes de jornais e revistas com críticas de suas obras. Dava ênfase às mais devastadoramente hostis. De acordo com Bulgákov, ali havia 298 críticas negativas e apenas 3 elogiosas.
Defesa de Stanislavski
A primeira produção no Teatro de Arte de Moscou de Os Dias dos Turbin foi garantida por Konstantín Stanislavski. Ele simplesmente afirmou que, se a peça fosse banida, fecharia o teatro.
Stálin e Os Dias dos Turbin
Stálin gostava muito da peça e assistiu-a peça pelo menos 15 vezes, aplaudindo com entusiasmo desde o camarote destinado a membros do governo. Oito vezes ele desceu para falar com os artistas após a peça, a fim de incentivar a necessidade da luta política na literatura.
Como também aconteceu com o Ulysses de Joyce, este é o terceiro O Mestre e Margarida que leio. Ambos os livros têm três traduções no Brasil — na verdade, O Mestre tem quatro, mas uma é do inglês.
A primeira leitura foi feita em uma edição da Ars Poetica com tradução direta do russo por Konstantin G. Asryantz, Eu não indico, pois achei o texto truncado, nada fluido. Se não me engano, era uma edição de 1992 (não possuo mais o exemplar).
A segunda, igualmente do russo, era de Zoia Prestes e saiu pela Alfaguara em 2009. Já era bem melhor, mais ainda não de todo satisfatória.
Esta terceira tradução, de Irineu Franco Perpétuo (Editora 34) é excelente, sem dúvida, a melhor de todas. Porém, ainda houve outra tradução que desconheço, feita a partir do inglês. Ela foi publicada em 1975, pela Nova Fronteira, e em 1985, pela Abril Cultural. É de Mário Salviano Silva.
Importante informar que o texto utilizado por Irineu foi aquele estabelecido pela mais recente edição crítica russa. Acontece que Bulgákov jamais publicou seu livro em vida, tendo deixado várias versões dele. Os atuais estudos buscaram chegar o mais próximo possível do que seria o desejo do escritor.
Abaixo, republico um artigo que escrevi recentemente para o Guia21 a respeito de Bulgákov e sua obra-prima, quando dos cem anos da Revolução Russa, mas eu já tinha publicado outro artigo aqui no blog em minha antologia pessoal de 50 maiores livros.
Foi muito prazeroso percorrer as 408 páginas da nova edição. São 32 capítulos e um epílogo. 28 deles e mais o epílogo se passam basicamente em Moscou e 4 em Jerusalém — consistindo no fragmento do romance do Mestre. Então, vamos ao texto que não seria possível sem o auxílio de minha Elena Romanov.
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Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir a concertos, óperas e peças de teatro. Foi ele, pessoalmente, quem assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Também assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. A lenda diz que foram várias ligações, mas uma aconteceu com certeza.
O conteúdo desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude de Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.
Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dento dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.
Nós também. Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.
Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. No início da Primeira Guerra Mundial, voluntário na Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões. Em 1916, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco.
Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris. Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.
As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, mas parou de injetá-la em 1918. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.
Em 1932, Bulgákov casou-se com Elena Shilovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos.
Para quem hoje lê Bulgákov, o fato do escritor não apoiar o regime comunista é apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. Porém, como dissemos acima, Stálin adorava de uma de suas peças. Não obstante o amor do chefe, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião.
Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920. Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, curiosamente, os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria apenas um vendido. É curiosa a posição de admiração de Stálin, apesar da polêmica. Muitos escritores que não apoiaram a liderança de Stálin foram presos. Bulgákov não.
Bulgákov morreu de um problema renal em 1940, aos 49 anos.
Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.
Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de H.G. Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.
Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição, escrita em termos perturbadores. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso ajudar a louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.
A grande obra-prima
A novela satírica O Mestre e Margarida, escrita para a gaveta, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e que contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo. É que um manuscrito do Mestre, destruído, constitui um elemento importante da trama e, de fato, Bulgákov teve que reescrever o romance após ter queimado o próprio manuscrito.
Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida pelo reflexo da obra não somente na cultura russa, mas na mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock homenageiam Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.
O romance começou a ser escrito em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, apenas sua mulher sabia da existência do romance.
Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova edição — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor.
Uma amiga russa me escreve por e-mail: “Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland ‘Manuscritos não ardem’ é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é ‘Ánnuchka já derramou o óleo’, para dizer que o cenário de uma tragédia está montado”.
As cenas de Pôncio Pilatos, a do teatro, a do belíssimo voo de Margarida e a do baile são citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa.
A ação do romance ocorre em duas frentes, alternadamente: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia espetacularmente. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Koroviev — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua.
Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que formam uma atordoante série de cenas hilariantes.
Naquela Moscou o diabo está em casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram notável criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde sempre à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas a base de criação de Bulgákov é outro cômico ucraniano: Gógol.
O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira à Rússia soviética ou como crítica à superficialidade das pessoas. Há mais pontos bem característicos: Bulgákov jamais demonstra nostalgia da Rússia czarista — apenas da religião — e Woland não está em oposição direta a Deus. Ele é como um ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas. E as punições de Woland são criativas, desconcertantes.
Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.
Nas imagens finais de O Mestre, Mikhail Bulgákov dá uma dura avaliação do mundo que encontrou. Ele seria infernal e sem esperança. Era óbvio que as tentativas de se tornar parte do mundo soviético falharam. Ele não entendia aquele novo idioma.
~ Curiosidades ~
A venda da alma
Sabe-se que Bulgákov foi muitas vezes ao Bolshoi para ver e ouvir a ópera Fausto, de Charles Gounod. Esta ópera sempre o animava, ele voltava feliz para casa. Mas, um dia, Bulgákov voltou do teatro em estado muito sombrio. Ele tinha começado a escrever sua peça sobre Stálin, Batumi. Bulgákov reconheceu-se na imagem de Fausto. Como escrevemos acima, a peça jamais foi concluída por ter sido indiretamente reprovada por Stálin.
Personagem desaparecido
Em 1937, nos 100 anos de aniversário da morte de Pushkin, vários autores apresentaram peças dedicadas ao poeta. Entre elas, havia uma de Bulgákov. Alexander Pushkin distinguia-se das obras de outros autores pela ausência do personagem principal. Bulgákov acreditava que a aparição do homenageado no palco tornaria tudo vulgar e insípido. Sua peça foi considerada a melhor daquele ano.
Tesouro
No romance A Guarda Branca, Bulgákov descreveu com bastante precisão a casa em que morara em Kiev. Lá, haveria um tesouro. Os novos proprietários da casa quase a derrubaram, quebrando paredes ao tentar encontrar o dinheiro descrito no romance. É óbvio que não encontraram nada e ainda ficaram irritados com o escritor.
História de Woland
Woland recebeu seu nome a partir do Fausto de Goethe. No Fausto, ele é citado apenas uma vez, quando Mefistófeles pede para que espíritos malignos abram espaço pois “O nobre Woland está chegando!” Em outros Faustos ele aparece como Faland ou Phaland. A primeira edição de O Mestre continha uma descrição detalhada (15 páginas manuscritas) de Woland. Esta descrição está perdida. Além disso, na versão inicial, Woland era chamado Astaroth (um dos demônios mais altos do inferno, de acordo com a demonologia ocidental). Mais tarde, Bulgákov o substituiu.
O protótipo de Behemoth
Em russo, diz-se Begemot. O ultrafamoso assistente de Woland tinha um protótipo real, só que este não era um gato, mas um cachorro: o grande cão preto de Bulgákov chamava-se Behemoth. Esse cachorro era muito inteligente. Uma vez, quando Bulgákov estava comemorando o Ano Novo com sua esposa, logo após o relógio de parede dar doze badaladas, o cachorro também latiu 12 vezes, embora ninguém lhe tivesse ensinado.
Memória
Desde os primeiros anos de vida, Bulgákov demonstrou possuir uma memória excepcional. Lia muito. Diz a lenda que ele leu tantas vezes o romance Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, que o sabia de cor.
Coleção
Bulgákov tinha todos os ingressos de teatro — peças, ópera e concertos — a que compareceu.
Crítica soviética
O escritor também colecionava, coladas em um álbum, recortes de jornais e revistas com críticas de suas obras. Dava ênfase às mais devastadoramente hostis. De acordo com Bulgákov, ali havia 298 críticas negativas e apenas 3 elogiosas.
Defesa de Stanislavski
A primeira produção no Teatro de Arte de Moscou de Os Dias dos Turbin foi garantida por Konstantín Stanislavski. Ele simplesmente afirmou que, se a peça fosse banida, fecharia o teatro.
Stálin e Os Dias dos Turbin
Stálin gostava muito da peça e assistiu-a pelo menos 15 vezes, aplaudindo com entusiasmo desde o camarote destinado a membros do governo. Oito vezes ele desceu para falar com os artistas após a peça, a fim de incentivar a necessidade da luta política na literatura.
Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida não apenas por minhas conversas com os amigos russos da Ospa, mas no reflexo da obra na cultura mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock, que não viveu para ouvir, homenageia Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.
Em vida, tudo que o ucraniano Bulgákov (1891-1940) desejava era sair de Moscou e da União Soviética. Escreveu mais de uma centena de cartas a Stálin, justificando-se e pedindo permissão para deixar o país. Afinal, se tudo o que escrevia era proibido, era um inútil para a URSS. Tanto escreveu cartas que acabou recebendo um telefonema do próprio Stálin: este lhe oferecia um emprego num teatro, para o qual deveria escrever pecinhas tranquilas com seu indiscutível talento — e Stálin sabia reconhecer quem o tinha — e referendava o “desejo” de não ver o escritor fora do país. E Bulgákov sobreviveu escrevendo umas poucas peças de sucesso para o teatro, além de adaptar para o palco Dom Quixote e Almas Mortas.
Ele começou a escrever o romance em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, só sua mulher e amigos sabiam da existência do romance.
Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o Samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova versão — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor. A vida era assim na URSS.
O livro é digno da história contada por minha amiga bielo-russa Elena Romanov (aqui em uma versão livre e talvez equivocada de minha lavra…):
— Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland “Manuscritos não ardem” é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é “Ánnuchka já derramou o óleo”, para dizer que o cenário da tragédia está montado.
As cenas de Pôncio Pilatos, do teatro, do belíssimo voo de Margarida e do baile eram conhecidas de mim por serem citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa. Digo tudo isto porque é triste ver O Mestre e Margarida, obra muito popular em vários países, ignorada no Brasil.
Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.
A ação do romance ocorre em duas frentes: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Koroviev — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua. Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que aqui vive uma atordoante e espetacular série de cenas hilariantes.
Como veem, em Moscou o diabo está casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram toda a sua incrível criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas, fora de dúvida, a base de criação de Bulgákov é seu conterrâneo Gógol.
O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira á Rússia soviética ou como crítica da superficialidade das pessoas. Bulgákov não é tolo: não há nostalgia da Rússia czarista. E mais: Woland não está em oposição direta a deus, mas como o ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas (concordo muito). Porém, as punições de Woland são desconcertantes.
Agora é só ler, né? A tradução de Zoia Prestes, para a Alfaguara, é bastante superior à antiga, lançada lá por volta de 1993 pela Ars Poetica.