A magia de Tristram Shandy

A magia de Tristram Shandy

Por Vicente Battista
Traduzido por este blogueiro

Laurence Sterne, por Sir Joshua Reynolds

Uma parte significativa da grande literatura inglesa foi escrita por irlandeses — Oscar Wilde, William Butler Yeast, Bram Stoker, George Bernard Shaw, James Joyce e Samuel Beckett são um exemplo perfeito. Nenhum deles alguma vez negou a sua dívida para com Laurence Sterne, um compatriota nascido em Clonmel, condado de Tipperary, um século antes. Esta dívida não se limita exclusivamente aos autores irlandeses: o francês Denis Diderot, para escrever Jacques, o fatalista”, baseou-se na construção paródica, na rejeição das convenções narrativas e na figura do anti-herói proposta por Sterne que, aliás, foi contemporâneo de Diderot: ambos nasceram em 1713. Dostoiévski em O Idiota narra como o príncipe Mishkin conta a Yelizabeta e suas três filhas a história de uma pobre mulher humilhada em uma aldeia suíça que é literalmente retirada de Viagem Sentimental pela França e Itália, de Sterne. A sua influência também pode ser percebida em autores tão diversos como ETA Hoffmann, Victor Hugo e Charles Dickens. “Eu li Sterne. É admirável”, confessou Tolstói, e traduziu-o imediatamente para o russo; uma admiração que Goethe também não escondeu. Nietzsche considerou que “ele é o escritor mais livre de todos os tempos e o grande mestre da incompreensão… este é o seu propósito, ter razão e não estar certo ao mesmo tempo, misturar profundidade e bufonaria… É preciso render-se à sua fantasia benevolente, sempre benevolente.” Schopenhauer sustentou que os melhores romances de todos os tempos foram: Dom Quixote de La Mancha, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Julia, ou a Nova Heloísa e A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, Cavaleiro. A influência de Laurence Sterne não parou, ultrapassou línguas e continentes. Descobriremos que a escrita destemperada, cáustica e insubordinada nos textos de Julio Cortázar, José Lezama Lima e Guillermo Cabrera Infante e até Borges — a estratégia de apresentar autores e livros inexistentes como verdadeiros é típica de Sterne.

A contracapa de Tristram Shandy, que Planeta publicou em 1976, com prólogo de Víctor Sklovski e tradução de Ana María Aznar, traz uma gravura que supostamente seria o rosto de Laurence Sterne. A ironia que se percebe em seu olhar e a expressão mordaz que seus lábios refletem dão uma medida completa do personagem. Ao ver aquela gravura e ao ler seu romance, tende-se a pensar que sua biografia também poderia ser parte de uma farsa, outro truque do próprio Sterne. Porém, os dados são verdadeiros: ele nasceu em 24 de novembro de 1713, numa pequena cidade do condado de Tipperary, no sul da Irlanda. Estudou em Cambridge e em 1738, aos 25 anos, foi ordenado sacerdote da Igreja da Inglaterra. Em 1741 casou-se com Elizabeth Lumley, com quem, nas palavras de Alfonso Reyes, “não soube manter uma relação cordial”. Em 1760 obteve o vicariato de Coxwold, no norte da Inglaterra. Um ano antes, ele havia começado a publicar Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”. Os nove livros que hoje compõem a obra foram publicados, os dois primeiros em 1759 e os restantes sete ao longo dos oito anos seguintes. Sterne morreria alguns meses depois.

Começou a escrever tarde e morreu cedo. Sua vida como escritor não durou mais que nove anos, mas foi tempo suficiente para forjar um romance que criou uma nova forma de narrar a partir da paródia. Em 1760, ele publicou Mister Yorick’s Sermons, um volume no qual compilou os excêntricos sermões que proferiu como vigário na Igreja de Coxwold. Em 1767, sob o título Cartas de Yorick para Eliza, publicou a correspondência que mantinha com sua amante Eliza Draper. Tanto para os sermões quanto para as cartas de amor, ele escolheu o nome do padre Yorick, um dos personagens de Tristram Shandy e por sua vez uma espécie de alter ego do próprio Sterne. Não é por acaso que seu nome era Yorick, como o bobo da corte que Hamlet evoca no quinto ato do drama de Shakespeare. Um mês antes de morrer, apareceu A Sentimental Journey through France and Italy, que alguns consideram ser o epílogo de Tristram Shandy.

Admirador confesso de Cervantes, Rabelais, Swift, Pope e Locke, a influência de cada um deles foi essencial para que Sterne construísse uma obra-prima que, em suas quase quinhentas páginas, antecipa muitos dos recursos narrativos da vanguarda literária de final do século 19. Século 19 e início do século 20, desde peculiaridades tipográficas: duas páginas  inteiramente pretas no capítulo 36 do livro terceiro e os capítulos 18 e 19 do livro nono completamente em branco, até capítulos que consistem em uma única frase ou a prévia do monólogo interior que Joyce desenvolveria em Ulisses um século e meio depois.

Pouco depois do aparecimento dos dois primeiros livros, The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman  tornou-se um sucesso, embora não para todos: o prestigiado Samuel Johnson destacou que o romance ignorava quase todas as regras gramaticais. “Senhor, você não sabe inglês”, disse ele a Sterne, e quando Sterne, sarcástico, reconheceu que era efetivamente ignorante dessa língua, Johnson, definitivamente, declarou: “nada extravagante pode durar”. Samuel Johnson é considerado o melhor crítico literário de língua inglesa de todos os tempos. É claro que mesmo os grandes críticos às vezes cometem erros.

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.

Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.

A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):

1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo

A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.

Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.

No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.

Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.

Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.

Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?

E Oblómov??? Não poderia ficar de fora!

(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)

Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.

P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!

Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.

Eu, estudando… O Mestre e Margarida, de Bulgákov (II)

Eu, estudando… O Mestre e Margarida, de Bulgákov (II)

II — As circunstâncias em que foi escrito O Mestre e Margarida

Bulgákov escreveu O Mestre e Margarida sem a menor perspectiva de publicação. Escreveu para a gaveta. Os motivos eram óbvios — o romance era uma sátira à União Soviética produzido durante a época stalinista –, mas os detalhes são surpreendentes.

Imaginem: o escritor era cristão ortodoxo. Isto numa época em que  a religião era proibida. A URSS era um estado ateu. A perseguição aos religiosos começou em 1917 e a eliminação em massa começou em 18. O ápice foi entre 1937 e 38, enquanto Bulgákov escrevia o romance. Em 37, foram presos 136.900 padres e funcionários de igrejas. Destes, 85.300 foram simplesmente executados. Em 38, foram presos 28.300 e executados 21.500. Espero que estes números deixem claro quão impossível era falar do assunto Religião naquela época.

Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir regularmente a concertos, óperas e peças de teatro. Ele pessoalmente assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Nos anos 20, ele assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou e ia aos camarins cumprimentar os atores a cada sessão que ia. Esteve presente também na estreia, quando a cortina foi erguida nove vezes a fim de que os atores fossem aplaudidos. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. Bulgákov reclamava que era um dramaturgo conhecido no exterior, mas que na URSS estava fadado à miséria, à rua e à ruína. A lenda diz que foram várias ligações de Stálin, mas uma aconteceu com certeza.

O conteúdo geral desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim, ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude do Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Sim, trabalhou com Stanislavski. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.

Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dentro dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.

Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever classicamente cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.

Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Em 1916, aos 25 anos, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco. No início da Primeira Guerra Mundial, como médico voluntário da Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões.

Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris. Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.

As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, e parou de injetá-la em 1918, aos 27 anos. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, aos 28, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.

Elena Shílovskaya

Em 1932, aos 41 anos, Bulgákov casou-se pela terceira vez com Elena Shílovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos. Bulgákov trabalhou no romance de 1928 a 1940, ano de sua morte.

Em 1931, irritado com a censura a uma de suas peças, queimou o manuscrito do romance, mas voltou a ele dias depois.

Para quem hoje lê Bulgákov, talvez o fato do escritor não apoiar o regime comunista seja apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. E todos nós temos governantes, feliz ou infelizmente. Não obstante o amor do chefe Stálin, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião. Em 1926, levaram todos os manuscritos encontrados em sua casa, esboços e diários. Devolveram 3 anos depois. Só sete décadas e 50 anos após a morte do escritor, quando da abertura dos arquivos da KGB, os documentos foram conhecidos. Não continham nada comprometedor.

Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920. Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, há um fato que comprova certa independência do escritor: os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria mais um vendido. É curiosa a posição onde Stálin colocou seu potencial inimigo Bulgákov, muitos dos escritores que não apoiaram a revolução foram presos, muitos foram mortos. Bulgákov não.

Bulgákov foi morrer de um problema renal em 1940, aos 48 anos.

Dois assessores do diabo numa escultura em Moscou: o gato Behemoth e Korovin com seu monóculo quebrado

Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.

Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.

Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.

A novela satírica O Mestre e Margarida, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo.

Uma das últimas fotos. Mikhail Bulgakov, com sua esposa Elena Shilovskaya

Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (III): Mikhail Bulgákov, o homem que recebia ligações de Stálin

Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (III): Mikhail Bulgákov, o homem que recebia ligações de Stálin

Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir a concertos, óperas e peças de teatro. Foi ele, pessoalmente, quem assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Também assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. A lenda diz que foram várias ligações, mas uma aconteceu com certeza.

O conteúdo desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude de Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.

Leia mais:
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (II): Serguei Prokofiev

Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dentro dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.

Nós também. Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.

Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Em 1916, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco. No início da Primeira Guerra Mundial, como médico voluntário na Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões.

Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris.  Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.

As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, mas parou de injetá-la em 1918. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.

Elena Shílovskaya

Em 1932, Bulgákov casou-se com Elena Shílovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos.

Para quem hoje lê Bulgákov, o fato do escritor não apoiar o regime comunista é apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. Porém, como dissemos acima, Stálin adorava de uma de suas peças. Não obstante o amor do chefe, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião.

Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920.  Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, curiosamente, os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria apenas um vendido. É curiosa a posição de admiração de Stálin, apesar da polêmica. Muitos escritores que não apoiaram a liderança de Stálin foram presos. Bulgákov não.

Bulgákov morreu de um problema renal em 1940, aos 48 anos.

Dois assessores do diabo numa escultura em Moscou: o gato Behemoth e Korovin com seu monóculo quebrado

Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.

Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de H. G. Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.

Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição, escrita em termos perturbadores. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso ajudar a louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.

A grande obra-prima

A novela satírica O Mestre e Margarida, escrita para a gaveta, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e que contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo.

Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida pelo reflexo da obra não somente na cultura russa, mas na mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock homenageiam Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.

A recente e excelente edição da 34.

O romance começou a ser escrito em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, apenas sua mulher sabia da existência do romance.

Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova edição — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor.

Uma amiga russa me escreve por e-mail: “Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland, Manuscritos não ardem, é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é Ánnuchka já derramou o óleo, para dizer que o cenário de uma tragédia está montado”.

As cenas de Pôncio Pilatos, a do teatro, a do belíssimo voo de Margarida e a do baile são citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa.

A ação do romance ocorre em duas frentes, alternadamente: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia espetacularmente. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Korovin — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua.

Arte: Elena Martynyuk

Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que formam uma atordoante série de cenas hilariantes.

Naquela Moscou o diabo está em casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram notável criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde sempre à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas a base de criação de Bulgákov é outro cômico ucraniano: Gógol.

O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira à Rússia soviética ou como crítica à superficialidade das pessoas. Há mais pontos bem característicos: Bulgákov jamais demonstra nostalgia da Rússia czarista — apenas da religião — e Woland não está em oposição direta a Deus. Ele é como um ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas. E as punições de Woland são criativas, desconcertantes.

Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.

Mikhail e sua Margarida

Nas imagens finais de O Mestre, Mikhail Bulgákov dá uma dura avaliação do mundo que encontrou. Ele seria infernal e sem esperança. Era óbvio que as tentativas de se tornar parte do mundo soviético falharam. Ele não entendia aquele novo idioma.

Obs.: A tradução de Zoia Prestes, para a Alfaguara, é bastante superior à antiga, lançada lá por volta de 1993 pela Ars Poetica. Mas a mais recente, de Irineu Franco Perpétuo, para a Editora 34, é ainda melhor.

~ Curiosidades ~

A venda da alma

Sabe-se que Bulgákov foi muitas vezes ao Bolshoi para ver e ouvir a ópera Fausto, de Charles Gounod. Esta ópera sempre o animava, ele voltava feliz para casa. Mas, um dia, Bulgákov voltou do teatro em estado muito sombrio. Ele tinha começado a escrever sua peça sobre Stálin, Batumi. Bulgákov reconheceu-se na imagem de Fausto. Como escrevemos acima, a peça jamais foi concluída por ter sido indiretamente reprovada por Stálin.

Personagem desaparecido

Em 1937, nos 100 anos de aniversário da morte de Pushkin, vários autores apresentaram peças dedicadas ao poeta. Entre elas, havia uma de Bulgákov. Alexander Pushkin distinguia-se das obras de outros autores pela ausência do personagem principal. Bulgákov acreditava que a aparição do homenageado no palco tornaria tudo vulgar e insípido. Sua peça foi considerada a melhor daquele ano.

Tesouro

No romance A Guarda Branca, Bulgákov descreveu com bastante precisão a casa em que morara em Kiev. Lá, haveria um tesouro. Os novos proprietários da casa quase a derrubaram, quebrando paredes ao tentar encontrar o dinheiro descrito no romance. É óbvio que não encontraram nada e ainda ficaram irritados com o escritor.

História de Woland

Woland recebeu seu nome a partir do Fausto de Goethe. No Fausto, ele é citado apenas uma vez, quando Mefistófeles pede para que espíritos malignos abram espaço pois “O nobre Woland está chegando!” Em outros Faustos ele aparece como Faland ou Phaland. A primeira edição de O Mestre continha uma descrição detalhada (15 páginas manuscritas) de Woland. Esta descrição está perdida. Além disso, na versão inicial, Woland era chamado Astaroth (um dos demônios mais altos do inferno, de acordo com a demonologia ocidental). Mais tarde, Bulgákov o substituiu.

O protótipo de Behemoth

Em russo, diz-se Begemot. O ultrafamoso assistente de Woland tinha um protótipo real, só que este não era um gato, mas um cachorro: o grande cão preto de Bulgákov chamava-se Behemoth. Esse cachorro era muito inteligente. Uma vez, quando Bulgákov estava comemorando o Ano Novo com sua esposa, logo após o relógio de parede dar doze badaladas, o cachorro também latiu 12 vezes, embora ninguém lhe tivesse ensinado.

Escultura de Behemoth em Kiev | Wikimedia Commons

Memória

Desde os primeiros anos de vida, Bulgákov demonstrou possuir uma memória excepcional. Lia muito. Diz a lenda que ele leu tantas vezes o romance Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, que o sabia de cor.

Coleção

Bulgákov tinha todos os ingressos de teatro — peças, ópera e concertos — a que compareceu.

Crítica soviética

O escritor também colecionava, coladas em um álbum, recortes de jornais e revistas com críticas de suas obras. Dava ênfase às mais devastadoramente hostis. De acordo com Bulgákov, ali havia 298 críticas negativas e apenas 3 elogiosas.

Defesa de Stanislavski

A primeira produção no Teatro de Arte de Moscou de Os Dias dos Turbin foi garantida por Konstantín Stanislavski. Ele simplesmente afirmou que, se a peça fosse banida, fecharia o teatro.

Stálin e Os Dias dos Turbin

Stálin gostava muito da peça e assistiu-a peça pelo menos 15 vezes, aplaudindo com entusiasmo desde o camarote destinado a membros do governo. Oito vezes ele desceu para falar com os artistas após a peça, a fim de incentivar a necessidade da luta política na literatura.

Uma das últimas fotos. Mikhail Bulgakov, com sua esposa Elena Shilovskaya

(*) Com pesquisa de Elena Romanov

Em 2016, Sartori quer ainda ‘menas’ cultura

Em 2016, Sartori quer ainda ‘menas’ cultura
Esperamos que o servidor faça o mesmo com o Papai Noel Sartori
Esperamos que o servidor faça o mesmo após examinar os presentes do Papai Noel Sartori

Neste final de ano, Sartori voltou a utilizar a habitual estratégia do político fraco e pusilânime. Em pleno período de festas, entre dois feriadões de quatro dias cada, o polenta faz um pedido de convocação extraordinária para que a Assembleia Legislativa aprecie ainda nesse ano um novo pacote de ajuste fiscal encaminhado pelo Executivo. A data foi escolhida a dedo para fazer passar, sem grandes protestos, projetos de desmonte do estado, de massacre dos servidores públicos e de descaso com a população. É um Pacotão de Natal, um Pacotão de Maldades.

Estado do servidor após a leitura do pacote
Estado do servidor após a leitura do pacote

Ontem a repórter Jaqueline Silveira, do Sul21, apontou uma série de pequenas alterações, daquelas ao estilo das letras pequenas que não lemos nos contratos e que são, na verdade, o cerne do monstro, as coisas que mudam tudo e que os deputados certamente não terão tempo para ler neste período de viagens e festas.

Bem, já que até já fui processado por uma Secretária de Cultura — não deveria fazer um crowdfunding para rever a grana que perdi? — fui direto à parte do artigo que diz respeito à Cultura. Vejamos:

(E olha que o foco do Sartorão de Natal nem é a Cultura, mas o fim da licença-prêmio e as limitações nos reajustes salariais, ou seja, a destruição de conquistas de décadas).

Limite de recursos para o Programa de Incentivo, Programa de Apoio à Inclusão e Promoção Social e Sistema Estadual de Apoio Unificado e Fomento às Atividades Culturais – (…) Em relação às atividades culturais, investimento não pode ser superior a 0,5% do ICMS da receita líquida. Pela lei anterior, o parâmetro também era 0,5% do ICMS da receita líquida, porém estabelecia que não poderia ser inferior ao limite do ano anterior. (Ou seja, como a arrecadação diminuiu, teremos ainda menos dinheiro para a Cultura)

Ou seja, são três palavrinhas que diminuem o que já é miserável.

Há uma história atribuída a Winston Churchill que o governo do nosso estado certamente desconhece. Ela é muito conhecida. Durante a II Guerra Mundial, os esforços britânicos para resistir aos ataques nazis obrigaram Winston Churchill a fazer cortes duros nas despesas das pastas que não tinham relação com a defesa do país. Durante esse processo, alguém sugeriu que fossem feitas reduções significativas no orçamento da Cultura. Churchill recusou terminantemente. Seu argumento foi arrasador: “Respondam-me, por favor: por que é que estamos lutando?”.

Esta devia ser a pergunta que todos os que defendem contas públicas saudáveis deviam também fazer a si mesmos. Hoje, quem vai à Inglaterra sabe o resultado de atitudes como essa. O resultado está não apenas na produção cultural, mas disseminada por um dos povos mais educados do planeta. Dito isso, vamos a uma dica literária:

Victor Hugo

A Ospa de ontem em vários comentários: fotos, escolhas, Sartori, parcelamento, nomeações e boa música

A Ospa de ontem em vários comentários: fotos, escolhas, Sartori, parcelamento, nomeações e boa música

O concerto começou muito bem. Na plateia do Theatro São Pedro, duas mulheres me pediram para que lhes tirasse uma foto. Tirei bem mais de uma. Elas estavam felizes, ornamentadas pelo velho edifício e pelos músicos que se preparavam para o concerto no palco. Ao verem o resultado, voltaram para falar comigo. Estavam encantadas. Disseram que eu lhes dera a coisa mais bonita que elas tinham. Fiquei comovido. A noite prometia.

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Mas começo por um fato de antes do concerto: a entrevista que o Diretor Artístico da Ospa concedeu recentemente à ZH. Não entendi porque Evandro Matté irá convidar apenas nomes inéditos para reger a orquestra nos próximos meses. Ele disse que deseja “oxigenar a lista dos maestros convidados e dos solistas”, evitando aqueles que tenham se apresentado com a orquestra nos últimos três anos. Tento interpretar e não consigo entender porque Lavard, Rauss, Teraoka, Volkman, Nakata, Hahm, Levin ou Vigil não possam retornar em futuro próximo. São excelentes regentes que fizeram bons trabalhos. A opção pelo novo, nestes casos, não me parece a melhor.

Pior: é um crime que gaúchos que estão se consagrando no exterior — como Lavard Skou-Larsen, que acaba de arrasar com a Royal Flemish Philharmonic, de Antuérpia, e Tobias Volkman, que fez o mesmo na semana passada com a Sinfônica de Brandemburgo — não possam ser reconvidados. É gente talentosa, nascida aqui, com parentes na cidade, que conquista o mundo, mas que não pode mostrar-se em sua cidade. (OK, sei que o Tobias é de NH ou de São Leo).

Isso é tanto mais ilógico quando se pensa que o concurso da Ospa parecia beneficiar os locais…

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Yang Liu atingiu o coração do Secretário Victor Hugo
Yang Liu atingiu o coração do Secretário Victor Hugo

O programa de ontem:

Jean Sibelius – Finlândia, op.26
Camille Saint-Saëns – Concerto para violino nº 3 em Si menor, op.61
Maurice Ravel – Pavana para uma Princesa Defunta
Nikolai Rimsky-Korsakov – Capricho espanhol, op. 34

Regente: Evandro Matté
Solista: Yang Liu, violinista

Sibelius completa 150 anos de nascimento neste ano. Nada mais natural que a Ospa iniciasse sua temporada com ele. Finlândia é um poema sinfônico escrito em 1899 e revisado no ano seguinte. Foi composto como um protesto contra a crescente censura do Império Russo. Era comum, na época, trocar o nome da obra nos concertos com a finalidade de iludir a censura russa. Isso adquiriu ares de piada. Os títulos com os quais a peça foi mascarada foram muitos: um deles foi Sentimentos Felizes ao Amanhecer da Primavera Finlandesa. A peça traz melodias crescentes e agitadas, evocando a luta nacional do povo finlandês. À medida que vai chegando ao final, a melodia serena do hino da Finlândia é ouvida. O careca alcoolista foi bem representado pela Ospa, mas senti saudades da execução redonda que Nicolas Rauss criou com a mesma Ospa no Colégio Anchieta, se não me engano.

Bá, eu estava com fome. Enquanto isso, pensava que Camille Saint-Saëns fora um sujeito feliz. Foi organista, pianista, caricaturista, cientista amador, apaixonado por matemática e astronomia, comediante amador, folhetinista, crítico, viajante e arqueólogo. Também gostava de viajar. Movido por impulsos súbitos, fazia excursões repentinas às partes mais distantes do planeta. Visitou a Espanha, as Canárias, o Sri Lanka (Ceilão), a Vietnã (Cochinchina), o Egito, e esteve várias vezes na América. Deu concertos em lugares exóticos como o Rio de Janeiro e São Paulo em 1899. A morte pegou-o numa cama de hotel em Argel.

O Concerto n° 3 para Violino e Orquestra foi escrito em 1880 especialmente para o célebre Pablo de Sarasate, para quem Saint-Saëns já havia escrito seu Primeiro Concerto. O primeiro movimento me pareceu de execução tediosa. Quando terminou esta parte da música, o governador Sartori e o Secretário de Cultura Victor Hugo prorromperam em aplausos, no que foram seguidos por boa parte da plateia. Sorridente, o Secretário batia delicadamente no próprio peito, como se tivesse sido atingido no coração. Bem, deixa pra lá, o governador certamente não sabe que não se aplaude entre os movimentos. Yang Liu e o regente Matté ficaram duros, esperando o entusiasmo arrefecer.

Tenho para mim que Sartori, que fala em parcelar os salários do funcionalismo público estadual, resolver parcelar o Concerto para Violino. Se ele insistir nesta ideia de pagar aos poucos, sugiro que a Ospa toque seus concertos também de forma parcelada.

Mas o fato é que o Concerto de Saint-Saëns melhora a partir do segundo movimento. E Yang Liu deu-nos uma magnífica interpretação do movimento central e do final. Saint-Saëns tem outros concertos cujos movimentos finais são superiores ao inicial. Mereceria revisão.

O intervalo foi penoso com a fome apertando. O melhor momento foi quando a Elena saiu do palco e veio me fazer um carinho. Minha vizinha de cadeira disse: “Como a sua esposa é linda!”. Ninguém duvida.

A impressionista Pavane pour une infante defunte (Pavana para uma Princesa Defunta) foi composta em 1900, quando Ravel tinha vinte e cinco anos. Devido à origem basca, Ravel tinha uma predileção especial pela música espanhola. A pavana é uma tradicional e lenta dança espanhola, que gozou de popularidade entre os séculos XVI e XVII. A peça foi escrita em 1899 para piano, durante os estudos do compositor no Conservatório de Paris. Ele a orquestrou em 1910. Segundo ele, ela não evoca nenhum momento histórico. É apenas a dança de uma jovem princesa imaginária na corte espanhola. Também, segundo o compositor, a música não deve levar o ouvinte a pensamentos funéreos. Ravel afirmou que o motivo do título da peça era porque gostava do som da combinação das palavras “infante défunte”… É uma música levada pelos sopros e o trompista viking Alexandre Ostrovski esteve nostálgico e parisiense como devia.

O esparramado Capricho Espanhol, Op . 34, foi composto em 1887 por Nikolai Rimsky-Korsakov. Como título demonstra, é baseado em melodias espanholas. Dã. O título original russo é ainda mais claro: Capricho sobre temas espanhóis. Como Rimsky-Korsakov era oficial da marinha russa, costumava viajar um bocado — ainda mais do que Saint-Saëns. Entre 1862 e 1865, o cara revirou o mundo. Na Espanha, passou algumas semanas em Cádiz, fascinado pela cultura e pelas mulheres locais (isso é invenção minha). Assim como Sheherazade, a peça tem um importante e belo solo de violino. Aliás, o Capricho foi inicialmente concebido como uma fantasia para violino e orquestra.

Em alguns momentos do Capricho, as cordas da Ospa foram cada uma para um lado para reunir-se novamente ali na esquina. Mas nada de assustar. Há muitos solos na obra. Augusto Maurer (clarinete), Omar Aguirre (primeiro violino), Paulo Calloni (corne inglês), o viking (trompa), Artur Elias (flauta) e Wenceslau Moreyra (violoncelo) estiveram muito bem. Talvez apenas o solo de Aguirre merecesse uma cintura mais solta. Mas a alegria e luminosidade de peça de Korsakov estavam lá. Acho que Evandro Matté estava tão feliz com o bom final do concerto que se esqueceu de pedir para Artur Elias erguer-se a fim de receber seus aplausos. Estou certo?

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Adendo: sou totalmente favorável à nomeação dos concursados da Ospa. Reclamei muito do Concurso realizado no ano passado, mas, já que este foi válido, penso que as vagas devam ser preenchidas o mais rapidamente possível. Aliás, de minha perspectiva pessoal, o concurso teve momentos que se inscreveram entre os mais patéticos de minha vida, como aquele em que um membro da Associação de Funcionários da orquestra ligou para o Sul21 dizendo que eu estava atacando a Ospa, a Secretaria de Cultura e, consequentemente, atrapalhando a reeleição de Tarso Genro. Muita loucura, né? Imagina se eu, com meu pequeno blog, tenho o poder de intervir numa eleição para o Governo do Estado. Ao final, o cara pedia a retirada dos posts e minha cabeça. Algo me diz que fui chamado de psolento…

Gosto e preciso de meu emprego. E não tenho estabilidade. Minha chefe ouviu tudo aquilo, me chamou e disse que tinha mais o que fazer do que ouvir aquele tipo de coisas. Eu que desse um jeito de o cara não telefonar mais. Não fiz nada, mas o cidadão não voltou a ligar. Foi uma ação maldosa e inexplicável, inspirada, pirada e repirada sei lá por quem ou o quê.

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Milton Ribeiro foi ao concerto às suas próprias expensas.

Beethoven, o surdo imortal que escrevia para o futuro

Beethoven, o surdo imortal que escrevia para o futuro
Sua surdez era trágica do ponto de vista social. No plano artístico, apenas impediu uma carreira como pianista.

Publicado em 16 de dezembro de 2012 no Sul21

Ludwig van Beethoven (16 de dezembro de 1770 – 26 de março de 1827) foi um compositor cuja existência foi tão adequada a romances e filmes que as lendas em torno de sua figura foram se criando de forma indiscriminada, às vezes paradoxalmente. Sua surdez, por exemplo, contribuiu muito para popularizá-lo e para que fosse lamentado. Victor Hugo dizia que sua música era a de “Um deus cego que criava o Sol”, mas quem o conhecesse talvez reduzisse o tom de piedade. Beethoven era uma pessoa absolutamente segura de seu talento – não mentiríamos se o chamássemos de arrogante – e tinha certeza da imortalidade de sua obra. Com toda a razão. Ele tinha a perfeita noção de que criava um conjunto espetacular de obras musicais, que alicerçava uma Obra, noção que inexistia ao tempo de Bach, o qual tratava suas composições como se fossem sapatos a serem entregues ao consumidor. A surdez representava uma tragédia muito mais do ponto de vista social, das relações amorosas e das de amizade, além prejudicar de forma fatal sua carreira de grande pianista, mas nunca foi encarada por ele como um obstáculo no plano da criação.

Aos 31 anos, Beethoven já ouvia muito pouco, mas seguiu compondo até a morte, aos 56 anos | Arte de
Aos 31 anos, Beethoven já ouvia muito pouco, mas seguiu compondo até a morte, aos 56 anos | Arte de Sergio Artigas (http://artigas.deviantart.com/art/Ludwig-van-Beethoven-07-152989423)

Com isso, não estamos dizendo que ele não tenha sofrido muito com o progressivo ensurdecimento. Sofreu a ponto de ter pensado em suicidar-se. Era 1802, Beethoven tinha 31 anos – idade com que Schubert morreu – e pensava em matar-se. Ao que se sabe, nunca fez uma tentativa, mas, se a fizesse e fosse bem-sucedido, talvez ainda assim estivéssemos falando dele.

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François Truffaut, o homem que amava o cinema

Truffaut

Publicado sábado no Sul21.

Durante esta semana, François Truffaut (6 de Fevereiro de 1932) teria completado 80 anos. Em apenas 52 anos de vida – o cineasta faleceu em outubro de 1984, vítima de um tumor cerebral – e 25 de carreira, Truffaut deixou 26 filmes, muitos dos quais figuram de forma definitiva entre os clássicos da arte cinematográfica. Filmes como Jules e Jim (1962), A Noite Americana (1973), Fahrenheit 451 (1966), O homem que amava as mulheres (1977), A Idade da Inocência (1976), A História de Adèle H. (1975) e O Último Metrô (1980), além dos cinco que percorrem os anos de formação de Antoine Doinel, sempre vivido pelo alter ego de Truffaut, o ator Jean-Pierre Léaud – Os Incompreendidos (1959), O Amor aos Vinte Anos (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicilio Conjugal (1970) e Amor em Fuga (1979) – , deveriam fazer parte de qualquer cinemateca que tente compreender a evolução do cinema como arte.

Jacqueline Bisset e Francois Truffaut em A Noite Americana, um dos filmes que Truffaut dirigiu e atuou

A seu modo, Truffaut foi um erudito, um estudioso, um sujeito absolutamente tarado por cinema. Vivendo de sala em sala, de cinemateca em cinemateca, afirmou em 1975, numa entrevista durante o lançamento de Adèle H., que vira 15.000 filmes (tinha 43 anos) em sua vida e que às vezes tinha a impressão de que seus trabalhos eram colagens do que fizeram antes outros cineastas. Pura modéstia. Autor sempre original, Truffaut esteve permanentemente na ponta de lança, mesmo que a partir dos anos 70 tenha recuado seu estilo para algo mais clássico, afastando-se da postura de seu amigo e colega Jean-Luc Godard. Anos depois, jovens americanos inspiraram-se em Truffaut não apenas ao ver filmes sem parar, mas fazendo arte e graça ao exporem suas também enormes culturas cinematográficas. Sim, falo de dois dos grandes fãs de Truffaut, Quentin Tarantino e Steven Spielberg.

Doinel na casa da mãe: solidão, cinema, literatura e roubos

Truffaut jamais conheceu seu pai biológico. Foi criado por seus avós maternos, já que a mãe o rejeitara. Aos 10 anos, perdeu a avó e foi morar com a mãe, que estava casada com Roland Truffaut. Este acabou registrando o garoto com seu sobrenome. Porém, rechaçado tanto pelo pai adotivo quanto pela mãe, era péssimo aluno e passava seu tempo vendo filmes e arranjando dinheiro através de pequenos furtos. O primeiro filme que conta a história de Antoine Doinel e seu primeiro longa como diretor, Os Incompreendidos, é a história da adolescência de Truffaut. Ali, na cena final, ao deixar Léaud, ainda um menino, caminhar sem rumo pela praia, o francês captura de forma inesquecível a angústia e as dúvidas do adolescente. Contextualizado, o olhar de Doinel para o espectador é uma surpresa e um questionamento como poucas vezes se vira antes no cinema. Trata-se de um pedido silencioso da mais alta carga emocional.

Esta estreia de Truffaut aos 27 anos ocorreu após alguns anos como crítico de cinema na revista Cahiers du cinéma, fundada por André Bazin. Bazin foi efetivamente o pai tardio de Truffaut. O futuro cineasta tornou-se secretário pessoal de Bazin aos 18 anos, quando obteve a emancipação legal dos pais. Bazin foi quem lhe orientou, introduzindo-o no Objectif 49, um seleto grupo de jovens estudiosos do novo cinema da época, leia-se, principalmente, Orson Welles e Roberto Rossellini. Mais tarde, integrariam o grupo nomes como Jean-Luc Godard e Suzanne Schiffman — roteirista de quase todos os filmes de Truffaut. Ele também participava do Ciné club du Quartier Latin, boletim sobre cinema coordenado por Eric Rohmer. Ali, daria seus primeiros passos como crítico.

trus

E que crítico! Estreou causando enorme polêmica ao atacar o velho cinema francês com sua “tradição de qualidade”. Une Certaine tendance du cinéma française (Uma certa tendência do cinema francês) era um manifesto contra aquela tal “tradição de qualidade”, na verdade um cinema literário muito pobre em termos de dramaturgia e… cinema. Como crítico, Truffaut desenvolveu a noção dos filmes autorais. Neste conceito, o filme é considerado uma produção individual, como uma canção ou um livro. Truffaut defendia que a responsabilidade sobre um filme dependia de uma única pessoa, o diretor. O grande representante de sua teoria era Alfred Hitchcock. Tal conceito foi a base para o surgimento de um movimento que revolucionaria o cinema francês. Criada por jovens cineastas franceses, a Nouvelle Vague (Nova Onda) defendia a produção autoral de filmes intimistas e de baixo custo. E a nova geração, formada principalmente por jovens críticos de publicações especializadas, comprovaram suas teorias através de filmes que se veem até hoje. O início não poderia ser mais espetacular. Os Incompreendidos e, logo depois, ainda em 1959, À bout de souffle (Acossado), dirigido por Godard sobre roteiro de François Truffaut.

Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg em Acossado (1959)

Depois de mais dois filmes, Truffaut chegou ao leve e ousado, talvez discretamente indecente para a época, Jules e Jim. A produção, que recebeu o ridículo título de Uma Mulher para Dois no Brasil, é baseado num romance de Henri-Pierre Roché. Visto hoje, parece uma antologia de cenas clássicas, tanto que foi citado ou copiado por filmes mais recentes. Lembram por exemplo da célebre sequência de Butch Cassidy na qual Paul Newman e Katherine Ross andam de bicicleta ao som de Raindrops keep falling on my head? Está em Jules e Jim. É só procurar. O filme trata do triângulo amoroso entre Jules (Oskar Werner), Jim (Henri Serre) e Catherine (Jeanne Moreau, em magnífico trabalho).

Truffaut e Moreau conversam durante as filmagens de Jules e Jim

Durante as filmagens, aconteceu com Truffaut o que aconteceria com qualquer um: ele se apaixonou por Moreau, então casada com o estilista Pierre Cardin. Fez mais: apaixonou-se e deixou todos nós apaixonados por ela em diversas cenas, mas talvez especialmente naquela em que a faz correr travestida numa ponte. Abaixo, um dos muitos trailers do filme:

http://youtu.be/oPWTJsO89-M

Mais intimista e poético a cada trabalho, Truffaut afastava-se de Godard, que tornava seu cinema cada vez mais político, separando-se de Truffaut tanto em sua obra como pessoalmente. Brigaram. Porém, após dar sequência à saga autobiográfica de Antoine Doinel em 1962, com Amor aos 20 anos, ele paradoxalmente abriu uma exceção em 1966, quando foi à Inglaterra filmar Fahrenheit 451, pesadelo futurista baseado num romance de Ray Bradbury com Oskar Werner e Julie Christie nos papéis principais. É um filme sobre o amor aos livros num futuro totalitário em que eles são sistematicamente queimados. “Por que não popularizar, com a ajuda do cinema, bons títulos literários”, disse na época. Aliás, repassar livros para a linguagem cinematográfica era algo em que era mestre.

Cena de Fahrenheit 451

Outro grande filme foi A Noite Americana, de 1973. Talvez em função no título, é sua obra mais celebrada nos EUA. O título refere-se à técnica de iluminação para simular a noite em filmagens durante o dia. Recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1974. É um filme sobre a realização de outro filme, Je Vous Presente Pamela, ou, melhor dizendo, há um filme dentro do filme. Além de mostrar os bastidores da produção, vemos o próprio diretor atuando. A história acompanha a produção e os problemas das vidas particulares de toda a equipe. É uma bela crônica de amor ao cinema e também sobre o descontrole de um artista sobre a obra. O diretor vivido por Truffaut só busca “salvar o filme”. Deliciosa e leve sem ser fútil, A Noite Americana, deixa-nos ainda mais apaixonados pelo cinema. Dos filmes metalinguísticos, que procuram refletir sobre o cinema através do cinema, A Noite Americana é o melhor exemplar. A alegria que o filme transmite pode ser entendida por uma resposta que Truffaut deu a um jornalista em 1970, falando sobre suas obras: “Eu sou da família de diretores para os quais o cinema é um prolongamento da juventude”.

http://youtu.be/ZnZ_8sjta3I

A elegância clássica e o apuro visual de A História de Adèle H. remete a um outro filme do próprio cineasta, As Duas Inglesas e o Amor. Ambos são fotografados por Nestor Almendros e, além de contar boas histórias, têm cenas que mais parecem quadros. Adèle H. narra o amor e a loucura de Adèle Hugo, a filha de Victor Hugo que persegue um militar pelo qual é apaixonada na França, Canadá e em Barbados. De quebra, apresenta Isabelle Adjani no papel trágico que tentou repetir sem sucesso durante toda sua carreira. Esta love story solitária, esta história de amor protagonizada por apenas um personagem que vai atrás de seu objetivo inatingível, é um dos mais belos estudos sobre o amor e a solidão.

A Idade da Inocência, de 1976, é totalmente diferente. Despojado, livre e improvisado, é metade documentário e metade ficção, da mesma forma que fez antes em O Garoto Selvagem. Aqui, Truffaut acompanha uma turma de adolescentes e pré-adolescentes, observando suas relações, casos amorosos, piadas e brincadeiras. São contadas muitas histórias de jovens de várias classes sociais. Como ensaiavam? “Ora, eu lhes dizia muito poucas palavras para explicar o que elas tinham que fazer e dizer. Queria que elas usassem suas próprias palavras e que fossem naturais em suas atitudes. Funcionou bem mas foi muito cansativo, elas falavam demais e, juntas, faziam muito barulho…”, disse Truffaut sobre o set de filmagens.

Truffaut e algumas das centenas de crianças que participam de "A Idade da Inocência"

1977 foi o ano de outro extraordinário filme, O homem que amava as mulheres. Charles Denner faz o papel de um Don Juan que procura e quase sempre consegue conquistar as mulheres que lhe interessam — quase todas. O filme começa com o funeral de Bertrand (Denner). Mais parece um exército de saias e saltos altos. A seguir, o filme é um catálogo de seduções. Cada mulher é abordada de uma forma diferente, a começar pela moça do serviço de despertador que lhe telefona todos os dias pela manhã e que é chamada de Aurora por Bertrand. “George Simenon afirmava ter ‘conhecido’ 10.000 mulheres… Meu personagem é um aprendiz perto dele. É um poeta que diz que ‘as pernas das mulheres são como hastes de compassos que cavalgam o globo terrestre em todos os sentidos, dando-lhe equilíbrio e harmonia’. Não sei como Simenon conseguia tantas mulheres, mas Bertrand não é alguém vulgar que pega mulheres nos corredores ou no chão. Ele joga o jogo da sedução”.

Para finalizar, destacamos O Último Metrô, que trata da ocupação de um teatro de Paris por parte dos nazistas. O teatro é dirigido por Lucas Steiner (Heinz Bennent), um bem sucedido diretor judeu que supostamente fugiu da França. Sua esposa Marion (Catherine Deneuve), faz de conta assumiu a direção do teatro e da nova peça. Ela contrata o ator Bernard Granger (Gerard Depardieu). Para dirigi-lo em cena, Marion se socorre das orientações de seu marido, que, na verdade, está escondido no porão do teatro. É mais um trio amoroso proposto por Truffaut. Com uma extraordinária trinca de atores nos papéis principais — os citados Deneuve, Depardieu e Bennent –, o filme funciona como poucos.

Catherine Deneuve e Heinz Bennent em cena de "O Último Metrô" (1980)

Truffaut manteve durante toda a sua carreira a marca da paixão: amava o cinema, os livros, as mulheres e sua produção demonstra como poucas o autor que há por trás dos filmes. Vale a pena conhecê-lo.

Abaixo, todos os longas do diretor:

1983 De Repente, Num Domingo (Vivement Dimanche!)
1981 A Mulher do Lado (La Femme d’à Côté)
1980 O último metrô (Le dernier metro)
1979 O amor em fuga (L’amour en fuite)
1978 O Quarto Verde (La chambre verte)
1977 O homem que amava as mulheres (L’homme qui aimait les femmes)
1976 Na idade da inocência (L’argente de poche)
1975 A História de Adèle H. (L’Histoire d’Adèle H.)
1973 A noite americana (La nuit americaine)
1972 Uma jovem tão bela como eu (Une belle fille comme moi)
1971 As duas inglesas e o amor (Les deux anglaises et le continent)
1970 Domicílio conjugal (Domicile conjugal)
1969 O Garoto Selvagem (L’Enfant Sauvage)
1969 A Sereia do Mississipi (La Sirène du Mississipi)
1968 Beijos Proibidos (Baisers Volés)
1967 A noiva estava de preto (La mariée etait en noir)
1966 Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451)
1964 Um Só Pecado (La Peau Douce)
1962 Amor aos 20 anos (Antoine et Colette)
1962 Uma Mulher Para Dois (Jules et Jim)
1960 Atirem no Pianista (Tirez Sur le Pianiste)
1959 Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups)