Ulysses, de James Joyce

Ulysses, de James Joyce

Bloom acorda. Prepara o café da manhã para sua mulher, Molly. Assiste a um enterro. Visita um editor de um jornal. Almoça. Olha um anúncio de jornal na biblioteca. Responde a uma carta recebida. Janta. Encontra o amigo Dedalus. Vagueia pela praia. Masturba-se olhando uma moça. Reencontra Dedalus. Vão a um puteiro. Encaminham-se para a casa de Bloom. Entabulam uma conversa filosófica. Dedalus vai embora e Bloom retorna ao leito conjugal, onde dormirá enquanto sua mulher tem fantasias quentíssimas.

Tudo isso em apenas um dia, 16 de junho de 1904. São 18 capítulos que cobrem aproximadamente 18 horas. Cada capítulo escrito de forma totalmente diferente, cada cena fazendo mil referências, principalmente à Odisseia de Homero. Não é uma epopeia do cotidiano, mas sim uma obra anti-épica, cujo naturalismo não se percebe no nível mais superficial da narrativa. As frequentes transgressões linguísticas, a justaposição de frases ostensivamente poliglotas, a mistura de estilos — épico, lírico, drama, comédia — são os percursos seguidos por Joyce com a finalidade de quebrar os protocolos estabelecidos do gênero do romance para chegar à essência das coisas e à exploração do inconsciente, escondido pelas aparências. O que mais me fascina são os 18 estilos diferentes, os 18 escritores chamados por Joyce para escreverem o maior romance do século XX.

Desde que acorda até voltar à cama — onde sua Penélope-Molly tece enorme teia de fantasias eróticas que nunca serão do conhecimento do marido –, Leopold Bloom protagoniza um monumento de rara sutileza, difícil de penetrar, mas só quem tenta obtém chegar a suas grandes iluminações.

O livro foi proibidíssimo e apenas chegou a nós por milagre. Por exemplo, um episódio do livro, entregue a uma datilógrafa, chocou de tal forma seu marido que este o arremessou às chamas. havia outra cópia menos revisada, com Joyce. Durante a Primeira Guerra Mundial, um capítulo inteiro — Sereias — foi interceptado por autoridades militares que desconfiaram que aquilo era uma longa mensagem escrita em código… Algo vital para o inimigo, certamente…

Suas características satíricas, viscerais e brutalmente depreciadoras do real, chocaram profundamente a sensibilidade do leitor médio, decepcionado ainda pela fascinação do autor pela linguagem, pelas várias formas narrativas, louca musicalidade e certamente pela descontrolada e incerta potencialidade semântica.

O mais extravagante, divertido e sujo dos livros.

Ah, as edições da Penguin são baratíssimas e a tradução é excelente e recente. Para aproveitar!

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Uma Confraria de Tolos, de John Kennedy Toole

Uma Confraria de Tolos, de John Kennedy Toole

Uma Confraria de Tolos é uma obra-prima absoluta, uma obra-prima total e injustificadamente pouco lida em nosso país. Duvida? Procure no Google críticas a respeito de A Confederacy of Dunces para conferir que não estou nada sozinho em minha avaliação.

Tenho uma velha edição dos anos 80 da Record, que relançou o livro na coleção BestBolso. Certa vez, ao citar o livro em meu blog, recebi um comentário de uma leitora que morava no interior da Paraíba. Ela me contou que antes morava em São Paulo, onde lera a Confraria nos anos 80. O livro ficara por lá, mas agora tinha um filho que era um grande leitor e ela PRECISAVA apresentar o livro a ele.

Não sou uma pessoa que mereça a canonização, mas sei reconhecer alguém que precisa de auxílio. Fiquei comovido com o pedido, pois sei a falta que a leitura da Confraria faz a alguém que conheça o livro. Como a Estante Virtual ainda não existia, empreendi uma busca entre os sebos de Porto Alegre. Encontrei o livro e o mandei para a leitora aflita. Ela me agradeceu dizendo que me amava, adorava e que intercederia por mim nem que fosse no juízo final, coisa na qual ela não acreditava, mas que enfim, daria um jeito de interceder.

O tamanho do erro de negligenciar Uma Confraria de Tolos é difícil de caracterizar, mas vamos lá. Começarei pelo título. John Kennedy Toole devia estar consciente da qualidade de seu romance, senão não basearia o título de seu romance de estreia numa citação clássica de um dos maiores escritores de todos os tempos, Jonathan Swift: “Quando um verdadeiro gênio aparece no mundo, você vai reconhecê-lo por um sinal: todos os tolos se juntam contra ele”. Outro motivo de buscar inspiração em Swift é que Toole escreve um romance como eram as histórias do inglês: hilariante de cabo a rabo.

Mas também é muito triste, muito sério, louco, amargo e especialmente inteligente. Uma genial tragicomédia.

Seu protagonista, o hoje célebre — fora do Brasil — Ignatius J. Reilly, é um ser excêntrico, às vezes repugnante. Ele está por seus 30 anos, é um glutão obeso e mal-humorado que mora com a mãe e vive amaldiçoando o mundo moderno. Ignatius leva a frase de Swift a sério: ele é um anti-herói nascido na época errada, que se considera sempre perseguido por idiotas.

Uma Confraria de Tolos se passa em New Orleans nos anos 60. Como o romance Dom Quixote, é picaresco. E, se o personagem de Cervantes ia atrás de aventuras, Reilly é um preguiçoso, excêntrico e idealista atrás de emprego. Durante suas caminhadas, às quais foi atirado pela mãe, que não o suporta mais em casa — e que o acusa de encher a atmosfera de gases intestinais — , ele vocifera contra tudo e contra todo o tipo de modernidade. Walker Percy, em seu prefácio para o livro, descreve Ignatius como um “pateta genial”. Trata-se de um passadista jovem. Desdenha a cultura da modernidade, especialmente o pop. Tal desprezo torna-se sua obsessão: por exemplo, ele vai ao cinema a fim de zombar dos filmes e expressar sua indignação com a falta de “teologia e geometria” (?) do mundo contemporâneo.

Ele prefere a filosofia escolástica da Idade Média, em geral, e a filosofia de Boécio, em particular. No entanto, aprecia muitos dos confortos e conveniências modernas, enquanto observa o funcionamento de sua válvula pilórica, que reage fortemente a todos os incidentes.

Os outros personagens principais do livro, Myrna Minkoff e Irene Reilly, são esplendidamente construídos e, se é difícil dizer mais, explico o motivo: Uma Confraria de Tolos é o mais engraçado dos livros e não devo contar suas piadas neste espaço. Por exemplo, seus encontros com a polícia… Não, melhor não ir adiante.

Reilly tem muito de Toole. O autor também sofreu com uma mãe dominadora e tinha uma visão pessimista de um mundo que não entendia.

Sem encontrar uma editora para publicar o livro e sofrendo de graves crises de depressão, Toole cometeu suicídio em 1969, aos 31 anos. Sua mãe encontrou uma cópia do manuscrito entre os papéis do filho e lutou por muitos anos para conseguir uma editora. Uma Confraria de Tolos foi finalmente publicado nos Estados Unidos em 1980. No ano seguinte, Toole ganhou um Pulitzer póstumo. Nada mais merecido.

Durante o verão passado, minha filha de 17 anos pegou casualmente o livro em nossa biblioteca. Dias depois, ela voltou com uma pequena e significativa frase: “Pai, foi o melhor livro que li até hoje”.

Eu não disse?

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Berlim Alexanderplatz, de Alfred Döblin

Berlim Alexanderplatz, de Alfred Döblin

Berlim Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, tem como sub-título A história de Franz Biberkopf. Nada mais correto, é isto mesmo que o livro conta com surpreendente riqueza de detalhes e de vozes. A história se passa na Berlim do final dos anos 20 do século passado. Na época da ação, a Alemanha estava no período entre guerras. A Primeira Guerra Mundial acabara há 11 anos e  a economia alemã recuperava-se lentamente dentro da República de Weimar. Menos de cinco anos depois viria o governo nazista. O livro inicia com a saída de Biberkopf da prisão de Tegel, onde ficara por quatro anos após matar a amante.

A vida pós-prisão de Biberkopf é narrada de forma estupenda através de vários narradores e com o auxílio de notícias retiradas de jornais da época. Em montagens impressionistas, também são utilizados dados estatísticos, placas de rua, propagandas, canções da época, informações sobre tarifas. O personagem principal nada tem de especial — é um sujeito grande e forte que vive de biscates numa Alemanha empobrecida a qual não compreende e que é indiferente a ele. Biberkopf cumpriu sua pena e, na volta, tenta manter-se na linha.

Escura, grave e escrita em tom menor, a obra-prima de Döblin tem a característica de ser muito visual. Tanto que Rainer Werner Fassbinder reconstruiu-a minuciosamente no cinema em filme de 15 horas e 41 minutos. O filme — que também é excelente — é uma transposição COMPLETA e arrebatadora do livro. Vale a pena ver — aliás, além da biblioteca, é o que estou fazendo nestes dias …

Para ler Berlim Alexanderplatz há que ter atenção: apesar de muito claro e linear, o autor mistura as falas dos personagens com a narrativa e os pensamentos dos personagens. Com a leitura, fica cada vez mais fácil. Apesar de ter um personagem principal, Berlim Alexanderplatz é um irrepetível mosaico polifônico onde várias vozes e informações se cruzam para contar uma história do submundo da Berlim do final dos anos 20. Nada dá muito certo para Biberkopf, herói, símbolo e vítima da cidade, mas o livro de Döblin é uma espetacular lição de arte narrativa.

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Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Li Madame Bovary apenas uma vez e acho que não preciso de outra para colocar o livro nesta lista de indicações. Se o ser humano é uma coisa eternamente insatisfeita, aqui temos o microcosmo da infelicidade feminina e da desilusão romântica. Não vou contar em detalhes a história do livro, mas esta foi tão imitada e recontada que não guarda mais nenhuma novidade. É o romance que fundou o realismo em 1857 e, assim como a cabeça do Quixote estava cheia de romances de cavalaria, a de Emma Bovary estava lotada de romances sentimentais. Emma casa-se com o médico Charles Bovary, insípido e apaixonado por ela. O tédio insere-se de tal forma na relação que ela passa a detestar o marido. A progressão do tédio e sua transformação em desinteresse e depois ódio são contadas por um autor absolutamente impecável e no perfeito domínio de seus meios. Nada parece estar fora do lugar, nenhuma palavra. Dividido em três partes, como um concerto, demonstra como Emma permanece insatisfeita mesmo após o nascimento da filha e de seus apenas prometedores adultérios.

Na época em que foi publicado, Madame Bovary causou escândalo e foi julgado por obscenidade. Quando perguntaram a Flaubert quem era a protagonista que tinha sido descrita com tamanha perfeição e riqueza de detalhes, o autor respondeu ao tribunal com a célebre frase que diz tudo: “Madame Bovary c`est moi!”.

E era. Flaubert passou mais de uma década observando, apurando, polindo, reescrevendo e inaugurando o realismo na literatura. Flaubert foi absolvido no ridículo processo, mas não foi perdoado pelos puritanos, que não conseguiam admitir o tratamento cru dado ao tema do adultério e pelas críticas implícitas ao clero e à burguesia, ambos desprezados por Flaubert. Mas esqueçam o fundador do realismo, o processo e tudo o que cerca Bovary. O livro é antes de tudo um texto admirável, construído com arrebatador virtuosismo; um texto trabalhadíssimo onde não se notam sinais do suor do autor. Tudo flui, tudo ganha seu devido ritmo e todo detalhe jogado ali é significante e contribui para a narrativa. Talvez Madame Bovary seja a maior das aulas práticas de narração.

James Wood escreveu em Como funciona a ficção que “Tudo começa e tudo termina com Flaubert”. Discordo. A literatura moderna recebe notável impulso com Flaubert, mas já começara com Stendhal. E não termina no autor de Bovary, como diz a frase de efeito de Wood. Porém, para usar uma palavra que está na moda, Madame Bovary é um romance verdadeiramente incontornável.

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Orgulho e Preconceito, de Jane Austen

Orgulho e Preconceito, de Jane Austen

O teste final de um romance será a nossa afeição por ele, como é o teste de nossos amigos e de qualquer outra coisa que não possamos definir.

E. M. Forster – Aspectos do Romance

Publicado pela primeira vez em 1813, Orgulho e Preconceito é o romance mais popular de uma autora que viveu apenas 41 anos, tendo escrito apenas outros cinco, todos excelentes: Razão e Sensibilidade (1811), Mansfield Park (1814), Emma (1815) e os póstumos A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818).

É compreensível a insistência do cinema em adaptar os trabalhos de Austen. Numa camada mais superficial, sua literatura trata de temas simples e universais dentro do cenário da pacata sociedade rural pré-vitoriana. São romances de costumes. As moças estão sempre à procura do amor e de um bom casamento, enquanto os mais velhos pensam no dinheiro e nas conveniências. Todos os conflitos são aparentemente fúteis, mas aí é que entra a autora. Austen tem um tom delicioso para contar suas histórias. Ela não faz comédia, mas é engraçada; expõe dramas, mas não é trágica; é grave, porém leve. A ação é posta em movimento pela tensão variável entre poucos personagens e pela intervenção de outras. O romance não deixa transparecer seu esquema por trás de diálogos absolutamente fluentes e de uma narradora de tom zombeteiro. Num espaço rural limitado, as pessoas fazem visitas, vão a bailes, tomam chá, enganam umas às outras, armam situações e divagam sobre suas vidas e planos. O refinado humor da escritora se manifesta em tudo: ameniza os dramas, diverte-se com os personagens e faz humor.

Em Orgulho e Preconceito, a maior fonte de humor é a convivência doméstica do casal Bennet, pais das cinco irmãs casadouras. Expliquemos a história do romance sem prejudicar a leitura de quem não o conhece. Os personagens principais são Elizabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy. Nada mais típico e copiado: Darcy é um rico nobre e Elizabeth é a moça da pequena nobreza rural inglesa que parece apenas esperar a dádiva de um marido. Só parece. Pois Elisabeth é muito inteligente, crítica e unicamente a culpa em relação à família a faria casar com o primeiro que aparecesse. Ou nem isso, como veremos. Aliás, em sua família, apenas ela, sua irmã mais velha (Jane) e o ultrassarcático papai Bennet têm comportamentos razoáveis. A mãe só pensa em livrar-se das filhas e as outras irmãs — talvez com a exceção da moralista e puritana Mary — podem ser sintonizadas na mesma faixa da mãe. Para catalisar ainda mais a histeria familiar, há o fato de que a lei inglesa proibia que mulheres herdassem quaisquer patrimônios. Isto significa que, quando da morte de Mr. Bennet, a casa e a pequena propriedade familiar iria para um primo e as mulheres da família ficariam sem renda. Ora, você já conhece este enredo? Sim, claro, Austen foi imitadíssima, sem sucesso. Elizabeth e Mr. Darcy se conhecem e a primeira impressão é de antipatia mútua. Nos encontros seguintes, pouco a pouco, Darcy começa a ver em Elisabeth uma moça bem longe das simplesmente casadouras, reconhecendo um espírito crítico que lhe agrada inteiramente.  O Preconceito do título do romance é principalmente dele e é o primeiro a lentamente cair. Darcy chega a declarar seu amor, mas é rechaçado pelo Orgulho de Elizabeth. Como quase sempre, a personagem feminina é muito mais fascinante do que a masculina. Incompreendida ao impor dificuldades a um rico casamento, Elisabeth só encontra respaldo em seu pai, o sarcástico. Mr. Bennet é um excêntrico que se refugia em seus estudos para não ter de conviver com a mulher, mas que apoia incondicionalmente Elisabeth.

Além do conflito principal, Jane Austen traz uma galeria de personagens perfeitamente construídos — a tia hostil, a irmã fujona, Jane — que, acompanhados de seus draminhas, interferem com Darcy e Elisabeth. Os personagens nos proporcionam renovado prazer cada vez que aparecem. Seus diálogos nos conduzem naturalmente de um assunto a outro, fazendo de Orgulho e Preconceito um dos ápices da literatura mundial. Uma vez, ao ser perguntado sobre o maior casal da literatura, votei em Elisabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy, o que provocou certo desconforto em quem esperava Beatrice Portinari e Dante Alighieri, dentre tantos outros. Acharam que eu me utilizara de um lugar-comum. Mas que culpa eu tenho de Orgulho e Preconceito ser um daqueles casos em que qualidade e popularidade permaneceram juntas?

Austen nunca casou, sempre morou com os pais na casa acima (hoje sede do Museu Jane Austen, claro). Escrevia seus romances no quarto e tinha pudor de quando alguém abria a porta — escondia imediatamente seus cadernos. Sua vida não teve grandes acontecimentos e ela ficou para titia. Porém, se você ler por aí que ela teve um caso com sua irmã Cassandra, esqueça. Uma vez, Paulo Francis deu demasiada divulgação a um artigo da imprensa marrom inglesa: Was Jane Austen gay? Era uma mero chute, mas Francis descobriu que Jane dividira por décadas a mesma cama com Cassandra — ambas solteironas — e levou a coisa à sério. Ignorando que este era um costume da época, a ex-batata inglesa do Manhattan Connection fez uma festinha com seus amigos a respeito.

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Orlando, de Virginia Woolf

Orlando, de Virginia Woolf

Há o extraordinário Ao farol, há Mrs. Dalloway, há As Ondas, e Entre os atos. Há também o fantástico ensaio de Um teto todo seu, mas se tiver que escolher o melhor livro de Virginia Woolf, escolho a alegria de ler Orlando. Nem vou comparar a qualidade literária de um e outro livro de VW. Escolho Orlando pelo mais puro afeto. Pois não lembro de nada mais que seja ao mesmo tempo tão satisfatoriamente feérico, alegre e inteligente do que este romance digno de grandes paixões.

Orlando é um jovem aristocrata inglês da época elisabetana (1558-1603). Sacha, uma jovem russa, foi sua grande paixão e desilusão. Os encontros entre eles são puro tesão literário. Mas acontecem coisas a Orlando: ele algumas vezes dorme e avança no tempo. Então, no século XVIII, vai a Constantinopla como embaixador. Um dia, há uma revolta na cidade. E Orlando acorda mulher. É recolhida por ciganos e regressa a Inglaterra. O livro prossegue até Orlando chegar ao século XX, com 36 anos. E, mesmo desprovido da sua masculinidade, continua a amar Sacha. Virginia era casada com o grande Leonard Woolf, a quem amava incondicionalmente como amigo. Talvez o seu maior amor carnal tivesse sido Vita Sackville-West, a quem Orlando e sua indefinições é dedicado.

Como em Um teto todo seu, Virginia Woolf permanece dentro de um feminismo esclarecido, sem culpas ou ódio, apenas fazendo anotações sarcásticas e desencantadas sobre uma humanidade que despreza as mulheres. Os símbolos são fortes e elegantes, como quando Orlando retorna à Inglaterra e apenas os cães e os animais o(a) reconhecem. São os únicos a respeitarem Orlando sem se importar com seu novo sexo.

Mas não pensem Orlando como um livro centrado apenas na questão do feminino. Há as questões da sabedoria, do tempo, da felicidade e da permanência, representada pelo filho que ela tem com o estranho Marmaduke Bonthrop Shelmerdine. Quando lançado, Orlando fez imenso sucesso e permitiu a Virginia e Leonard comprarem o carro em que passeavam por Londres… Nenhuma surpresa, pois o livro é de um modernismo alegre,  repleto de poesia e humor. Apaixone-se por Orlando. Na minha opinião, é inevitável que isto ocorra logo nas primeira páginas.

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Breve romance do sonho, de Arthur Schnitzler

Breve romance do sonho, de Arthur Schnitzler

Pequena obra-prima do austríaco Schnitzler (1862-1931), a história de Breve Romance de Sonho (1926) é mais conhecida na versão de Stanley Kubrick, que o transformou no filme De Olhos Bem Fechados, título bastante adequado a este curioso livrinho de cem páginas. Não é uma história pânica, é a história de um pânico, de um enorme pânico. Sem revelar inteiramente a trama, vamos em frente.

O médico Fridolin e sua mulher, Albertine, são jovens, belos e bem sucedidos. Formam uma família exemplar, eles e sua querida filhinha. Então Albertina revela a seu marido uma fantasia sexual com amigo do passado, um quase-amor, e a vida de Fridolin vira pelo avesso. Ele passa a agir como num sonho, à procura de sexo e problemas. Para piorar, a mulher, no outro dia, conta-lhe um sonho sobre um bacanal em que o marido é condenado à morte. Freud era um dos admiradores de Schnitzler e deste novela absolutamente brilhante em expor o medo e a questão de até onde deve ser levada a intimidade dos casais. A partir de uma simples revelação, tudo o que sustinha a relação parece ter perdido subitamente o sentido. Paradoxalmente, o medo faz Fridolin perder qualquer receio da morte — ao contrário, ele parece procurá-la demorando-se em aventuras pelas ruas e criando fantasias de um retorno impossível à felicidade burguesa anterior.

Talvez as temáticas psicológicas propostas pelo autor vienense ainda no tempo de Freud possam estar cientificamente superadas, mas, na verdade, isso é o que menos importa. A arte de Schnitzler ao descrever as reações de Fridolin é arrebatadora, de um virtuosismo absoluto, que torna a leitura desta Traumnovelle uma das coisas mais fascinantes que conheço.

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O Anão, de Pär Lagerkvist

O Anão, de Pär Lagerkvist

Neste momento, há dois exemplares de O Anão à venda na Estante Virtual. A única edição nacional é da Civilização Brasileira, dos anos 70. Não é um livro grande, é um volume de 150 páginas. O valor mais barato praticado é de R$ 290,00; o mais caro, R$ 300,00. Não me surpreende. Tornou-se raro e é uma obra-prima daquelas que tem de ser levadas para a ilha deserta.

(Tenho certeza que meu exemplar está em minha biblioteca. Mas agora, sabedor do que ele vale, vou dar uma conferida).

O Anão, do sueco Pär Lagerkvist, é a história de Picolino, o bobo da corte de um príncipe italiano da Renascença. Sua função é a de divertir e ele a cumpre; só que ele odeia minuciosamente a todos os seus amos e quase todos são seus amos, claro. A repugnância que sente, a repulsa que Picolino dedica a todos é descrita de forma estupenda — com um foco narrativo que tentaremos explicar à frente — pelo Nobel de 1951, assim como também a forma como passa a influenciar os assuntos políticos da corte, sempre com a única e exclusiva intenção de prejudicar a todos. É um romance originalíssimo sobre o mal, a inveja e o desprezo.

A cidade-estado renascentista onde ocorre a ação não é clara, mas há um personagem chamado Bernardo, que é sem dúvida inspirado em Leonardo da Vinci, o que nos faz pensar no final do século XV. Também há referências a igrejas que se encontram na região de Florença. Ao mesmo tempo, o anão, narrador do romance, fala em criações como A Última Ceia e a Mona Lisa, a primeira delas pintada em Milão e segunda provavelmente em Florença. Além disso, o príncipe parece ser César Bórgia, que empregou Leonardo da Vinci como arquiteto militar… Desta forma, há muitas referências históricas dançando incontrolavelmente no contexto do romance.

Como disse, o anão é o narrador e tudo é contado retrospectivamente alguns minutos, horas ou semanas após a ocorrência dos fatos e antes dos seguintes. Tal artifício faz com que todos os acontecimentos sejam quentes, contados com emoção, mostrando O Anão planejar no papel seus próximos passos. Ou seja, a colocação do foco narrativo é muito inteligente, fazendo com que o leitor sinta a respiração do anão-monstro arquitetando suas vinganças, incorporando o mal e curtindo seu ódio de misantropo.

Ele ama a guerra, claro, e quando lhe pedem para cometer um crime, ele o expande sob o pretexto de beneficiar o príncipe… Todos mudam durante o romance, todos mudam na cabeça do narrador, menos ele, que se mantém coerente da primeira à última página. Curiosamente, é profundamente religioso, mas sua crença inclui um Deus que nunca perdoa. Mesmo impressionado com a ciência de Bernardo, sente repulsa pela busca que este empreende para chegar à verdade e ao âmago das coisas.

Por tudo isso e muito mais, este clássico de 1944 é de leitura obrigatória, o que justifica (ou não) seu preço (abusivo).

Grande Lagerkvist!!!

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Assim na Terra, de Luiz Sérgio Metz

Assim na Terra, de Luiz Sérgio Metz

Por Anahy Metz

Quando o João Perassolo, assessor de imprensa da extinta Cosac Naify, me escreveu pedindo um texto sobre o Assim na Terra, pensei: que estrada trilhar? Como não sou especialista na obra do autor do livro, Luiz Sérgio Metz (meu pai), decidi contar algumas histórias envolvendo a vida dele que me parecem explicar de onde surgiu a obra. Há um texto do pai, publicado pela Zero Hora no caderno de Cultura, que defende que todos deveríamos nascer com o propósito de desvendar uma lenda. Não lembro bem se era uma lenda apenas, ou lendas, mas a ideia é essa. Nascer para desvendar algo. Com essa referência, escrevo três lendas a seu respeito:

Lenda Um – infância em Santo Ângelo

Meu pai tem três irmãs, Lourdes, Carmen e Bernadete. Juntas elas me contaram essas histórias.

Ele não conseguia ficar na sala de aula. Na época do colégio, ele dava um jeito de fugir para brincar com os amigos pelas sangas de Santo Ângelo. Gostava de estar em contato com a natureza e enfiar os pés descalços no barro vermelho típico das Missões. Meu avô, Arlindo, era uma alemãozão brabo, artesão marceneiro. As tias me contaram que, para não apanhar quando chegasse em casa, as mães dos amigos lavavam a roupa do meu pai, davam jeito de secar e ele chegava em casa como se nada tivesse acontecido. A escola Onofre Pires não estava preparada para ele, me conta uma professora que lecionava lá na época em que o pai foi aluno. “Gostaria que ele tivesse sido meu aluno, as outras professoras não sabiam o que fazer com o Jaca”, disse ela.

Me parece que o surgimento do Assim na Terra está justamente aí. Nas brincadeiras de rua. Elas foram transferidas para a lida com a palavra. Da maneira como o livro foi concebido, penso que não é possível que alguém trabalhe de forma tão livre com o vocabulário e as ideias se não estiver brincando, guardadas as proporções. Sempre me chamou atenção quando passava as férias em Santo Ângelo, a maneira como as histórias eram contadas pelas minhas tias, o modo como falavam sobre as pessoas com as quais conviviam. Não era algo simples do cotidiano, mas sim como se estivessem se referindo a personagens de uma história, que era real, mas dita daquele jeito, virava literatura. Me lembro delas me contando do Sete Camisas e do Sete Sacolas, uma brincadeira genial com a linguagem e, de certa forma, uma criação de personagens que, para mim, são da ordem do fantástico. Meu pai internalizou tudo isso e transferiu essa vivência e aprendizado para o “fazer” da linguagem e da produção poética.

Elas me contaram, por exemplo, o causo (vou chamar aqui de causo por que minha relação com essa contação é afetiva, enfim) do dia em que o pai tinha que mostrar as tarefas de casa demandadas pelo colégio ao meu avô. De novo, para que não apanhasse do vô Arlindo, minhas tias deram um jeito para que ele cumprisse o dever antes que o caderno fosse averiguado. Sentaram-se os quatro na mesa, minhas tias e meu pai, que deveria estar lá pela segunda série. Uma das perguntas escrita aos garranchos no caderno era: o que se deve fazer antes do almoço? Imagino que a situação devia ser tensa. O vô já estava quase chegando e o meu pai larga o seguinte no papel: sicová e silavá. Sim, diante do não cumprimento do dever de casa, da possibilidade de levar uma sumanta de pau e ainda ficar de castigo, o pai subverte a linguagem e responde a um questionamento simples brincando, numa ironia fina, e experimentando com a linguagem.

Lenda Dois – os cavalos e a Adélia

O pai sonhava estar em contato com os cavalos. Não lembro quem me contou essa história, mas vamos a ela. Na época em que entrou para o Exército, ainda em Santo Ângelo, o Jaca deu um jeito de ser transferido para São Gabriel, onde havia Cavalaria e a possibilidade de aprender a lida com os cavalos. Era o único jeito que dispunha para se aproximar desse animal que o fascinava tanto. Conseguiu a transferência e finalmente iria estabelecer uma relação com o que antes era distante. Então minha avó Adélia caiu doente. Ficou acamada durante muito tempo, o que acarretou na retransferência do pai para Santo Ângelo. Imagino o rebuliço dentro de uma instituição como o Exército para conseguir tais encaminhamentos. É óbvio, após o retorno do pai, minha avó voltou a se sentir saudável. O amor pelos cavalos teve de esperar.

Lenda Três – o relatório e a criação do Uvizinho

Nos anos 70, o pai foi estudar Filosofia em Santa Maria. Acabou trocando para o Jornalismo. Aí novamente, história que minhas tias me contaram e para a qual existe a prova. Ao final do curso, meu pai tinha de fazer um estágio e, ao final do estágio, apresentar um relatório. Algo bem burocrático. Isso era necessário para que se formasse. Ao invés de fazer o que todo formando faz, o pai escreveu um texto sobre a relação que estabeleceu com os passarinhos que habitavam/visitavam o local onde acontecia o tal aprendizado prático. Deu apelidos aos passarinhos, para um deles, Uvizinho. Experimentou novamente com a linguagem, subvertendo a seriedade burocrática exigida por um relatório. Essas coisas não eram para ele. Para o pai, a vida em si era bem mais do que um relatório emparedado sobre os aprendizados técnicos no tal estágio. Esse texto acabou dando origem ao conto “Uguino, o inventor de passarinhos”, que foi publicado posteriormente no livro de contos “O primeiro e o segundo homem”. É claro que o pai foi reprovado e teve de cursar a cadeira novamente para conseguir o diploma. A Universidade não estava preparada para ele.

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Esperando Godot, de Samuel Beckett

Esperando Godot, de Samuel Beckett

O ar está cheio de nossos gritos, mas o hábito é uma grande surdina.
Samuel Beckett

Teatro vale? Mas é claro! No planejamento desta série, que não existe e que teria sido feito por mim enquanto caminhava pela rua, há também Macbeth ou A Tempestade, peças de estupenda qualidade literária escritas por Shakespeare. Beckett detestava aparecer e foi por este motivo que não foi receber o merecido Nobel em 1969. Ele preferiu ficar em casa. Uma frase atribuída a ele é a seguinte: “Eu nada tenho a dizer, mas só eu sei exprimi-lo”. Beckett teve o bom gosto de jamais explicar o significado simbólico de Esperando Godot, apenas veio à público para afirmar que Godot, não era deus (god).

Vladimir e Estragon são dois vagabundos de vaudeville que aguardam inutilmente a chega de Godot, uma coisa ou alguém que não se sabe o que ou quem é. Enquanto esperam, tagarelam a respeito de tudo, desde seus calçados, até a opção pelo suicídio e a existência de deus. Sem traços ideológicos, a peça não tem um enredo ou conflitos definidos e se passa ao lado de uma árvore. Pode-se dizer que se trata antes de um portal onde são vistos em sequência temas fundamentais da humanidade, vindo todos num ritmo alucinado de cinema mudo: o desejo de afeto, a necessidade de companhia, o ressentimento, o medo da velhice e da solidão, a salvação e o vazio. O destino em Beckett é um carro alegre e brincalhão que atropela indiferente (lembram da música?) personagens que procuram escapar dele divertindo-se de forma nada monótona. O que dizer da qualidade dos diálogos Allegro Scherzando do irlandês? Talvez devamos nos recolher como Beckett faria. Paremos aqui.

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Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift

Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift

Em uma crônica, o escritor Ernani Ssó voltou a falar sobre um de seus assuntos preferidos: o humor ou a falta de. Eu acho curioso que um dos livros mais engraçados já escritos — Viagens de Gulliver (1726, revisado em 1735) — tenha sido sequestrado pela literatura infantil como se dela fizesse exclusivamente parte. Nada contra as crianças, mas este livro de Swift não foi de modo nenhum apenas dedicada a elas. Assim como também não foi a Modesta Proposta, onde o autor explica com clareza exemplar como a Irlanda poderia livrar-se da fome… O que ocorre com Gulliver é curioso. Por exemplo, o personagem principal vai a uma terra onde só há intelectuais e o nome do país é Laputa, singela homenagem àqueles que estão sempre prontos a vender sua pena e ideias a quem lhes pagar melhor… Acho que nem todas as crianças conhecem tal característica, tão nossa.

A narrativa inicia com o naufrágio do navio onde Gulliver estava. Após o naufrágio, ele é arrastado para uma ilha chamada Lilliput. Os habitantes da ilha, que eram extremamente pequenos, estavam constantemente em guerra por futilidades. Foi através dos lilliputianos que Swift demonstrou a realidade inglesa e francesa da época. Na segunda parte, Gulliver conhece Brobdingnag. Em contraposição a Liliput, é uma terra de Gigantes e lá Gulliver percebe a enorme dimensão da mediocridade da sociedade inglesa. A terceira parte, na ilha flutuante de Laputa, é uma feroz crítica ao pensamento cientifico que não traz benefícios para a humanidade e aos intelectuais. Na última viagem, Gulliver encontra os Houyhnhm, uma raça de cavalos que possuía rara inteligência e bom senso, representando os ideais iluministas da razão. Os Houyhnhm temiam que alguém dos Yahoo, a raça imperfeita de “humanos”, movidas por instintos primitivos, se tornasse culta.

Swift foi o mais pessimista dos humoristas e um dos mais brilhantes deles. Foi sistematicamente trucidado por críticas a cada lançamento obra. Os críticos encararam seus trabalhos como resultantes de um misantropo, como se fossem parte da vingança de um homem amargurado e frustrado em suas ambições poéticas, políticas e eclesiásticas.

O fato de ser entendido pelas crianças — certamente de outro modo — apenas o engrandece. Agora, a forma como superou as adaptações e os abusos cometidos há quase 300 anos, chegando até nós, isso eu não imagino como possa ser explicado. A última tentativa foi um filme de Hollywood que vou te contar…

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O Mapeador de Ausências, de Mia Couto

O Mapeador de Ausências, de Mia Couto

Este é o segundo livro de minha biblioteca que vem direto de Moçambique. Ambos foram presentes do amigo e cliente da Bamboletras Jonas Fernando Pohlmann, que mora na capital Maputo. O primeiro foi este. E, se o primeiro foi ótimo, não sei nem bem o que dizer desta, sem exagero, obra-prima de Mia Couto.

Quando recebi o volume, pensei que se tratasse de um livro de memórias. Bem, ele é, mas de memórias ficcionais trabalhadas dentro de um romance de grande fôlego.

(…) tenho demasiada história, sofro de um excesso de passado. Quero livrar-me desse tempo que não me deixa existir.
Mia Couto

Mia Couto (1955) é António Emílio Leite Couto. A razão de tal pseudônimo é bem simples e curiosa – desde criança, Couto amava os gatos. Foi com tal pseudônimo que o autor construiu uma extensa obra que inclui poesia, contos, romances e crônicas.

Podemos dizer que O Mapeador de Ausências são memórias ficcionais trabalhadas dentro de um romance de grande fôlego. A ação decorre na Moçambique de antes e de depois da descolonização e conta a história de Diogo Santiago, escritor e poeta de Maputo, que viaja após muitos anos à sua terra natal, a cidade da Beira, às vésperas da chegada do ciclone Idai, que efetivamente arrasou a cidade em 2019. Diogo vai até Beira com a finalidade de receber uma homenagem, mas também pretende descobrir detalhes acerca da história de seu pai, também poeta, que morrera na cidade ainda nos tempos coloniais. Trata-se de um regresso à juventude de Diogo.

A trama de O Mapeador de Ausências não se completa até a última página. À medida que vamos lendo o livro, as lacunas que Mia deixa abertas vão sendo preenchidas com conteúdos muitas vezes inesperados.

Na Beira, Diogo conhece Liana, que lhe repassa um verdadeiro dossiê da PIDE (a terrível Polícia Internacional e de Defesa do Estado, espécie de DOPS português) a respeito das atividades “subversivas” do pai de Diogo. Mia Couto vai empilhando documentos — inacreditáveis, tal a qualidade de sua prosa — e narrativas que vão e voltam no tempo.

Diogo é branco, filho de Adriano Santiago – que, além de poeta, foi jornalista — e de Virgínia, uma daquelas mães cheias de amor e senso prático. Do pai, ele recorda as duas viagens a Inhaminga — local de inacreditáveis massacres cometidos pela tropa colonial –, a perseguição e prisão pela PIDE e, sobretudo o amor pela poesia. Na Beira, fica sabendo da misteriosa Ermelinda (ou Almalinda), quem sabe uma das (muitas) amantes do pai, reencontra o criado Benedito (agora dirigente da FRELIMO, Frente de Libertação de Moçambique), o inspetor da PIDE Óscar Campos, a triste Camila Sarmento, o farmacêutico Natalino Fernandes e a poderosa Maniara.

“É uma homenagem à cidade da Beira, que é mãe desta história”, disse Mia. “É um romance que se desenvolve a partir da minha memória sobre minha cidade”. O Mapeador mostra um poeta que vai à procura da sua adolescência e percebe que aquilo que lhe é presente nasce da ausência de muitos. “A vida aqui é outra guerra. A gente chega a ter vergonha de ser um sobrevivente”, diz um coveiro no livro.

No cenário, há não apenas a chegada do ciclone que destruiu Beira, mas a destruição de Inhaminga, cidade que foi praticamente riscada do mapa durante a guerra civil moçambicana. As descrições de Mia sobre o que restou da cidade são soberbas.

Seja pela violência dos colonizadores, seja pelos desastres naturais — tanta gente morreu em Moçambique e sabemos tão pouco a respeito –, este melancólico livro de Mia Couto está plenamente justificado. Tudo é catalisado pela arte com que Mia Couto conta sua excelente trama. Moçambique é a morte onipresente, e também a alegria, a saudade, deus, o mal, o destino.

Recomendo fortemente.

Meu exemplar tem a assinatura de Mia Couto.

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Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex

Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex

Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, foi eleito o melhor livro-reportagem pela Associação Paulista de Críticos de Arte em 2013 e o segundo melhor pelos jurados do Prêmio Jabuti de 2014. O tema do livro é o Hospital Colônia de Barbacena (MG), manicômio onde milhares de pacientes foram internados por problemas muitas vezes sem diagnóstico. Ali, eram internadas tanto pessoas com problemas mentais reais, como alcoolistas, homossexuais, prostitutas, meninas engravidadas por patrões, moças que haviam perdido a virgindade antes de casarem, ex-amantes de políticos, inimigos políticos da elite local, vítimas de estupros, pessoas contestadoras, filhos indesejados e muitos negros, claro. No Colônia, eram mal alimentados, passavam seus dias em pátios abertos — nus ou em andrajos –, sofriam com o frio e muitas vezes eram torturados, violentados e mortos. O hospital, na verdade, servia para estocar pessoas não que cometeram crimes, mas que a sociedade ou alguém não queria ver ou conviver. Não há exagero no termo holocausto, ainda mais se considerarmos que morreram 60 mil pessoas no Colônia, dos anos 20 até o início dos anos 80.

O trabalho de Arbex é muito poderoso e completo. Fartamente documentado e com muitas fotos, a jornalista não somente conta a história do hospital como relata casos isolados de sobreviventes — e de suas situações atuais — e de internos que sucumbiram. Também traz depoimentos de psiquiatras e autoridades, muitos dos quais trabalharam no local. Através de um texto elegante e informativo, vemos a enorme violência cometida contra pessoas que eram obrigadas e beber água em esgotos, a dormiram sobre palha — pois as camas ocupavam excessivo espaço — e a viverem como não merecem os animais.

Os mortos? Ora, com o decorrer doa anos e como o índice de mortalidade era altíssimo, o cemitério ao lado já tinha mais espaço. Então, os funcionários criaram um lucrativo negócio. Passaram a vender os corpos para as Faculdades de Medicina do país. Quando a procura era baixa, os corpos eram dissolvidos em ácido.

A narrativa é tão dantesca que a imaginação do mais sádico dos escritores dificilmente alcançaria. O psiquiatra italiano Franco Basaglia, que teve a chance de visitar o Colônia em 1979, comparou o local a um campo de concentração nazista e exigiu seu fechamento imediato. O fechamento do Colônia ocorreu durante a década de 1980.

Além de serem forçados a trabalhar manualmente e dormir sobre palha ou folhas, os internos ainda precisavam lidar com estupros e com as torturas físicas e psicológicas que eram frequentes dentro do Hospital. Muitos pacientes eram submetidos à terapia de choque e à duchas frias sem nenhuma razão aparente. A tortura era aplicada com o propósito de servir apenas como castigo ou devido à perseguições.

Devido a superpopulação, havia falta de roupas e os internos andavam parcialmente ou completamente nus, expostos às baixas temperaturas de Barbacena durante a noite. Em uma tentativa de sobreviver, muitas vezes buscavam aquecer-se dormindo abraçados em círculos concêntricos, trocando periodicamente de lugar a fim de colocar as pessoas das bordas no meio. Ainda assim, muitos morreram por hipotermia.

Além da comida insuficiente, não existia um sistema de água encanada. Muitos banhavam-se ou bebiam de um esgoto a céu aberto. Para proteger seus bebês — que eram separados das mães após algum determinado tempo — grávidas cobriam a si mesmas com fezes, evitando que funcionários e outros pacientes se aproximassem. Doentes eram abandonados em seus leitos para morrer. Ele ficavam cobertos de moscas. Nos telhados, urubus esperavam e muitos mortos foram comidos por eles.

Crianças que cresceram dentro do Colônia jamais aprenderam a falar, ler ou escrever e contavam com a ajuda de outros internos para as atividades mais básicas.

Em 1961, o fotógrafo Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro, retratou a realidade dentro do Hospital, trazendo a público o que ocorria no interior dos muros do Colônia. A reportagem causou impacto, mas foi esquecida.

Em 1979, o jornalista Hiram Firmino, publicou diversas reportagens intituladas Nos porões da loucura, que revelavam a verdadeira loucura que se passava no Hospital Colônia e Helvécio Ratton realizou um filme sobre o mesmo tema intitulado Em Nome da Razão.

Mas quem acabou com tudo isso foram os médicos e suas associações.

Nosso país é assim: extremamente violento, um lugar onde os pobres são indesejados e tão mal informados que votam para eleger seus próprios algozes. O Colônia é apenas uma hipérbole, é o paroxismo da realidade que vemos nas ruas.

Recomendo muito.

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O Drible, de Sérgio Rodrigues

O Drible, de Sérgio Rodrigues

Vou iniciar a resenha pelo final, falando de meu enorme entusiasmo com o livro após a leitura. O Drible é um grande livro. Nunca é leve, mas o final é arrebatador de um modo shakespeareano. Sim, sei do tamanho do elogio.

Vamos a ele. Neto tem por volta de cinquenta anos, trabalha como revisor e é filho de Murilo Filho, célebre cronista esportivo carioca dos anos 60 e 70, que foi amigo de gente como Nelson Rodrigues, Mario Filho, João Saldanha, etc. Neto tem uma relação difícil com o pai, tanto que não se veem há décadas.

Também chamado de Dickens de Campos Sales por seu estilo de escrita e por ser torcedor do América-RJ, time de Campos Sales, Murilo era reverenciado em público, mas odiado em casa. Além da péssima e violenta relação com o filho, sua esposa Elvira jamais suportou sua vida de mulherengo autoritário. O pai sempre ignorou as vontades do filho único e o desprezou sem piedade. As desavenças dos dois começaram na infância e foram se prolongando até a idade adulta, quando, enfim, ambos cortaram relações. Neto nunca obteve a contrapartida de seu amor pelo pai e, agora que o velho passou a pedir por sua presença, espera um pedido de desculpas.

Como disse, um dia, ele recebe uma ligação de Murilo. O velho diz que está morrendo e que deseja voltar a vê-lo. Neto então viaja para o interior do estado do Rio onde o pai mora com o caseiro e sua mulher. Tudo o que Murilo faz é evitar os assuntos pessoais e familiares, desviando o assunto para o futebol. De início, Neto pensa que o homem está gagá, mas a maravilhosa descrição de drible de Pelé em Mazurkiewicz, por exemplo, e a rápida disposição de mudar de assunto quando a conversa fica mais séria, negam a demência.

Murilo então pede ao filho que leia um livro seu, o último que escreveu e que se chama Porque Peralvo não jogou a Copa e, em meio a história do jogador que nasceu na mesma cidade que Murilo, Neto irá descobrir algumas coisas de seu passado e de sua família.

O Drible mistura vozes narrativas e personagens ficcionais a personagens reais. O pai é amigo do grande mundo das celebridades cariocas da época. O filho é absolutamente anônimo e participava de uma dupla pop chamada Kopo Deleche & Kopo Derrum. Neto é tarado por música e faz constantes referências a seriados dos anos 70 — Perdidos no Espaço e O Túnel do Tempo, principalmente — enquanto Murilo Filho é 100% futebolista. De modo totalmente diverso, ambos são passadistas. Só falam de seus assuntos prediletos, preferindo ocultar seus dramas de uma forma muito masculina, sofrendo com eles internamente.

Escrito com um notável trabalho de linguagem, O Drible tem final decididamente grandioso com uma orquestração que leva a verdade a ser espreitada. A inesperada e incrível verdade. Um outro drible.

O livro foi finalista do Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Portugal Telecom. Acho que não ganhou nenhum deles. É inacreditável, mas há que considerar que existe muito preconceito de intelectuais contra o futebol. Pobres deles.

Recomendo fortemente!

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Contra Amazon, de Jorge Carrión

Contra Amazon, de Jorge Carrión

O título italiano deste ótimo livro de ensaios é bem mais justo: Contra Amazon. Dezessete textos em defesa das livrarias, das bibliotecas e da leitura. Sim, pois o ensaio Contra Amazon ocupa apenas 17 das 304 páginas do livro. Pode ser que seja o melhor dos ensaios, mas há outros igualmente extraordinários.

Contra Amazon é um livro altamente inteligente, preciso e estimulante. Fala mal da Amazon, mas se dedica muito mais ao elogio de bibliotecas e de pequenas livrarias. Fala mal da compra de livros pela internet e valoriza o contato com o livreiro, a surpresa e a humanidade.

São dezessete textos — alguns menos longos, outros ensaios literários de grande profundidade — que servem, como escreve o próprio autor, para compreender que “a realidade não existe se a linguagem não a precede. E a viagem não tem sentido se você não encontrar palavras”. Os livros, livrarias, bibliotecas, livreiros são espaços de palavras, encontro e paz.

Escreve Jorge Carrion em seu manifesto Contra Amazon, “ainda não somos capazes de lembrar com a mesma precisão o que lemos no papel e o que lemos no e-book”. Aqui está uma das chaves da importância deste livro. Também é curiosa a vida do autor: ele viaja por Seul, Genebra, Tóquio, Capri, Miami, Londres, etc., sempre com uma desculpa livresca. Sempre procurando por pistas de autores, livrarias, livreiros e bibliotecas.

Dentre os ensaios há duas maravilhosas entrevistas — uma com Alberto Manguel e outra com Luigi Amara.

Contra Amazon, por ser uma afronta a um gigante da Internet — que não é uma livraria, mas um hipermercado –, propõe que sejamos inteligentes e evitemos a lógica do monstro de Jeff Bezos em benefício de nossa própria experiência nas livrarias. Com aquelas livrarias que podem, por exemplo, nos oferecer uma indicação de leitura. Isso traz à tona as ideias de proximidade e lentidão, de conversa e contato. De tempo expandido, enfim. Uma vez que ninguém pode competir com uma biblioteca que nos proporciona experiências únicas, personalizadas e inesquecíveis.

“Conviver com uma biblioteca pessoal significa saber que você não se rende, que sempre terá pela frente menos livros lidos do que livros para ler, que os livros são encadeamento de significados, contextos mutantes, perguntas que mudam de entonação e respostas. Uma biblioteca precisa ser heterodoxa: só a combinação de elementos diversos, de relações problemáticas, pode conduzir a um pensamento próprio.”
Jorge Carrión, em Contra Amazon.

A maravilhosa felicidade de ler um livro físico – novo ou usado — é o tema deste livro. E aqui concordamos fortemente com as posições éticas colocada pelo autor em defesa do velho comércio de livros.

O livro brasileiro termina com dois textos extras de Carrión sobre a pandemia e com alguns depoimentos de livreiros brasileiros. Neste ponto, a coisa torna-se altamente desigual, pois há textos ótimos, textos ruins e outros que parecem não ter entendido o proposito do livro e sua profundidade.

Recomendo fortemente!

O catalão Jorge Carrión

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Os Supridores, de José Falero

Os Supridores, de José Falero

O primeiro livro de José Falero esteve várias vezes na minha mochila para ser lido, mas sempre aparecia um cliente na Bamboletras pedindo Vila Sapo e lamentando-se de que não tinha mais… Então, eu abria a mochila e entregava o meu. Um dia, me disseram que tinha simplesmente acabado. Fim. Acabou. E eu fiquei sem conhecer Falero.

Agora, quando chegou este volume da Todavia, eu decidi que o primeiro era meu. Botei meu nome no exemplar e comecei imediatamente a lê-lo. Não me arrependi.

Pedro e Marques trabalham como supridores num supermercado. Supridores são aqueles caras que tratam de preencher as gôndolas vazias, repondo silenciosamente os produtos. São pessoas com mínimas perspectivas de ascensão, mesmo dentro da estrutura da empresa. Pedro percebe claramente o fato. Ele é muito inteligente e dá explicações absolutamente incríveis — em seus termos — e lógicas para o que acontece com eles. Por que eles são o que são? Quais direitos têm ou deveriam ter? Quem, no supermercado, é dono do quê? Ele passa a ser o mentor de Marques, falando uma linguagem cheia de analogias e contextualizações originais. E propõe a Marques um plano para virarem o jogo trabalhando como traficantes num nicho pouco explorado pelos donos do tráfico. A coisa funciona. Bem, funciona por um tempo.

Falero é um tremendo narrador, um contador de histórias de primeira linha, alguém que muda da linguagem culta para a língua falada na periferia porto-alegrense com total naturalidade. Sabe criar clima e tensão. O ritmo do livro é veloz, os diálogos são ótimos, o encadeamento entre cenas engraçadas e dramáticas não para nunca, fazendo com que tenhamos dificuldades em largar o livro sem ler o próximo capítulo.

O autor também evita os clichês, percorrendo caminhos pouco óbvios. Tudo indica para uma história de ascensão e queda financeira. Sim, mas não é apenas isso: há todo o cenário da desconhecida vida nas vilas de Porto Alegre – com seus rituais de concessões e proibições — e humor, muito humor. O humor catalisa a ação, dando força, velocidade e interesse às cenas. Os Supridores não é apenas um romance sobre jovens pobres e espertos atrás de grana como também um livro grudento e engraçado. O capítulo 17, O mais bem-guardado dos segredos, é um exemplo disso. Nele, o humor e um fato trágico para o esquema entrelaçam-se perfeitamente, comprovando que Falero é um narrador que sabe que os contrastes são fundamentais.

Claro que o momento final é triste, mas o percurso até a tragédia é o que interessa. Então, Os Supridores é um livro trepidante e de boa história, narrado por uma voz original e muito brasileira. Para finalizar, tenho que sublinhar a boa observação da editora Todavia, que pegou um excelente autor logo em seu segundo pulo.

Recomendo!

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A Descoberta da Escrita (Minha Luta 5), de Karl Ove Knausgård

A Descoberta da Escrita (Minha Luta 5), de Karl Ove Knausgård

A Descoberta da Escrita é o quinto volume da série autobiográfica Minha Luta, de Karl Ove Knausgård.

(A propósito, a Companhia das Letras acaba de anunciar a publicação do sexto e último volume, chamado O Fim, para a segunda metade deste mês. O novo livro tem mais de mil páginas, enquanto que este que acabo de ler tem 628… Sim, os livros foram crescendo).

A Descoberta da Escrita é o melhor que li até agora. Com texto permanentemente intenso e envolvente, Knausgård conta ao mesmo tempo a história de sua luta para tornar-se escritor, sua vida amorosa e familiar e as tentativas de livrar-se de certas tendências absolutamente delinquentes e autodestrutivas que se manifestavam cada vez que bebia demais, o que ocorria com frequência.

Sem spoilers, digo que aos 20 anos Knausgård ingressou numa oficina literária como o mais jovem membro. Seus textos era rejeitados ou ignorados. A bebida e suas atitudes não melhoravam muito as coisas. Participar daquele grupo era uma grande honra para um jovem ambicioso. Ele se juntava a um grupo de escritores mais velhos, alguns já publicados, em uma classe de elite, mas… A ideia de uma luta travada internamente ganha corpo neste romance. É um aprendizado angustiante e tenso, cheio de leituras e tentativas a maioria das vezes fracassadas. Todos os escritores em algum momento pensam que são uma fraude, que o talento que pensam possuir é apenas uma ilusão — provavelmente porque, para a maioria, é a realidade. É raro um jovem escritor não se perguntar se o inferno da mediocridade tomará conta de sua vida definitivamente.

Este volume nos leva dos 19 anos até a dissolução de seu primeiro casamento, 14 anos depois. Trata de bebedeiras, constrangimento social, das bandas de rock das quais participou e do bloqueio criativo do escritor, sua única, constante e real ambição.

Ao mesmo tempo em que procura sua voz, temos toda a vida amorosa de Karl Ove. Bastante movimentado é seu amor por Tonje, uma doce figura pela qual ele é apaixonado. Como disse, ele absolutamente ama Tonje, mesmo de seu modo egoísta que deixa tudo de lado para tentar escrever. Aliás, Knausgård é o escritor que fez o egoísmo trabalhar a seu favor.

O limbo que A Descoberta da Escrita nos demonstra não é uma exclusividade de Karl Ove, ele é familiar para todos nós. É aquele período da juventude em que tudo parece uma questão de vida ou morte, e um enorme período de tempo é gasto querendo, planejando e esperando sexo, sensações ou inspiração literária.

Como sempre, temos as melhores descrições da natureza — efetivamente lindas — e as narrativas impecáveis de casos amorosos que dão mais ou menos certo, mais ou menos errado. E que nos encantam.

Um grande livro!

Recomendo!

Tonje e Karl Ove

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A vida pela frente, de Émile Ajar (Romain Gary)

A vida pela frente, de Émile Ajar (Romain Gary)

Do Resenha de Bolso.

Lançado na França em 1975, A vida pela frente é um romance ácido sobre temas contemporâneos e ainda necessários, como eutanásia e a disputa entre judeus e árabes. Escrito por Romain Gary sob o pseudônimo Émile Ajar, a história de um garoto muçulmano criado por uma senhora judia é um espelho partido da Paris pós-1968.

Vivendo em um prédio sem muitos franceses, rodeado de africanos, Mohammed precisa cuidar de Madame Rosa, a prostituta que o criou junto a outros meninos. Sobrevivente dos campos de concentração, ela tem pavor de ser diagnosticada com câncer. Entretanto, está com uma doença misteriosa que vai lhe deixando cada vez mais prostrada. Mas não é câncer, isso o doutor Katz, preocupadíssimo, garante. Sempre aplicando pequenos golpes e se refugiando nas zonas cinzentas da cidade, que chama de “aquilo ali” como se coubesse na palma da mão, o garoto não gosta de “causar pena nas pessoas”, já que é “um filósofo”, mas ainda assim nos conta suas misérias. E se a linguagem de Ajar/Gary é límpida, o mesmo não pode ser dito sobre as peripécias enfrentadas por seus personagens. Tipos verdadeiramente autênticos, quase saltando diante do leitor, eles parecem lutar para não serem apagados e sucumbir diante do pão que os diabos de todas as religiões amassaram.

É dessa fragilidade social, que transforma todos os homens em bichos e os obriga a se tornarem o que precisam ser, não o que estão destinados a ser, que nasce o nervo principal deste romance singular. Ao conseguirmos, concomitantemente, embarcar nos delírios de Madame Rosa e entender a interpretação absurda que Momo faz da realidade, cumpre-se o objetivo do livro: indagar no que a espécie humana se transformou.

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A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante

A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante


Este é o primeiro livro que leio de Elena Ferrante. Certo dia, dentro de uma livraria, estive com a Série Napolitana e com a série de Karl Ove Knausgård, Minha Luta, disponíveis na minha frente. Resolvi que ia ler apenas uma das duas. Então, percorri as três primeiras páginas de A Amiga Genial e três primeiras de A Morte do Pai. Não lembro por qual motivo, escolhi o norueguês e só agora começo a preencher a lacuna cultural contemporânea de não ter lido Ferrante. Ela é excelente!

E, nossa, gruda na gente! Trata-se de uma narradora poderosa. Texto fluido e sedutor, capítulos curtos — a gente pensa que dá tempo de ler mais um e mais um e vai indo–, muitos fatos em poucas linhas e quase nenhuma frase ensaística, demonstrando que a história, as situações e a estrutura arranham mais a realidade do que as teorizações intermináveis.

Ferrante é uma excelente analista das famílias, de como elas influenciam as crianças e adolescentes, jogando-as em qualquer direção. Às vezes, elas obedecem, em outras vão no exato sentido que os pais tentam evitar.

O livro é narrado por Giovanna. Logo da cara, ela, aos 12 anos, filha de professores bem-sucedidos, ouve seu admirado e amado pai dizer à mãe como a filha ficou “feia”. Tornou-se como Vittoria, sua irmã com quem rompeu relações há muito tempo, uma mulher na qual “feiura e o maldade coincidiam perfeitamente”. Morena, desajeitada, de seios grandes, ela era bem diferente de sua mãe, esguia e elegante. Ela fica marcada com a acusação do pai. Então, quer conhecer a tia cuja aparência deve comparar com a sua. Sua jornada a leva para o inferno napolitano de onde seus pais vieram originalmente, o Pascone, um bairro pobre cheio de gente que fala berrando e se relaciona brigando.

O processo de amadurecimento da menina é muito bem relatado. É o desabrochar de uma mulher, mas é mais: é o entendimento de como a vida é complexa, contraditória e dura.

E há os reflexos do machismo. A postura dos meninos é para humilhar — “basta colocar um travesseiro sobre seu rosto e você será uma ótima foda”, um deles diz sobre ela, tendo primeiro elogiado seu seios e traseiro. No dia seguinte, quando o mesmo garoto tenta flertar, ela lhe enfia um lápis afiado em seu braço, acidentalmente, é claro — como se sua tia tivesse se infiltrado nela. A direção da escola a chama. Ela mente que foi por acaso e seu pai, presente na reunião, termina o serviço seduzindo a diretora com um discurso polido e elogioso. Ela se desmancha e esquece a punição.

Todos, mas principalmente os homens, podem ser mentirosos mas são apaixonantes e ela admira Roberto, um duplo de Giovanna — jovem, intelectual e educado. Certamente ele é diferente. Bem…

Aos poucos, Giovanna que descobre que os adultos de sua vida mentem para ela. E que ela, ficando adulta, também começa a contar suas lorotas. Também aprende que o conteúdo das mentiras é menos curioso do que seus estilos — exagero, omissão, justificativa, foco — e que variam no prazer e na dor que proporcionam.

Ferrante é ótima e conta a história da adolescente Giovanna com segurança. É a Dickens de nosso tempo, fazendo com que, sem apelação ou golpes baixos, a gente queira saber o que acontecerá depois. Se possível imediatamente.

Recomendo.

Pobreza estilo Napoli, uma imagem do Pascone | https://www.giovanniminervini.it/un_altrove_imprevedibile-r5898

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O Herói do Nosso Tempo, de Mikhail Liérmontov

O Herói do Nosso Tempo, de Mikhail Liérmontov

Ah, a literatura russa do século XIX… Quando jovem, eu achava que ela era um fenômeno que se limitava a indivíduos como Dostoiévski, Púchkin, Gógol, Tolstói, Tchékhov, Turguêniev — e já eram muitos para um país semifeudal, pobre e lotado de analfabetos e escravos! — mas depois fui adiante com Oblómov e este O herói do nosso tempo (Martins Fontes, 221 páginas). E, olha, que livros, que literatura!

(Bem, os argentinos também têm uma penca de escritores fantásticos vá saber por quê).

Liérmontov foi um dezembrista. Ocorrida na Rússia em 1825, a Revolta Dezembrista desejava a supressão do regime servil, o fim do feudalismo, a implantação de uma democracia representativa na Rússia czarista, programas de incentivo às artes e às ciências e aproximação do país à Europa. O czar Nicolai I respondeu às reivindicações com repressão implacável, censura, tortura e o fim das atividades científicas. E, desta forma bolsonarista, venceu, sufocando a revolta. Tal tragédia foi respondida por um clima de indiferença a todo o sentido de dever, justiça e verdade, além de um desdém cínico pelo pensamento e pela dignidade do homem. É claro que isto foi impulsionado pela novidade do romantismo, que estava em seu início.

Por que iniciei minha resenha assim? Ora, porque tudo isso está incrustrado no personagem principal do livro, Pietchórin. O Herói do Nosso Tempo é não somente o retrato desse herói entediado, mas também desse tempo em que as dissidências foram esmagadas e só resta o imobilismo geral ou a exibição cínica do desinteresse. É claro que os czaristas achavam o livro desprezível.

A obra-prima de Mikhail Liérmontov é um dos mais influentes e importantes romances russos. Ele é composto por cinco seções, todas girando em torno de Pietchórin. Ele é um dos personagens mais ambíguos da literatura mundial: mente, engana e manipula os outros para obter o que deseja – e quando consegue já não sabe mais se quer aquilo.

O Herói do Nosso Tempo não é o habitual calhamaço russo. Tem pouco mais de 200 páginas e vem com um pequeno elenco de personagens. Como disse, o livro é dividido em cinco partes, sempre com o mesmo personagem principal, o citado Pietchórin. Com ele, Liérmontov talvez tenha criado o primeiro anti-herói da literatura. Num primeiro momento, Liérmontov faz com que o cínico e sem raízes Pietchórin aproxime-se de nós por meio das reminiscências de um veterano capitão que servia no Cáucaso. Em seguida, o conhecemos rápida e diretamente e, finalmente, por meio de seus próprios diários, que acabam abruptamente, como se o autor tivesse simplesmente largado a caneta.

Ou levado um tiro. A vida de Liérmontov não ficou muito distante da de seu personagem: afinal, o autor também serviu como oficial no Cáucaso, entrou em encrencas românticas e perdeu a vida em um duelo. Aliás, provavelmente, este duelo tenha sido provocado por ordem de Nicolau I. No momento do tiro, Liérmontov ergueu a arma e atirou para o alto, porém, seu “desafeto” cumpriu a ordem do czar e o autor morreu aos 27 anos com um tiro à queima-roupa, tendo deixado este estranho e belo romance e uma importante obra poética que todo russo conhece.

Pietchórin é certamente uma versão endurecida de Liérmontov. Era alguém que poderia manipular os corações das mulheres aparentemente à vontade, ou que poderia alegremente ir a um duelo fraudulento. “E daí? Se eu morrer, morrerei! A perda para o mundo não será grande. Sim, já estou bastante entediado comigo mesmo. Sou como um homem que está bocejando em um baile”.

Pietchórin é uma grande criação. Ele é por demais atraente e envolvente. Pode ter características lamentáveis ​​e é uma ameaça a si mesmo e àqueles ao seu redor. É desagradável muitas vezes. “Talvez alguns leitores queiram saber minha opinião sobre o caráter de Pietchórin. Minha resposta é o título deste livro. ‘É, eis uma ironia ferina!’, — dirão. Não sei”. Essas duas últimas palavras resumem lindamente a ambiguidade do livro. O próprio prefácio de Liérmontov diz que o livro é “um retrato composto das falhas de toda a nossa geração em seu desenvolvimento completo” e também usa a palavra “desagradável” para descrever Pietchórin.

O Herói do Nosso Tempo é narrado em primeira pessoa por três personagens diferentes, sendo que o último é o próprio Pietchórin escrevendo um diário. Tudo é digno de interesse, e gostei muito da sensação estética de ver o que vai se revelando para compor o personagem à medida que os capítulos vão passando. O livro é de arrebatador. Não preciso nem dizer que, como os russos de sua época, Liérmontov foi um mestre.

Mikhail Liérmontov (1814-1841)

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