Vivências de um pobre comentarista na cultura gaúcha

Vivências de um pobre comentarista na cultura gaúcha

gato 5Neste final de ano, por alguma razão 100% inédita, recebi alguns convites para falar sobre o espaço da crítica literária e musical em nosso estado, o RS. Há muito o que dizer e, quando dos convites, a primeira coisa que me veio à mente foram as caras. Escrever sobre os escritores e músicos de nossa província é ver caras feias, é fazer perigar amizades ou perdê-las. Há aqueles que reagem com elegância e merecem ser citados — casos do falecido escritor Moacyr Scliar, de Luiz Antonio Assis Brasil, de Sergio Faraco e do maestro Tobias Volkmann, entre outros — e os que jamais citaria neste texto, pois não gosto nem de caras viradas nem de cumprimentar o ar.

Domingo passado fui ao cinema. Estava sentado, aguardando o início de uma sessão e uma pessoa que entrou e procurava lugar me negou o cumprimento. Fiquei pensando no motivo e penso ter descoberto. O não cumprimento não se deveu a uma crítica negativa, mas à ausência de crítica após ter recebido seu livro. Ou seja, na província, as suscetibilidades e o ressentimento podem ser catalisados por coisas muito pequenas. Há toda uma cultura de compadrio que tem de ser respeitada. Eu elogio o teu livro, tu elogias o meu. Eu amo de paixão tua interpretação e tu dizes que sou um gênio.

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É desagradável ser criticado negativamente, claro. Porém, quando alguém escreve um livro ou vai a um palco, passa do espaço privado ao público e pode, sim, receber críticas orais ou por escrito. Porém, no RS, quem quer ter um milhão de amigos deve silenciar a parte ruim, abrir um sorriso, suspirar embevecido e tratar de achar algo de bom para dizer. É o que o escritor ou músico esperam. E, nossa, como sofrem! O escritor normalmente ganha a vida em outra atividade, comete suas fantasias com o maior esforço e pensa que merece ser sempre elogiado por sua esforçada colaboração na construção do edifício da cultura. O músico não tem apoio, luta com dificuldades e depois vem um raio de um arrogante e destrói seu esforço e idealismo em dois parágrafos.

Tem também aquele curioso escritor que colaborava comigo, mas que apareceu na capa do Segundo Caderno da ZH e que passou a me descartar até no Facebook– coisa que a RBS não lhe pediu, obviamente.

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Há uma função na atividade crítica. No mínimo, o crítico deve ser uma pessoa com grande vivência em sua área de atuação. É óbvio que deve gostar dela. Nunca vi, por exemplo, um crítico de cinema que odiasse os filmes ou que considerasse um sofrimento passar duas horas fechado numa sala escura. Nunca vi um que não se interessasse por roteiro, encenação, filmagem e montagem. Ou seja, o crítico deve ser minimamente qualificado de forma a poder orientar quem se interessa por lê-lo. Pelo conteúdo do que escreve, o público imediatamente nota se a crítica lhe serve ou não, se aquele cara tem algo a lhe dizer ou se é melhor deixar de lado.

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Existe uma poética na crítica. O leitor leu um livro, sentiu o livro, gostou ou não gostou. Porém, é comum acontecer de ele não saber de seus motivos e o crítico o ajuda a dizer: olha, eu gostei (ou não) por causa disso. O livro pode crescer para o leitor. A critica é o desmonte parcial de uma máquina. Às vezes contextualiza a obra, às vezes dá uma explicação tão surpreendente que acaba abrindo portas jamais visitadas. A crítica também pode ser útil ao escritor, porque ele escreveu páginas e páginas em impulso artístico e pode ocorrer de ele desconhecer suas razões. O crítico, deste modo, iluminaria zonas das quais o autor não tem plena consciência.

Mas dá muita confusão exercer um espaço crítico numa província como a nossa. Incluo-me nela, é claro, faço parte da sociedade gaúcha, e não tenho a pretensão de ser um antídoto ao paroquialismo, ao bairrismo, ao regionalismo orgulhoso e tolo. Tudo o que faço é tristemente insuficiente. Quando escrevo uma resenha favorável, sou saudado exageradamente. Quando faço uma resenha simples e nada profunda, não li o livro como deveria. Porém, quando critico o livro pode acontecer qualquer coisa.

gato 1A moda é o autor colocar em seu perfil do Facebook algo mais ou menos assim. “Este cara (eu) disse isso do meu livro. Vocês concordam com ele?”. Bem, como resultado, seus amigos me dão uma saraivada de golpes, muitos abaixo da cintura. Já fui chamado de tudo. Acostumei-me com as ofensas, mas o que me fascina é quando me chamam  de recalcado. Sei lá, gosto de palavras com vários significados. Só que, como dirá o Ernani Ssó num texto que sairá amanhã no Sul21, denominar-me assim não melhora nem piora uma crítica. O que piora ou melhora uma crítica é o nível dos argumentos – e chamar um crítico de recalcado nem é argumento, é só um ataque pessoal, uma tentativa óbvia de desacreditar o crítico. Veja, me chamar de recalcado é como me chamar de feio. Não faz a menor diferença na discussão, já que não estamos num concurso de beleza.

Houve um “artista” que me chamou de recalcado no título de um direito de resposta que concedi. O cara me chamou de “recalcado e formatado”. Explico o “formatado”: minhas opiniões não seriam minhas, mas sim de outros, pessoas maquiavélicas que já são inimigas do cara e que me assoprariam o que devo escrever. Pura paranoia. Com este artifício, o autor afirma ser impossível que aquela opinião seja minha… E ainda me acusou de usar imagens de divulgação sem permissão… Ah, tem outra ofensa que acho sensacional: “tu não tens trajetória”. Houve outro que passou a ameaçar minha namorada em função do que escrevo. É um show de horrores.

Idealmente, os assuntos da arte deveriam ser discutidos com serenidade, com a possibilidade de discordâncias. De cordiais discordâncias. A opção pelo ataque ao crítico revela insegurança — coisa que só admiramos em poucos autores –, narcisismo — coisa que só admiramos em Oscar Wilde — e infantilidade — coisas que só admiramos na literatura infantil… Sabem? Eu acho que temos que ser tolerantes com quem leu o livro até o fim. Mas pedir humildade a um autor provinciano é foda. Esse papo de exigir somente as criticas “construtivas” ou de estigmatizar o interlocutor me parece muito aparentado do período Médici, Brasil Ame-o ou Deixe-o. “Se tu não gostas, por que escreveste a respeito?”, ouvi de outro. Ah, outra coisa que me exigem é dar um tom solene à crítica. Nada de humor ou ironia!

Enquanto isso, a literatura e a música ficam lá, num canto, esperando que passe a briga de casal. E não passa.

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Homenagem ao Clássico Desconhecido

Homenagem ao Clássico Desconhecido

Não, não pensei muito. Peguei a escada e procurei, a partir da letra A, os livros de que gosto muito e sobre os quais o mundo silencia. Encontrei vários. A “santa” tarefa de resgate de minhas obras-primas pessoais não me tomou muito tempo e é uma lista arbitrária que só vai de A a M, pois me apavorei com o número de livros sobre a mesa quando retirei da estante as folhas de papel A4 que formam a 19ª obra. Os de M a Z virão depois, sei lá quando. Meu critério é o descritério. Por exemplo, deixei de fora Hamsun, por considerá-lo “famoso demais” e incluí George Eliot. Vá entender. Alguns dos insuficientes textos explicativos que acompanham cada obra foram retirados de orelhas dos livros; outros, de obras sobre literatura; porém a maioria saiu perigosamente de minha cabeça.

Norberto Martini (10)

1. O Homem Amoroso, de Luiz Antonio Assis Brasil. Mercado Aberto, 1986, 118 p.: O elegante Assis Brasil, ex-violoncelista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, sai do sério ao compor de forma irônica e naturalista esta novela que descreve as vivências de um músico erudito gaúcho, durante o “milagre brasileiro” dos anos 70 e seu neo-ufanismo. Para encontrar, só em sebos.

2. Extinção, de Thomas Bernhard. Companhia das Letras, 2000, 476 p.: Bernhard talvez venha a tornar-se inevitavelmente um clássico, se já não o é. É um enorme romancista e dramaturgo austríaco que costuma despejar seu ódio contra a pequena burguesia e os intelectuais de seu país. Destaco a notável descrição de sua família, realizada em duzentas paginas, enquanto o narrador observa uma (apenas uma) foto que retrata, se não me engano, apenas duas ou três pessoas. Livro novo, fácil de achar.

3. Noturno do Chile, de Roberto Bolaño. Companhia das Letras, 2004, 118 p.: O narrador, testemunha do tempo que precede o assalto ao poder pelo general Pinochet e seus sequazes, repassa a sua vida num monólogo febril, reconstruindo dois momentos especiais da vida chilena – antes e depois do golpe. Este narrador, Lacroix, é um religioso ainda aferrado aos dogmas da Igreja, que não dispensa a sua batina surrada, usando-a como se fosse uma bandeira. Fácil de achar, assim como Os Detetives Selvagens.

4. Opiniones de un Payaso, de Heinrich Böll. Barral Editores, 1974, 244 p.: Hans Scheiner é um palhaço de circo que perde todos os seus bens durante o pós-guerra. Trata-se de um ateu muito propenso à melancolia e à monogamia. Mas seus problemas não terminam aí: sua mulher Maria o abandona por outro homem, um católico, com o qual se identifica. Por trás desta catástrofe emocional e material, pode-se ver um homem íntegro, que suporta sua queda com sarcasmo.Um grande livro. À venda na Internet por 16 Euros.

5. Fique Quieta, Por Favor, de Raymond Carver. Rocco, 1988, 240 p.: Grande contista americano homenageado por Robert Altman em Short Cuts . Este livro, assim como a coletânea Short Cuts, também da Rocco, é mais uma prova da boa influência de Tchékhov sobre a literatura atual. Vá ao sebo.

6. A História Maravilhosa de Peter Schlemihl, de Adelbert von Chamisso. Estação Liberdade, 1989, 111 p.: A história curiosíssima do homem que se vê marginalizado e perseguido após vender sua sombra ao Diabo. Até hoje a obra sofre todo o tipo de interpretações, mas o próprio autor nega a alegoria e critica aqueles que preocupam-se em saber o que significa a sombra. Este genial livrinho foi há pouco reeditado.

7. Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado. Difel, 1977, 181 p.: Acanhada e deixando-se sempre levar pelas circunstâncias, a prima Biela é boazinha e vive conscientemente uma vida de renúncias. A comparação entre a prima Biela e a Felicité de Un Coeur Simple de Flaubert não obscurece a força da linguagem barroca do Autran Dourado em plena forma de 1964. Milhares de reedições.

8. Middlemarch, de George Eliot. Record, 1998, 877 p.: Desde Shakespeare e Jane Austen, ninguém criara personagens tão inesquecivelmente vivos. É o romance da vida frustrada de Dorothea, que casa-se com o pseudo-intelectual Causabon por um ideal de cultura e tenta desfazer seu casamento e refazer sua vida. O romance é um espetacular panorama das atividades e da moral de uma pequena cidade inglesa de 1830. Canta a tua aldeia e serás universal… George Eliot é o pseudônimo masculino de Mary Ann Evans. Só encontrável em sebos, parece-me.

9. Contos Completos, de Sergio Faraco. L&PM, 1995, 304 p.: Faraco é, disparado, o melhor contista vivo brasileiro e isto não é pouco. O livro foi reeditado no ano passado. Trata-se de um artesão tão econômico quanto rigoroso com as palavras. Sua capacidade de apresentar personagens com um grau de densidade psicológica inversamente proporcional à secura do ambiente, assim como sua maestria na invenção de enredos o tornam obrigatório. Recém relançado.

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