Ana Cristina Cesar aos 60

Publicado em 3 de junho de 2012 no Sul21.

Quando Ana Cristina Cesar cometeu suicídio em 1983, aos 31 anos, atirando-se pela janela do apartamento dos pais, na rua Tonelero, em Copacabana, foi um pranto geral no mundo das letras. Era compreensível. Tratava-se de um raríssimo e precioso talento emergente na acanhada literatura e poesia brasileiras, era parte importante do futuro. Muito culta e bonita, Ana, nascida há 60 anos, em 2 de junho de 1952, recebeu as mais surpreendentes homenagens post mortem. Além dos obituários e do lamento de seus leitores, apareceu uma fila de ex-namorados e conhecidos escrevendo enlouquecidas colunas. Pessoas que conviveram com ela, que a viram uma ou outra vez, que beberam algo em sua companhia, que a beijaram ou ficaram com ela, muita gente desejou registrar o quanto gostava e admirava Ana C. Porém, o que mais estarrecia eram os citados namorados. Inacreditáveis, pareciam dispostos a uma competição de visceralidade e mau gosto, da qual estava livre Marcos Augusto Gonçalves e outros poucos. Desejavam comprovar sua (ou uma) intimidade com detalhes e mais detalhes. Tal fato é tanto mais espantoso quando comparado com a enorme elegância da poetisa.

Sinto ciúmes desse cigarro que você fuma
Tão distraidamente.

Tudo foi muito rápido para Ana Cristina Cesar. Aos seis anos, antes mesmo de ser alfabetizada, ditava poemas para sua mãe escrever. Em 1969, aos 17 anos, foi para Londres num intercâmbio, voltando apaixonada pela literatura de língua inglesa, e principalmente pelas obras de Katherine Mansfield, Sylvia Plath e Emily Dickinson. Aos 19, começou a cursar Letras na PUC-RJ, além de traduzir e escrever. Tornou-se uma espécie de musa da geração mimeógrafo, que distribuía poesia em folhas de ofício grampeadas, saídas das máquinas das universidades. Logo Ana começou a ser publicada pelos jornais alternativos e revistas e para depois aparecer em edições independentes. Seus livros, sempre pequenos, tinham o poder de multiplicar-se e podiam ser encontrados não somente no Rio de Janeiro. Enquanto isso, a autora fazia mestrado em comunicação na UFRJ e em tradução na Inglaterra. No ano de 1980, publicou o livro de crítica Literatura não é documento e, em 1982, A teus pés (1982), que reunia três livros independentes anteriormente publicados: Luvas de pelica, Correspondência completa e Cenas de Abril. A teus pés, publicado pela Brasiliense em 1982, é, na verdade, uma série de fragmentos que misturam poesia, cartas e diários em linguagem confessional. É leitura obrigatória em diversos concursos vestibulares pelo país.

Percebo que o lance de notações tipo agendinha tem a ver com certa briga entre fora e dentro, registro e psicologia, cenografia e interioridade. Registrar com um muxoxo de quem não pudesse derramar. Mas para não ficar neo-realista só vale se a tensão passar. Tem mais aí? Ai, um batonzinho.

Ana teve outros volumes publicados após sua morte em 1983. Há Critica e tradução, um volume de 464 páginas lançado pela Ática em 1999 e que é outra reunião de livros menores — Escritos no Rio, Escritos da Inglaterra e Literatura não é documento —  e que inclui uma tradução anotada do célebre conto Bliss, de Katherine Mansfield. Sobre traduções, ela escreveu:

A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não. (…) Eu acho que, no meu texto e acho que em poesia em geral, não existe entrelinha. (…) Existe a linha mesmo, o verso mesmo. O que é uma entrelinha? Você está buscando o quê? O que não está ali?

Apesar do fato de a palavra “marginal” parecer adequar-se muito pouco a esta mulher do século XIX, disfarçada em século XX, o periférico acompanha-a mesmo, hoje, 29 anos após sua morte. Ao lado dos estudos acadêmicos e livros a ela dedicados, além dos artigos publicados em revistas e jornais, uma consulta ao Google fará com que nos deparemos com algo muito mais forte e vivo: um número anormal de blogs que ora lhe são dedicados inteiramente ou com posts onde ela é citada com devoção. Nestes posts, o lado confessional de sua literatura é explorado nos mínimos detalhes.

Noite de Natal

Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
trepar aos 45 anos
Entretanto sou moça
estreando um bico fino que anda feio,
pisa mais que deve,
me leva indesejável pra perto das
botas pretas
pudera

(A teus pés, pág. 62)

Ana Cristina, ou Ana C., como é mais conhecida, não deixou bilhete de despedida. Deixou poesias. Sabe-se pouco dos motivos que a levaram ao suicídio. Ela recém voltara de Londres, estava deprimida, tentara matar-se dias antes afogando-se no mar, em episódio mal descrito pelos biógrafos, até chegar ao ato final no apartamento dos pais. Enquanto sua literatura desenha uma rarefeita fronteira entre o ficcional e o autobiográfico, suas fotos mostram uma moça muito sorridente. Quem conheceu Ana, fala de uma pessoa de poucas palavras, mas de expressão clara, cristalina. Heloísa Buarque de Hollanda foi uma das primeiras ensaístas a reconhecer o valor de seus trabalhos, “eles possuem um traço diferente, extremamente pessoal, que não dá para classificar de modo nenhum como marginália ou algo parecido”.

Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio”. (Ana Cristina Cesar, Inéditos e Dispersos).

Seus leitores procuram textos que se relacionem com seu suicídio. Mas qualquer certeza a esse respeito é fantasia. Ana desenvolveu alguns de seus melhores trabalhos ao traduzir as poesias de Sylvia Plath (1932-1963), outra poetisa, outra suicida. Um destino muito igual numa idade muito igual o dessas duas mulheres que não conseguiram viver, mas expressaram sua dor da forma mais pura possível.

Soneto

Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento

Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno maior
Ou é um lapso sutil?

Ainda provocando paixões por seus textos e poemas, esta filha da poesia marginal dos anos 70 traz e atualiza  dois gêneros usualmente considerados literatura menor: a carta e o diário. São retalhos nostálgicos — quase sempre sucintos, sem beletrismo e adjetivação — que usam o coloquial, mas também exploram de forma muito original a interação entre o sujeito lírico e seu leitor implícito.

Tenho uma folha branca

e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite
tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.


Inéditos e Dispersos é outra coletânea que a Brasiliense publicou no início dos 80. Há passagens esplêndidas, mas o livro é muito irregular, deixando claras a limpeza de suas gavetas e papéis. Até bilhetes foram publicados. Ana certamente cortaria muita coisa deste livro.

Ao lado dos textos que estão sendo publicados neste fim de semana nos jornais e sites, está marcada para o próximo dia 6 de junho, às 20h, o Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, uma homenagem a Ana Cristina Cesar. Ana 60 Cesar será um bate-papo entre o poeta Armando Freitas Filho, que foi grande amigo de Ana C., e a escritora e professora de teoria crítica da cultura da UFRJ Heloisa Buarque de Hollanda, de quem a homenageada foi aluna. O evento, aberto ao público, será gratuito, com distribuição de senhas a partir das 19h.

Olho muito tempo o corpo de um poema

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

Ausência

Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Não há falta na ausência.
Ausência é um estar em mim.
E sinto-a tão pegada, aconchegada nos meus braços,
Que rio e danço e invento exclamações alegres,
Porque a ausência, esta ausência assimilada,
Ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade – Com o pensamento em Ana Cristina)