Para abordar uma contista tão rica e surpreendente como Lucia Berlin, vamos fazer antes uma rápida excursão à origem do conto e a sua definição, se é que podemos defini-lo.
Determinar o que exatamente separa um conto de formatos ficcionais mais longos é problemático. A definição clássica foi dada por Poe e é bem simples: “O conto é aquilo que pode ser lido em uma sessão de leitura ou, digamos, em uma sentada”. A interpretação disto pode ser problemática hoje em dia, porque talvez, nos nossos dias, a duração de “uma sentada” possa ser mais curta do que era na época de Poe…
Então, os contos têm tamanhos vagamente definidos. Mas há pessoas que demarcam os gêneros literários em termos de contagem de palavras, como se a diferença entre uma crônica, um conto, uma novela ou um romance pudesse ser definida pelo número de palavras. Eu acho que as definições devem partir do contexto, mas tem gente que insiste em contar palavras e que diz que um conto deve ter menos de 7.500 delas.
Histórias mais longas que não podem ser chamadas de romances são às vezes consideradas “novelas”, que são normalmente publicadas como os contos, em coleções dentro de um só volume ou em pequenos livros com só uma delas.
Mas como o conto surgiu?
Vamos a uma brevíssima história. Os precursores do conto foram as lendas, os contos populares, os de fadas, as fábulas e as anedotas. Claro que estas histórias curtas existiam principalmente na forma oral e assim iam sendo transmitidas de uma geração para outra. Um grande número destes contos é encontrado na literatura antiga, desde os épicos indianos como o Ramayana e o Mahabharata até os épicos homéricos, como a Ilíada e a Odisseia. As 1001 Noites, compiladas pela primeira vez provavelmente no século VIII, também é um repositório de contos folclóricos do Oriente Médio.
Na Europa, a tradição oral de contar histórias passou para o papel no início do século XIV, principalmente com os Contos de Canterbury, de Chaucer, e o Decamerão, de Boccaccio. Ambos os livros são compostos de contos individuais — que variam de histórias de humor rasgado até ficções literárias mais elaboradas — inseridos em uma narrativa mais ampla, aliás como já eram As 1001 Noites.
Na década de 1690, os contos de fadas tradicionais começaram a ser publicados por Charles Perrault. Logo depois, apareceu a primeira tradução moderna para o francês de As 1001 Noites, a qual teria enorme influência nos contos europeus.
As primeiras coleções de contos, próximas do que hoje se conhece, apareceram entre 1810 e 1830 em vários países ao mesmo tempo. Foi o momento em que o conto começou a abandonar a necessidade de passar uma mensagem, uma moral. Notem, por exemplo, que o livro de contos de Cervantes, escrito em 1613, chama-se Novelas Exemplares.
Então veio a virada de Poe
O grande transformador do conto foi Edgar Allan Poe. Ele criou o conto psicológico, o de terror e deu um passo gigantesco na direção do que seria a literatura policial, que depois adquiriu enorme prestígio e tradição. Mas o principal é que ele iniciou a fase em que o contista narra duas histórias ao mesmo tempo. Não há mais uma moral, mas há uma segunda história subterrânea que vai sendo contada sob a superfície. Esta segunda história não é explicitada. A segunda história contada está escondida sob a primeira, que é a que você lê.
Esta tese não é minha, é do brilhante escritor argentino Ricardo Piglia: ele assegura que o segredo de um conto bem escrito é que, na realidade, todo conto conta duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em saber cifrar a segunda história nos interstícios da primeira. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de forma elíptica e fragmentária. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta nos salta aos olhos. Às vezes, o que parece supérfluo para uma história é fundamental para a outra.
Vou dar um exemplo para que fique mais claro. Acho que todos conhecem o conto Missa do Galo, de Machado de Assis, um dos contos mais perfeitos que conheço. A história da superfície mostra o narrador, Nogueira, relembrando uma noite da sua juventude e a conversa que teve com uma mulher mais velha, D. Conceição. Ironicamente, mestre Machado inicia o conto com a seguinte frase: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. Esta história é tão, mas tão perfeita, que o narrador nos confessa logo de cara que não entendeu a segunda história. E ele passa a nos encher de detalhes e diálogos. Vemos claramente, sob nossos olhos, o desenrolar da segunda história, contada muito aos pedaços e sutilmente, a de como vive D. Conceição, a de como seu marido a abandona em casa, a de sua falta de afeto, os motivos que ela tinha para tentar seduzir o menino.
Outra coisa é a maestria de Machado. Ele não apenas demonstra tudo isso, como fica claro o momento em que D. Conceição para de tentar, pois, certamente pouco conhecedora da arte da sedução, ela erra a mão e deixa passar o momento. E Machado nos demonstra tudo isso sem frases como “Conceição cansou e desistiu do menino”.
Depois, Joyce inverteu este modelo. Em Dublinenses, parece que a história 2 comenta a 1, às vezes a ataca ou duvida dela.
Lucia Berlin usa e abusa destes artifícios e de outros. Por exemplo, no conto que abre Manual da Faxineira, Lavanderia Angel`s, ela conta duas histórias de superfície. Ambas acontecem dentro de lavanderias self-services, dessas de moedas, uma em Nova York e outra em Albuquerque, no Novo México. As duas histórias estão separadas não somente geográfica como temporalmente. E ambas contam uma terceira história, a da própria autora, mãe de 4 filhos antes dos 30 anos, sempre lavando muita roupa, sempre devaneando muito e causando problemas, como o que ela causa ao apertar botões e reprogramar máquinas que estão lavando as roupas de outrem. Uma mulher inteligente, muito bonita, mas que parece um tanto inadequada ao mundo.
Agora, somos obrigados a falar da biografia de Lucia Berlin porque ela sempre escreveu sobre si mesma.
(continua com uma pequena biografia de Lucia Berlin)
As mortes de Cervantes e Shakespeare ocorreram no mesmo dia e no mesmo ano, em 23 de abril de 1616. A questão é complicada e está explicada aqui, no segundo parágrafo. A fim de homenagear estes dois imensos nomes da literatura de todos os tempos, em 1995, a XXVIII Conferência Geral da UNESCO escolheu o dia 23 de abril como o Dia Internacional do Livro e dos Direitos Autorais. Na data, fica também homenageado outro escritor falecido naquela popularíssima data de 1616: o historiador peruano Inca Garcilaso de la Vega, dito o “príncipe dos escritores do novo mundo”. O 23 de abril é tão bem frequentado que William Wordsworth, grande poeta romântico inglês, também a escolheu para morrer, só que de 1850.
Cervantes é um fundador. Talvez seja isto que nos emocione tanto quando folheamos as páginas do Quixote ou das Novelas Exemplares. Virginia Woolf escreveu em seu diário que sempre derramava algumas lágrimas quando pegava seu exemplar do Quixote. Eu a entendo. Não sou fácil para chorar, mas as páginas finais do grande romance foram lidas com extrema dificuldade. As letras movimentavam-se levemente e às vezes sumiam enquanto eu fungava. Para quem ama a literatura, parece “forte demais” tomar contato com o primeiro romance efetivamente moderno, por mais arrevesado que ele nos pareça hoje. Talvez ele tenha sido um dos primeiros livros escritos contra outros, trata-se de uma obra escrita com raiva e graça, muita graça. As últimas edições brasileiras do Dom Quixote e das Novelas, publicadas pela recém falecida Cosac Naify, receberam tratamento digno da comicidade e profundidade cervantinas através do tradutor Ernani Ssó. Ninguém mais precisa ler as principais obras de Cervantes naqueles antigos e terríveis textos como os que eu li quando adolescente.
Uma biografia sensacional, ou no mínimo, muito particular
Sabe-se bastante da vida pós-Quixote de Miguel de Cervantes Saavedra. Antes disso, sua biografia apresenta largos períodos sem notícias. A começar por seu próprio nascimento. Há indícios de que nasceu no seu onomástico, em 29 de setembro. O que é certo é que foi batizado em 9 de outubro de 1547. Também existem dúvidas sobre onde teria estudado e se. Sabe-se que era alguém muito indisciplinado, agitado e boêmio, sempre envolvido em querelas pessoais e atrás de guerras onde pudesse lutar a fim de ganhar algum.
Na verdade, sua vida foi espetacular. Após um duelo onde feriu seu oponente, fugiu em 1569 para onde hoje é a Itália, a fim de servir como soldado. Na Batalha de Lepanto, em 1571, lutando ao lado da Santa Liga (República de Veneza, Reino de Espanha, Cavaleiros de Malta e Estados Pontifícios), perdeu os movimentos da mão esquerda — ou a toda a mão, segundo alguns autores. Em 1575, participou da expedição contra Túnis. Preso por um corsário árabe, passou cinco anos numa prisão em Argel, junto com um de seus irmãos. Fugiu 4 vezes: na primeira foi apanhado e posto em um confinamento mais severo. Então, sua família reuniu algum dinheiro para a fiança, mas o dinheiro apenas foi suficiente para resgatar um dos irmãos e Cervantes preferiu dar a liberdade a Rodrigo. Então, libertado, este contratou uma embarcação para libertar Miguel, mas acabou novamente preso. Na terceira tentativa, Cervantes foi encontrado dias depois e permaneceu fechado por 5 meses no banheiro da cela… Na quarta vez, tentou subornar um mouro para facilitar-lhe a fuga, mas foi delatado. Como pena, o Sultão de Argel o mandou para uma prisão em Constantinopla. Mas, antes da viagem, dois frades espanhóis organizaram uma expedição à África e conseguiram, com auxilio da família Cervantes, pagar seu resgate.
Voltou às guerras entre 1581 e 1583, na expedição que Filipe mandou aos Açores, contra o prior do Crato, que pretendia o trono de Portugal. Lá, dirigiu galanteios a uma dama portuguesa 22 anos mais jovem. Tiveram uma filha, D. Isabel de Saavedra. Só após o nascimento, em 1584, é que Cervantes desposou legitimamente D. Catarina de Palácios Salazar y Vosnediano, dama de linhagem fidalga.
De volta à Espanha, escreveu cerca de 30 peças de teatro e seu primeiro livro, A Galateia (1585). Sem êxito e cometendo todos os excessos retóricos que depois condenaria em Dom Quixote, passou a trabalhar como coletor de impostos. Em 1597, foi preso de novo, desta vez por dívidas. Tudo indica que foi na prisão que começou escrever a primeira parte do Quixote.
O Quixote
El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é muito diferente de tudo o que se tinha publicado até então. O romance fala mal dos romances de cavalaria, a moda da época, com suas histórias totalmente fantasiosas de grandes feitos. Os cavaleiros, super-heróis da Idade Média, saíam pelo mundo corrigindo toda injustiça. Enfrentavam sozinhos — e venciam — exércitos tão grandes que fariam corar de vergonha a Beatrix Kiddo de Kill Bill, assim como Batman e Rambo. Para atacar tais livros – pois uma ideia genial pode nascer de um desejo de vingança – , Cervantes criou um grande leitor dos romances de cavalaria: um fantasioso, louco e esquálido herói, cheio de boas e nobres intenções, um personagem que fará rir a todos, desde os literatos até a lírica donzela da Andaluzia que só sonhava com barões e nobres.
Acompanha-o Sancho Pança, uma figura baixa, gorda e realista, que passa o tempo todo tecendo críticas ao sublime e ridículo Cavaleiro da Triste Figura. Com seu cavalo Rocinante e a a musa Dulcineia, estava criado o grupo central do mais engraçado e melancólico dos romances.
(…) dom Quixote perguntou a Sancho o que o tinha levado a chamá-lo “Cavaleiro da Triste Figura”, justamente agora.
— Foi porque — respondeu Sancho — estive olhando-o um instante, à luz do círio daquele pobre coitado, e realmente vossa mercê tem a pior figura que vi nos últimos tempos. Deve ser por causa do cansaço deste combate, ou pela falta dos molares. (Trad. de Ernani Ssó)
A fantasia do Quixote forma gloriosa e minuciosa antítese com o ultrarrealismo de Sancho Pança. É na oposição de Quixote ao senso comum de Sancho que está boa parte da riqueza do livro. A incrível capacidade do Quixote de adaptar-se às péssimas circunstâncias e de manter seu idealismo acima da vulgaridade, leva-nos a acreditar que haja outro senso a lutar contra o marasmo e o comum. Mas não pensem em Sancho como um personagem desagradável, politicamente correto ou como “um representante da vulgaridade”, nada disso. Ele é engraçado e inteligente, estando sempre disposto a piadas e a citar oportunos adágios populares ou outros, criados por Cervantes. É um realista.
O livro, publicado em 1605, fez estrondoso sucesso. Tanto que recebeu uma continuação apócrifa, assinada por um inexistente Alonso Fernández de Avellaneda, o qual demonstrou boas doses de incompreensão dos personagens cervantinos e que não podia ser comparado ao original em qualidade. Então, em 1615, Cervantes publicou o segundo tomo, onde o falso livro de Quixote é citado no prólogo.
Valha-me Deus, com quanta gana deves estar esperando agora este prólogo, leitor ilustre ou mesmo plebeu, pensando encontrar nele vinganças, reprimendas e vitupérios contra o autor do segundo Dom Quixote, digo, contra aquele que dizem que foi concebido em Tordesilhas e nasceu em Tarragona! Na verdade não vou te dar esta alegria, pois, ainda que os agravos despertem a cólera nos corações mais humildes, no meu esta regra há de padecer exceção. Tu gostarias que eu o chamasse de burro, de mentecapto e de insolente, mas isso não me passa pelo pensamento: que o pecado dele seja seu castigo, que coma o pão que amassou e faça bom proveito. (Trad. de Ernani Ssó)
Se o primeiro volume já era extraordinário, a continuação é ainda melhor e, ao final deste livro, o autor mata Dom Quixote para que sejam evitados novos abusos e continuações.
Cervantes é o fundador do romance moderno. No Quixote há personagens que representam ideias e as situações falam por si, sem a necessidade de maiores explicações do autor. Atualmente, talvez o livro soe verboso e com longos trechos desnecessários, mas ainda não foi inventado símbolo melhor do espírito idealista e aventureiro do ser humano.
Lembro que durante o Fórum Social Mundial de 2005 falou-se muito no Quixote como representante de uma utopia. Isto é um grande erro que foi apontado por José Saramago, presente ao evento. Utopia (palavra do latim moderno, com origem no grego oú, “não”, e no grego tópos, ‘lugar’), segundo Thomas Morus, é um local e uma situação ideais; isto é, refere-se a um país e a um governo imaginário que proporciona excelentes condições de vida a um povo feliz. Ironicamente, também significa não-lugar ou lugar nenhum… Esta definição não possui nada em comum com a história do Engenhoso Fidalgo, um personagem que aplicava a fantasia para transcender a circunstâncias imediatas e que era destituído de projetos para si ou, melhor dizendo, que refazia seu projeto cada vez que pensava ou via algo que o interessasse. Também desiludia-se e “reiludia-se” com extrema velocidade…
Entre as duas partes de Dom Quixote, aparecem o genial Novelas exemplares (1613), conjunto de doze narrativas breves de caráter didático e moral que podem servir de introdução ao mundo cervantino. Cervantes se ufanava, no prólogo, de ter sido o primeiro a escrever, em castelhano, novelas ao estilo italiano:
A isso se aplicou meu engenho, a isso me leva minha vocação, e penso, o que é verdade, que sou o primeiro que escreveu novelas em língua castelhana, porque as muitas que andam impressas nela são todas traduzidas de línguas estrangeiras, e estas são de minha autoria, não imitadas nem furtadas; meu talento as criou e minha pena as pariu, e vão crescendo nos braços da imprensa. (Trad. de Ernani Ssó)
Elas são habitualmente agrupadas em duas séries: as de caráter idealista e as de caráter realista. Também escreveu Viagem de Parnaso (1614) e peças teatrais como Oito comédias e oito entremezes novos nunca antes representados (1615). Porém, seu drama mais popular hoje, A Numancia, além de O trato de Argel, ficaram inéditos até ao final do século XVIII. Um ano depois de sua morte aparece a novela Os trabalhos de Persiles e Sigismunda.
Mas o que interessa em sua obra é o Quixote e as Novelas Exemplares. Como dissemos, o êxito de Dom Quixote foi colossal. A glória e a fama que Cervantes obteve em vida foi imensa para a época. No primeiro ano esgotaram-se quatro edições. O pequeno mundo literário espanhol estava em êxtase. Todos queriam conhecer Cervantes, todos o felicitavam: o conde de Lemos proclamava-se, orgulhoso, seu amigo e mecenas. Muitos estrangeiros — como os franceses que vieram na comitiva do embaixador da França à corte de Espanha para tratar de assuntos de estado — solicitavam, como graça excepcional, o favor de serem apresentados a ele. Era a glória, aquela que ele antes procurara nos acampamentos e nos teatros.
Cervantes reformou o gosto de um público que, após sua obra-prima, nunca mais foi o mesmo. Ele fez ruir um mundo numa risada colossal. E um novo caos surgiu.
No final de novembro, a Penguin-Companhia das Letras publicará uma nova tradução de Dom Quixote. Os dois volumes — o primeiro publicado originalmente em 1605 e o segundo em 1615 — virão dentro de uma caixa da coleção Penguin Classics. Na última terça-feira, o Sul21 entrevistou o tradutor Ernani Ssó. O ambiente foi bastante estimulante à conversa: o Bar Tuim. Foram duas horas e quinze minutos de literatura, chopes e bolinhos de bacalhau que procuramos condensar no texto a seguir, deixando de lado a parte gastronômica, mas não o chope, presente na conversa cada vez mais franca e informativa. Mas antes apresentemos o tradutor do Quixote.
Ernani Ssó é um homem que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, RS, numa tarde de neve. Ainda hoje, ele duvida que o Brasil seja um país tropical. Começou a cursar Jornalismo em 1973, em Porto Alegre, porque queria ser escritor. No ano seguinte, desistiu pelo mesmo motivo. Daí por diante se dedicou à literatura. Tem livros para adultos, muitas traduções, mas gosta mais de seus livros para crianças, porque são mais difíceis de escrever.
Eventualmente escreve resenhas e crônicas de humor para a imprensa. Mantém uma coluna semanal na revista eletrônica Coletiva.net e no Sul21, onde comenta literatura e política. Trabalha também, como já dissemos, como tradutor de espanhol. São mais de cinquenta livros traduzidos. Dentre eles, um que ama especialmente: Dom Quixote de la Mancha (ou El Engenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha), de Miguel de Cervantes.
Sul21 — Como surgiu a ideia de traduzir o Dom Quixote?
Ernani Ssó — Eu tenho uma história antiga com Cervantes. Antes de fazer vestibular, quando eu tinha 17 anos, havia uma livraria no centro de Porto Alegre chamada Duca. Isso em 1972. Eu sou de 53. Um dia, encontrei lá uma edição de bolso do Quixote, de capa dura e papel bem fininho, com letrinha microscópica. Eu não sabia nada de espanhol, mas resolvi encarar, porque tinha ouvido dizer que o Quixote era um idealista, um cara que tentava viver sonhos impossíveis. Esse cara era eu, não? Com o livro debaixo do braço, fui comprar um dicionário de bolso e um manual de espanhol. Estudei por umas duas semanas e fui ler o Cervantes. Empaquei no primeiro parágrafo, meio apavorado. Não entendi praticamente nada. Voltei pro manual, comecei a ler outras coisas, descobri Borges, Cortázar e os demais latinos. De tanto em tanto, voltava ao cavaleiro. Então, lá por 1974-75, saiu o Quixote na tradução portuguesa dos viscondes de Castilho e Azevedo. O Ivan Lessa disse no Pasquim: “Se você vai ler só mais um romance na vida, leia esse”. Obedeci na hora, comprei a tradução, mas me decepcionei: achei tudo muito chato. Pensei que Cervantes não podia ser aquilo. Depois, li as traduções brasileiras, mas não consegui me acertar inteiramente com nenhuma delas. Talvez seja birra minha, mas sentia que o livro perdia muito de sua vida e humor. Daí minha vontade de tentar recuperá-lo até onde fosse possível.
Sul21 — Na tradução, tu usas que tipo de linguagem?
Ernani Ssó – O espanhol de Cervantes tem mais de quatrocentos anos. Nem os próprios espanhóis entendem direito, tanto que as edições atuais vêm com dezenas e dezenas de notas. Se eu traduzo pra um português também de quatrocentos anos, estamos fritos. Só os especialistas poderiam ler. Mas esses não precisam de tradução. Se você manja de português arcaico, não terá grandes dificuldades com o espanhol daquela época. Ao mesmo tempo você não pode modernizar a ferro e fogo. Sabe, botar o Sancho falando como um personagem do Nelson Rodrigues, por exemplo. O que fiz foi preservar um ar antigo. Em vez de usar “alapar”, por exemplo, usei esconder, palavra na verdade mais antiga mas perfeitamente legível hoje. Eu tenho mania de legibilidade. Mas é claro que pra ler o Quixote o leitor tem de ter alguma cancha. Vai quebrar a cara se foi alfabetizado o mês passado.
Sul21 — O Sancho Pança é um personagem especialmente difícil de traduzir, imagino, porque ele fala através de adágios populares.
Ernani Ssó — Cara, as horas que eu gastei pesquisando! Alguns ditados não fazem sentido em português, outros perdem as rimas, perdem o ritmo, perdem a graça. Você sabe, os ditados são frases muito medidas, telegráficas. São dribles, não? Muitas vezes encontrei correspondentes em português. Mas às vezes tive até de inventar ou refazer. Sem internet eu não teria conseguido, provavelmente.
Sul21 — Tu sempre tiveste uma relação importante com o livro, mas como surgiu a encomenda da tradução?
Ernani Ssó — Sim, já era um caso. Eu pegava o original pra ler e, ao invés de curtir a história, ficava pensando “como se diz isso em português?”. Isso me acontece com outros livros, mas não o tempo todo. Deformação profissional é fogo. Mas antes de traduzir qualquer livro eu já fazia isso com Cervantes. Nos anos 90, me encorajei e comecei a traduzir o Quixote. Fiz umas duzentas páginas que ficaram no fundo da gaveta, porque nenhuma editora se interessou.
Sul21 – Quanto tempo levaste pra traduzir os dois volumes?
Ernani Ssó – Uns dois anos. Nesse meio tempo se comemorou o quarto centenário do Quixote, saiu a tradução do Sérgio Molina pra 34, a do Carlos Nougué pra Record, dizem que o Eugênio Amado reviu a que tinha feito pra Itatiaia. Aí sim é que ninguém mais me deu bola. Até que por agosto do ano retrasado, eu liguei para a Companhia das Letras e eles toparam, pra sair nessa coleção dos clássicos da Penguin-Companhia.
Sul21 — Vamos falar do romance em si. É um romance que Cervantes escreve contra alguma coisa. A motivação dele foi a raiva? É o fato de não gostar dos romances de cavalaria? Ou pelo menos fingir não gostar?
Ernani Ssó — Eu acho que ele se sentiu traído pelos romances de cavalaria. Esses romances são fantasias tão desatadas que é impossível a gente acreditar. Um cavaleiro contra um milhão de soldados, pode? Mais alguns gigantes de quebra. Não é mais humano. Se não tem nada humano em que tu possas te reconhecer, não há como se emocionar, curtir. É puro vazio. É como num filme americano: quem consegue acreditar numa cena em que aparece um cara agarrado só pelas unhas no precipício e um bandido pisando nos dedos dele? Você sente o perigo? Acredita que o mocinho vai morrer? Só um imbecil se deixa levar por isso. Cervantes gostava de aventura, mas conhecia a realidade bem demais, esteve na guerra, foi preso, vivia na pobreza.
Sul21 — O Quixote enxerga um castelo em qualquer estalagem, uma linda donzela em qualquer prostituta. Vai lá, quebra a cara. E segue.
Ernani Ssó – Quando a força bruta da realidade pega o coitado, ele tem uma saída ótima: isso não é a realidade, são os magos que encenaram tudo. Essa reação é muito humana. A gente vê essa saída todo dia, em políticos, em religiosos, em casais apaixonados.
Sul21 — E Cervantes não desiste do humor.
Ernani Ssó – Não. Quando a coisa periga, ou pra solenidade, ou pro sentimentalismo, pode esperar: lá vem bala. Acho que quando o Cervantes começou a escrever, ele não tinha noção do que viria a ser o livro. Essa edição da Penguin-Companhia tem uma introdução do John Rutherford. Ele é o tradutor da versão inglesa da Penguin. Ele diz que o Cervantes sentou para escrever um romance popular. Ele não pensou que aquilo ia ser uma obra-prima. Acho que à medida que o troço foi crescendo, ele foi se dando conta da importância do livro, mas tenho minhas dúvidas de que tenha tido consciência plena do que fez. Agora, esse negócio do humor é gozado, digamos. Teve gente que reclamou para mim porque eu escrevi que o Quixote é um dos grandes livros de humor. Disseram que eu estaria diminuindo o livro ao dizer isso. É uma visão tão estreita do humor, é achar que humor é o Renato Aragão e nada mais. Se é um grande livro de humor, é porque tem outras coisas lá também. Tire o humor de Cervantes, de Borges, de Cortázar, por exemplo. Sobra um terço e olhe lá.
Sul21 — O humor é algo muito nobre, impossível viver sem.
Ernani Ssó — Mas essa birra vem desde Aristóteles, que dizia que a comédia é inferior à tragédia porque a comédia não tem a dor. Mas tu podes inverter a frase e dizer que a tragédia não tem o riso, e aí como é que fica? Eu prefiro a tragicomédia, que tem os dois lados. Os grandes momentos do Cervantes são quando ele consegue a tragicomédia.
Sul21 — É um livro muito humano. É uma dupla visão, tu vês as duas coisas: o que o Quixote imagina e o que é real, a loucura e o idealismo sobre um fundo de melancolia. Hoje, quando estava me preparando para falar contigo, li um artigo dizendo que a primeira parte do livro é muito diferente da segunda. Que a primeira tinha a forma mais livre, que era melhor. Minha lembrança é a de que eu gostei muito mais da segunda, mas não me lembro por quê…
Ernani Ssó — Naquele livro dos diálogos do Borges com o Sábato, compilados pelo Orlando Barone, os dois acham que a segunda parte é melhor. Na primeira, o Cervantes tentava agradar os acadêmicos e na segunda ele caga pra academia e escreve muito mais solto. Acho que a primeira parte tem coisas chatíssimas como aquelas inserções de novelas.
Sul21 — Essas inserções são chatas, não têm a ver com o romance.
Ernani Ssó – Sim, sim, o primeiro volume tem essas inserções chatas, mas quase todas as grandes cenas pelas quais o Quixote é lembrado, como a do moinho e a libertação dos prisioneiros das galés, estão lá. No segundo volume o texto é ainda melhor, mais natural. Existem histórias paralelas, mas são de personagens que estão envolvidos com o Quixote, histórias em que ele participa. Então é mais harmônico, é mais pensado, mais bem estruturado. Numa conta geral, também gosto mais do segundo.
Sul21 — No início tivemos os gregos, os romanos e depois houve um período em que não tivemos grandes livros. O Quixote é o fundador do romance?
Ernani Ssó — Acho que é. Pelo menos do romance ocidental. E o incrível é que, brincando brincando, Cervantes fez com mais talento e mais graça o que muitos pós-modernos tentaram fazer, e ainda tentam, coitados. Na introdução, o Rutheford até dá uma gozada nos caras.
Sul21 — Como são as notas de rodapé da tua tradução?
Ernani Ssó – Reduzi ao mínimo possível. Mas tem algumas que se referem a dados históricos ou mitológicos de que não têm como escapar. Minhas mesmo são poucas e rápidas. São sobre trechos problemáticos da tradução em que apostei mais na audácia.
Sul21 — O que há de Cervantes no livro? Ele era esse louco que enfrentava moinhos e pensava loucuras?
Ernani Ssó – Quer dizer, até onde Cervantes era quixotesco?
Sul21 — Sim.
Ernani Ssó — É aquilo que a gente estava comentando, acho que ele era um romântico, gostava de aventura, queria que o mundo fosse mais interessante, mais bonito, menos tedioso. Acho que o livro dele não é só uma vingança aos romances de cavalaria, ou aos leitores que se babavam com eles. Acredito que é uma desilusão dele com a Espanha, com o heroísmo espanhol. Você vê ele mostrando a miséria dos soldados, quebrando a cara, ficando do lado dos mouros que estão sendo expulsos da Espanha. O próprio enredo desmente os elogios que alguns personagens fazem ao Rei e à Igreja. Acho que existe uma desilusão do próprio Cervantes com a realidade espanhola. Ele era um cara talentoso, mas se ralou a vida toda, foi ferido na guerra, foi preso, viu muitos escritores medíocres faturando.
Sul21 — Ele tem pouca coisa além do Quixote.
Ernani Ssó — Sim, pouca. Tem a Galateia. São coisas que foram escritas antes, mas publicadas depois de Dom Quixote. Fora Galateia, o resto foi publicado na época segundo volume do Quixote. Ele ficou famoso e resolveu despachar tudo. Tem as Novelas Exemplares — mais satíricas que exemplares, como ele mesmo admitiu —, peças de teatro, muitas comédias. Mas só o Quixote emplacou. Ele deu azar até aí, morreu logo depois de publicar o segundo volume.
Sul21 — Temos um contraste entre o Quixote e o Sancho Pança, que é um cara bem realista. Começa burro e vira gênio.
Ernani Ssó — Sim. Ele entra no primeiro volume como um cara estúpido, a estupidez em pessoa. E no segundo, ele vai ficando inteligente, vai mudando, parece que o Cervantes mudou de ideia. Há essas incongruências no livro. Ele foi improvisando à medida que escrevia. Nesse sentido, é espantoso que o segundo volume tenha uma história mais fechada. Mas o interessante é que Cervantes se orgulhava mais de ter criado Sancho que Quixote. Sancho é muito menos crível que Quixote. Veja o que é a opinião do próprio autor sobre sua obra.
Sul21 — A Virginia Woolf disse que Dom Quixote foi o único livro que a fazia chorar, que a emocionava muito. Muitos escritores enormes escreveram a respeito do livro. Nabokov tem uma belíssima série de palestras sobre o Quixote. Por que tu achas que ele impacta tanto?
Ernani Ssó — Até Freud se deu ao trabalho de aprender espanhol para ler no original. Acho que você pode não acreditar muito nas aventuras do Quixote e do Sancho, mas você acredita nos personagens, se sente amigo deles. Na verdade todos nós somos um pouco o Quixote. Pelo menos eu sou: não me conformo com a realidade. É uma merda, ela não acompanha a minha imaginação e as minhas emoções. Mas a gente acaba se conformando. Tornar-se adulto é mais ou menos isso, não? Mas esse cerne irracional continua com a gente até o cemitério. Daí, nos identificamos profundamente com o Quixote. A gente ri do coitado como se se vingasse de nossa própria ingenuidade. É como quando olhamos fotos antigas nossas: veja como eu era ridículo de calça boca de sino. Rimos e ao mesmo tempo secamos as lágrimas.
Sul21 — Tu falaste sobre os personagens. O livro é muito centrado em dois personagens com os quais a gente se identifica. A Dulcineia aparece muito pouco.
Ernani Ssó — Falando nas incongruências, quando o Quixote arruma um nome para o cavalo e para ele mesmo, no começo da aventura, logo pensa que tem que ter uma amada. Aí ele se lembra de uma camponesa por quem tinha uma quedinha. O Sancho conhecia ela e o pai, e faz piadas, porque em vez de uma princesa linda é uma fulana que anda metida com os rapazes da aldeia e tal. Isso tudo nos primeiros capítulos. À medida que o livro anda, ninguém mais conhece ela. Quando o Sancho tem que levar uma carta, ele não sabe onde ou a quem entregar. O Cervantes esqueceu totalmente. No segundo volume, cadê a Dulcineia? Para eles ela não existe, é uma invenção. O Cervantes esqueceu totalmente, acho que nunca releu o próprio romance.
Sul21 — Vamos voltar à questão de traduzir humor. Acho isso muito difícil, porém, no caso do Quixote, fundamental.
Ernani Ssó – É um inferno. A graça de uma piada às vezes depende de uma palavra, ou da colocação dessa palavra na frase. Se na tradução você erra na escolha da palavra, ou no lugar onde ela entra, babaus. Há ainda a agilidade, a formulação da frase, não? Veja a tirada do Nelson Rodrigues. Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais. Que graça tem se eu digo só as mulheres normais gostam de apanhar? Talvez não seja necessário você ser humorista pra traduzir humor, mas certamente ajuda. Depois, no caso do Cervantes, há jogos de palavras, há piadas em cima de referências culturais. Se não se recriar tudo isso, a coisa fica insípida, achatada. Ou nem faz sentido nenhum.
Sul21 – Tu tens uma ligação com o humor.
Ernani Ssó – Sim, eu queria ser humorista quando era adolescente. Não consegui. Tive de me contentar em ser um escritor com senso de humor.
Sul21 — Onde tu localiza o tempo do teu texto?
Ernani Ssó — Eu peguei o Houaiss, que tem datação das palavras, e tomei uma atitude radical e totalmente arbitrária: até 1900 é antigo, o que veio depois é moderno. Não usei palavras que apareceram na imprensa depois de 1900. Mas a gente não devia levar essas datações muito a sério. As palavras circulam muito antes de aparecer impressas. Veja só. Cervantes usa normalmente a palavra “voleo”. Segundo o Houaiss, “voleio” só entra no português escrito no século XX. Enfim, tratei de usar palavras anteriores a 1900, mas que fossem compreensíveis hoje. E deixei de lado palavras antigas que soam moderninhas, como “esperto”, que é do século XIII. Esperto tem todo um peso hoje que detonaria com o sentido das frases de Cervantes. Outro problema são as palavras que se tornaram ridículas. Cervantes não usa “porquero” pra ser engraçado. Mas porqueiro ou, pior, porcariço são palavras cômicas, não? Chamam muita atenção. Eu preferi um termo mais neutro, guardador de porcos, pra me manter no clima do original. São por coisas assim que não se pode ser muito literal. Veja, Cervantes despacha um adjetivo ao correr da pena, mas eu ficava queimando a mufa por uma semana ou mais até achar um correspondente à altura. Um tradutor precisa certamente de algum talento, de jeito pra coisa. Mas precisa muito mais de paciência. É um serviço bom pra um preso, que não tem aonde ir e pode ficar brincando o dia todo com as palavras, e até tirar uma soneca entre uma página e outra. Eu tenho um saco de filó, como se diz, e tive a sorte de a editora não ficar me apressando. O pessoal só queria o trabalho direito. É incrível, não? No Brasil parece um luxo agir com profissionalismo.