Hoje faz aniversário a “Queima de Livros”, a Bücherverbrennung — Veja fotos e filmes

Hoje faz aniversário a “Queima de Livros”, a Bücherverbrennung — Veja fotos e filmes

queima de livros nazista 2Entre os dias 10 de maio e 21 de junho de 1933, logo após a chegada ao poder de Adolf Hitler, foram organizadas queimas de liros em praça públicas com a presença de entusiastas, polícia e bombeiros e representantes do governo. Tudo o que fosse crítico ou se desviasse da orientação nazista, deveria ser destruído. Os incêndios ocorreram por iniciativa do diretório nacional de estudantes nazista.

Os estudantes e membros das SA e SS participaram destes festins. As entidades estudantis NSDStB e ASTA competiram entre si, numa tentativa de uma mostrar-se melhor que a outra. A maioria dos livros queimados pertenciam à bibliotecas públicas. Eles eram de autores “pouco alemães”. O poeta nazista Hanns Johst foi um dos que justificou a queima, logo depois da ascensão do nazismo ao poder, com a “necessidade de purificação radical da literatura alemã de elementos estranhos que possam alienar a cultura alemã”.

Entre os livros queimados pelos nazistas estavam obras de Thomas Mann, Heinrich Mann, Walter Benjamin, Bertold Brecht, Erich Kästner (que, anônimo, assistia a tudo), Robert Musil, Erich Maria Remarque, Joseph Roth, Nelly Sachs, Franz Werfel, Sigmund Freud, Albert Einstein, Karl Marx e Heinrich Heine.

Oskar Maria Graf não foi incluído na lista. Seus livros não somente não foram banidos como até foram recomendados pelos nazis. Em resposta, ele publicou um artigo intitulado “Verbrennt mich! (queimem-me) no jornal vienense “Arbeiter-Zeitung” (Jornal dos Trabalhadores). No ano seguinte, foi atendido.

A opinião pública e a intelectualidade alemãs ofereceram pouca resistência à queima. A burguesia tomou distância, passando a responsabilidade aos universitários. Também os outros países acompanharam a destruição à distância, chegando a minimizar a queima como resultado do “fanatismo estudantil”.

(Intermezzo de Bertold Brecht

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

Fim do intermezzo de Bertold Brecht)

Entre os poucos escritores que reconheceram o perigo e tomaram uma posição estava Thomas Mann. Em 1933, ele emigrou para a Suíça e, em 1939, para os Estados Unidos. Quando a Faculdade de Filosofia da Universidade de Bonn lhe cassou o título de doutor honoris causa, ele escreveu ao reitor: “Nestes quatro anos de exílio involuntário, nunca parei de meditar sobre minha situação. Se tivesse ficado ou retornado à Alemanha, talvez já estivesse morto. Jamais sonhei que no fim da minha vida seria um emigrante, despojado da nacionalidade”.

Certa vez, um dos queimados, Heinrich Heine (1797-1856), escreveu: “Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas.”

Berlin, Bücherverbrennung

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O engenhoso tradutor e sua longa batalha com Cervantes e o Quixote

Publicado em 21 de outubro de 2012 no Sul21

Quando adolescente, Ssó tentou ler Dom Quixote no original. Não entendeu muita coisa | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

No final de novembro, a Penguin-Companhia das Letras publicará uma nova tradução de Dom Quixote. Os dois volumes — o primeiro publicado originalmente em 1605 e o segundo em 1615 — virão dentro de uma caixa da coleção Penguin Classics. Na última terça-feira, o Sul21 entrevistou o tradutor Ernani Ssó. O ambiente foi bastante estimulante à conversa: o Bar Tuim. Foram duas horas e quinze minutos de literatura, chopes e bolinhos de bacalhau que procuramos condensar no texto a seguir, deixando de lado a parte gastronômica, mas não o chope, presente na conversa cada vez mais franca e informativa. Mas antes apresentemos o tradutor do Quixote.

Ernani Ssó é um homem que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, RS, numa tarde de neve. Ainda hoje, ele duvida que o Brasil seja um país tropical. Começou a cursar Jornalismo em 1973, em Porto Alegre, porque queria ser escritor. No ano seguinte, desistiu pelo mesmo motivo. Daí por diante se dedicou à literatura. Tem livros para adultos, muitas traduções, mas gosta mais de seus livros para crianças, porque são mais difíceis de escrever.

Eventualmente escreve resenhas e crônicas de humor para a imprensa. Mantém uma coluna semanal na revista eletrônica Coletiva.net e no Sul21, onde comenta literatura e política. Trabalha também, como já dissemos, como tradutor de espanhol. São mais de  cinquenta livros traduzidos. Dentre eles, um que ama especialmente: Dom Quixote de la Mancha (ou El Engenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha), de Miguel de Cervantes.

Leia mais: O Dom Quixote que viveu em Miguel de Cervantes.

.oOo.

Sul21 — Como surgiu a ideia de traduzir o Dom Quixote?

Ernani Ssó — Eu tenho uma história antiga com Cervantes. Antes de fazer vestibular, quando eu tinha 17 anos, havia uma livraria no centro de Porto Alegre chamada Duca. Isso em 1972. Eu sou de 53. Um dia, encontrei lá uma edição de bolso do Quixote, de capa dura e papel bem fininho, com letrinha microscópica. Eu não sabia nada de espanhol, mas resolvi encarar, porque tinha ouvido dizer que o Quixote era um idealista, um cara que tentava viver sonhos impossíveis. Esse cara era eu, não? Com o livro debaixo do braço, fui comprar um dicionário de bolso e um manual de espanhol. Estudei por umas duas semanas e fui ler o Cervantes. Empaquei no primeiro parágrafo, meio apavorado. Não entendi praticamente nada. Voltei pro manual, comecei a ler outras coisas, descobri Borges, Cortázar e os demais latinos. De tanto em tanto, voltava ao cavaleiro. Então, lá por 1974-75, saiu o Quixote na tradução portuguesa dos viscondes de Castilho e Azevedo. O Ivan Lessa disse no Pasquim: “Se você vai ler só mais um romance na vida, leia esse”. Obedeci na hora, comprei a tradução, mas me decepcionei: achei tudo muito chato. Pensei que Cervantes não podia ser aquilo. Depois, li as traduções brasileiras, mas não consegui me acertar inteiramente com nenhuma delas. Talvez seja birra minha, mas sentia que o livro perdia muito de sua vida e humor. Daí minha vontade de tentar recuperá-lo até onde fosse possível.

Os romances de cavalaria levavam as aventuras a um nível tão escabelado que ela perderam totalmente o pé na realidade. Se não tem mais nada humano em que tu possas te espelhar, te emocionar, curtir, tu deixas de acreditar | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 — Na tradução, tu usas que tipo de linguagem?

Ernani Ssó – O espanhol de Cervantes tem mais de quatrocentos anos. Nem os próprios espanhóis entendem direito, tanto que as edições atuais vêm com dezenas e dezenas de notas. Se eu traduzo pra um português também de quatrocentos anos, estamos fritos. Só os especialistas poderiam ler. Mas esses não precisam de tradução. Se você manja de português arcaico, não terá grandes dificuldades com o espanhol daquela época. Ao mesmo tempo você não pode modernizar a ferro e fogo. Sabe, botar o Sancho falando como um personagem do Nelson Rodrigues, por exemplo. O que fiz foi preservar um ar antigo. Em vez de usar “alapar”, por exemplo, usei esconder, palavra na verdade mais antiga mas perfeitamente legível hoje. Eu tenho mania de legibilidade. Mas é claro que pra ler o Quixote o leitor tem de ter alguma cancha. Vai quebrar a cara se foi alfabetizado o mês passado.

Sul21 — O Sancho Pança é um personagem especialmente difícil de traduzir, imagino, porque ele fala através de adágios populares.

Ernani Ssó — Cara, as horas que eu gastei pesquisando! Alguns ditados não fazem sentido em português, outros perdem as rimas, perdem o ritmo, perdem a graça. Você sabe, os ditados são frases muito medidas, telegráficas. São dribles, não? Muitas vezes encontrei correspondentes em português. Mas às vezes tive até de inventar ou refazer. Sem internet eu não teria conseguido, provavelmente.

Sul21 — Tu sempre tiveste uma relação importante com o livro, mas como surgiu a encomenda da tradução?

Ernani Ssó — Sim, já era um caso. Eu pegava o original pra ler e, ao invés de curtir a história, ficava pensando “como se diz isso em português?”. Isso me acontece com outros livros, mas não o tempo todo. Deformação profissional é fogo. Mas antes de traduzir qualquer livro eu já fazia isso com Cervantes. Nos anos 90, me encorajei e comecei a traduzir o Quixote. Fiz umas duzentas páginas que ficaram no fundo da gaveta, porque nenhuma editora se interessou.

Sul21 – Quanto tempo levaste pra traduzir os dois volumes?

Ernani Ssó – Uns dois anos. Nesse meio tempo se comemorou o quarto centenário do Quixote, saiu a tradução do Sérgio Molina pra 34, a do Carlos Nougué pra Record, dizem que o Eugênio Amado reviu a que tinha feito pra Itatiaia. Aí sim é que ninguém mais me deu bola. Até que por agosto do ano retrasado, eu liguei para a Companhia das Letras e eles toparam, pra sair nessa coleção dos clássicos da Penguin-Companhia.

Sul21 — Vamos falar do romance em si. É um romance que Cervantes escreve contra alguma coisa. A motivação dele foi a raiva? É o fato de não gostar dos romances de cavalaria? Ou pelo menos fingir não gostar?

Ernani Ssó — Eu acho que ele se sentiu traído pelos romances de cavalaria. Esses romances são fantasias tão desatadas que é impossível a gente acreditar. Um cavaleiro contra um milhão de soldados, pode? Mais alguns gigantes de quebra. Não é mais humano.  Se não tem nada humano em que tu possas te reconhecer, não há como se emocionar, curtir. É puro vazio. É como num filme americano: quem consegue acreditar numa cena em que aparece um cara agarrado só pelas unhas no precipício e um bandido pisando nos dedos dele? Você sente o perigo? Acredita que o mocinho vai morrer? Só um imbecil se deixa levar por isso. Cervantes gostava de aventura, mas conhecia a realidade bem demais, esteve na guerra, foi preso, vivia na pobreza.

Sul21 — O Quixote enxerga um castelo em qualquer estalagem, uma linda donzela em qualquer prostituta. Vai lá, quebra a cara. E segue.

Ernani Ssó – Quando a força bruta da realidade pega o coitado, ele tem uma saída ótima: isso não é a realidade, são os magos que encenaram tudo. Essa reação é muito humana. A gente vê essa saída todo dia, em políticos, em religiosos, em casais apaixonados.

Esse troço vem de Aristóteles, que dizia que a comédia é inferior à tragédia porque a comédia não tem a dor. Mas tu podes inverter a frase e dizer que a tragédia não tem o riso, e aí como é que fica? | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 — E Cervantes não desiste do humor.

Ernani Ssó – Não. Quando a coisa periga, ou pra solenidade, ou pro sentimentalismo, pode esperar: lá vem bala. Acho que quando o Cervantes começou a escrever, ele não tinha noção do que viria a ser o livro. Essa edição da Penguin-Companhia tem uma introdução do John Rutherford. Ele é o tradutor da versão inglesa da Penguin. Ele diz que o Cervantes sentou para escrever um romance popular. Ele não pensou que aquilo ia ser uma obra-prima. Acho que à medida que o troço foi crescendo, ele foi se dando conta da importância do livro, mas tenho minhas dúvidas de que tenha tido consciência plena do que fez. Agora, esse negócio do humor é gozado, digamos. Teve gente que reclamou para mim porque eu escrevi que o Quixote é um dos grandes livros de humor. Disseram que eu estaria diminuindo o livro ao dizer isso. É uma visão tão estreita do humor, é achar que humor é o Renato Aragão e nada mais. Se é um grande livro de humor, é porque tem outras coisas lá também. Tire o humor de Cervantes, de Borges, de Cortázar, por exemplo. Sobra um terço e olhe lá.

Sul21 — O humor é algo muito nobre, impossível viver sem.

Ernani Ssó — Mas essa birra vem desde Aristóteles, que dizia que a comédia é inferior à tragédia porque a comédia não tem a dor. Mas tu podes inverter a frase e dizer que a tragédia não tem o riso, e aí como é que fica? Eu prefiro a tragicomédia, que tem os dois lados. Os grandes momentos do Cervantes são quando ele consegue a tragicomédia.

Sul21 — É um livro muito humano. É uma dupla visão, tu vês as duas coisas: o que o Quixote imagina e o que é real, a loucura e o idealismo sobre um fundo de melancolia. Hoje, quando estava me preparando para falar contigo, li um artigo dizendo que a primeira parte do livro é muito diferente da segunda. Que a primeira tinha a forma mais livre, que era melhor. Minha lembrança é a de que eu gostei muito mais da segunda, mas não me lembro por quê…

Ernani Ssó — Naquele livro dos diálogos do Borges com o Sábato, compilados pelo Orlando Barone, os dois acham que a segunda parte é melhor. Na primeira, o Cervantes tentava agradar os acadêmicos e na segunda ele caga pra academia e escreve muito mais solto. Acho que a primeira parte tem coisas chatíssimas como aquelas inserções de novelas.

Sul21 — Essas inserções são chatas, não têm a ver com o romance.

Ernani Ssó – Sim, sim, o primeiro volume tem essas inserções chatas, mas quase todas as grandes cenas pelas quais o Quixote é lembrado, como a do moinho e a libertação dos prisioneiros das galés, estão lá. No segundo volume o texto é ainda melhor, mais natural. Existem histórias paralelas, mas são de personagens que estão envolvidos com o Quixote, histórias em que ele participa. Então é mais harmônico, é mais pensado, mais bem estruturado. Numa conta geral, também gosto mais do segundo.

Sul21 — No início tivemos os gregos, os romanos e depois houve um período em que não tivemos grandes livros. O Quixote é o fundador do romance?

Ernani Ssó — Acho que é. Pelo menos do romance ocidental. E o incrível é que, brincando brincando, Cervantes fez com mais talento e mais graça o que muitos pós-modernos tentaram fazer, e ainda tentam, coitados. Na introdução, o Rutheford até dá uma gozada nos caras.

Sul21 — Como são as notas de rodapé da tua tradução?

Ernani Ssó – Reduzi ao mínimo possível. Mas tem algumas que se referem a dados históricos ou mitológicos de que não têm como escapar. Minhas mesmo são poucas e rápidas. São sobre trechos problemáticos da tradução em que apostei mais na audácia.

Sul21 — O que há de Cervantes no livro? Ele era esse louco que enfrentava moinhos e pensava loucuras?

Ernani Ssó – Quer dizer, até onde Cervantes era quixotesco?

Sul21 — Sim.

Ernani Ssó — É aquilo que a gente estava comentando, acho que ele era um romântico, gostava de aventura, queria que o mundo fosse mais interessante, mais bonito, menos tedioso. Acho que o livro dele não é só uma vingança aos romances de cavalaria, ou aos leitores que se babavam com eles. Acredito que é uma desilusão dele com a Espanha, com o heroísmo espanhol. Você vê ele mostrando a miséria dos soldados, quebrando a cara, ficando do lado dos mouros que estão sendo expulsos da Espanha. O próprio enredo desmente os elogios que alguns personagens fazem ao Rei e à Igreja. Acho que existe uma desilusão do próprio Cervantes com a realidade espanhola. Ele era um cara talentoso, mas se ralou a vida toda, foi ferido na guerra, foi preso, viu muitos escritores medíocres faturando.

O próprio enredo vai desmentindo os elogios ao Rei e à Igreja que há nas introduções | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 — Ele tem pouca coisa além do Quixote.

Ernani Ssó — Sim, pouca. Tem a Galateia. São coisas que foram escritas antes, mas publicadas depois de Dom Quixote. Fora Galateia, o resto foi publicado na época segundo volume do Quixote. Ele ficou famoso e resolveu despachar tudo. Tem as Novelas Exemplares — mais satíricas que exemplares, como ele mesmo admitiu —, peças de teatro, muitas comédias. Mas só o Quixote emplacou. Ele deu azar até aí, morreu logo depois de publicar o segundo volume.

Sul21 — Temos um contraste entre o Quixote e o Sancho Pança, que é um cara bem realista. Começa burro e vira  gênio.

Ernani Ssó — Sim. Ele entra no primeiro volume como um cara estúpido, a estupidez em pessoa. E no segundo, ele vai ficando inteligente, vai mudando, parece que o Cervantes mudou de ideia. Há essas incongruências no livro. Ele foi improvisando à medida que escrevia. Nesse sentido, é espantoso que o segundo volume tenha uma história mais fechada. Mas o interessante é que Cervantes se orgulhava mais de ter criado Sancho que Quixote. Sancho é muito menos crível que Quixote. Veja o que é a opinião do próprio autor sobre sua obra.

Sul21 — A Virginia Woolf disse que Dom Quixote foi o único livro que a fazia chorar, que a emocionava muito. Muitos escritores enormes escreveram a respeito do livro. Nabokov tem uma belíssima série de palestras sobre o Quixote. Por que tu achas que ele impacta tanto?

Ernani Ssó — Até Freud se deu ao trabalho de aprender espanhol para ler no original. Acho que você pode não acreditar muito nas aventuras do Quixote e do Sancho, mas você acredita nos personagens, se sente amigo deles. Na verdade todos nós somos um pouco o Quixote. Pelo menos eu sou: não me conformo com a realidade. É uma merda, ela não acompanha a minha imaginação e as minhas emoções. Mas a gente acaba se conformando. Tornar-se adulto é mais ou menos isso, não? Mas esse cerne irracional continua com a gente até o cemitério. Daí, nos identificamos profundamente com o Quixote. A gente ri do coitado como se se vingasse de nossa própria ingenuidade. É como quando olhamos fotos antigas nossas: veja como eu era ridículo de calça boca de sino. Rimos e ao mesmo tempo secamos as lágrimas.

Sul21 — Tu falaste sobre os personagens. O livro é muito centrado em dois personagens com os quais a gente se identifica. A Dulcineia aparece muito pouco.

Ernani Ssó — Falando nas incongruências, quando o Quixote arruma um nome para o cavalo e para ele mesmo, no começo da aventura, logo pensa que tem que ter uma amada. Aí ele se lembra de uma camponesa por quem tinha uma quedinha. O Sancho conhecia ela e o pai, e faz piadas, porque em vez de uma princesa linda é uma fulana que anda metida com os rapazes da aldeia e tal. Isso tudo nos primeiros capítulos. À medida que o livro anda, ninguém mais conhece ela. Quando o Sancho tem que levar uma carta, ele não sabe onde ou a quem entregar. O Cervantes esqueceu totalmente. No segundo volume, cadê a Dulcineia? Para eles ela não existe, é uma invenção. O Cervantes esqueceu totalmente, acho que nunca releu o próprio romance.

Sul21 — Vamos voltar à questão de traduzir humor. Acho isso muito difícil, porém, no caso do Quixote, fundamental.

Ernani Ssó – É um inferno. A graça de uma piada às vezes depende de uma palavra, ou da colocação dessa palavra na frase. Se na tradução você erra na escolha da palavra, ou no lugar onde ela entra, babaus. Há ainda a agilidade, a formulação da frase, não? Veja a tirada do Nelson Rodrigues. Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais. Que graça tem se eu digo só as mulheres normais gostam de apanhar? Talvez não seja necessário você ser humorista pra traduzir humor, mas certamente ajuda. Depois, no caso do Cervantes, há jogos de palavras, há piadas em cima de referências culturais. Se não se recriar tudo isso, a coisa fica insípida, achatada. Ou nem faz sentido nenhum.

Um dos problemas é você traduzir humor. Se você não for ágil o humor te quebra. Outro é que muitas piadas são jogos de palavras, se tu não recriares, terás que explicar a piada na nota de rodapé – o que, cá entre nós, não tem graça nenhuma | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Tu tens uma ligação com o humor.

Ernani Ssó – Sim, eu queria ser humorista quando era adolescente. Não consegui. Tive de me contentar em ser um escritor com senso de humor.

Sul21 — Onde tu localiza o tempo do teu texto?

Ernani Ssó — Eu peguei o Houaiss, que tem datação das palavras, e tomei uma atitude radical e totalmente arbitrária: até 1900 é antigo, o que veio depois é moderno. Não usei palavras que apareceram na imprensa depois de 1900. Mas a gente não devia levar essas datações muito a sério. As palavras circulam muito antes de aparecer impressas. Veja só. Cervantes usa normalmente a palavra “voleo”. Segundo o Houaiss, “voleio” só entra no português escrito no século XX. Enfim, tratei de usar palavras anteriores a 1900, mas que fossem compreensíveis hoje. E deixei de lado palavras antigas que soam moderninhas, como “esperto”, que é do século XIII. Esperto tem todo um peso hoje que detonaria com o sentido das frases de Cervantes. Outro problema são as palavras que se tornaram ridículas. Cervantes não usa “porquero” pra ser engraçado. Mas porqueiro ou, pior, porcariço são palavras cômicas, não? Chamam muita atenção. Eu preferi um termo mais neutro, guardador de porcos, pra me manter no clima do original. São por coisas assim que não se pode ser muito literal. Veja, Cervantes despacha um adjetivo ao correr da pena, mas eu ficava queimando a mufa por uma semana ou mais até achar um correspondente à altura. Um tradutor precisa certamente de algum talento, de jeito pra coisa. Mas precisa muito mais de paciência. É um serviço bom pra um preso, que não tem aonde ir e pode ficar brincando o dia todo com as palavras, e até tirar uma soneca entre uma página e outra. Eu tenho um saco de filó, como se diz, e tive a sorte de a editora não ficar me apressando. O pessoal só queria o trabalho direito. É incrível, não? No Brasil parece um luxo agir com profissionalismo.

Um tradutor precisa certamente de algum talento, de jeito pra coisa. Mas precisa muito mais de paciência. É um serviço bom pra um preso, que não tem aonde ir e pode ficar brincando o dia todo com as palavras, e até tirar uma soneca entre uma página e outra | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (Segunda parte de três ou quatro)

Um pouco mais revisado. Aliás, revisei o anterior agora, novamente…

Não faço ideia se o meu marido é um gênio ou não; o que sei, com certeza, é que ele tem uma mente bem suja.

NORA BARNACLE

Primeira parte: Anotações sobre sexo no Ulysses de Joyce (primeira parte de três, quatro ou mais)

Hum… Nunca me ofereçam, OK?

Em Ulysses, Leopold Bloom é um cidadão irlandês, pai e marido de Molly. Teve dois filhos, Milly e Rudy, sendo que o segundo morreu onze dias após o nascimento e Milly — que está com 15 anos em 16 de junho de 1904 — estuda em outra cidade. Ela aparece no romance apenas nas saudades de Bloom, o qual também lamenta muitíssimo a perda de Rudy. Ele é um bom pai de quase quarenta anos e começa o dia de forma tipicamente irlandesa. A primeira coisa que come são rins de carneiro grelhados, eles exalam um leve e inebriante perfume de urina. Porém, não vim aqui criticar a gastronomia irlandesa e britânica. Faço referência a este quarto capítulo porque nele Bloom aparece servindo sua mulher-ninfa na cama. É importante notar que é ele quem serve o breakfast,  não o contrário. Bloom, que foi confessadamente criado por Joyce para ser o homem comum, o everyman, aparece sem heroísmos, com uma dimensão inteiramente humana, sem atitudes épicas.

A primeira página de Ulysses no manuscrito de Joyce

Em 1905, Joyce escreveu a seu irmão Stanislaus:

Você não acha a busca pelo heroísmo uma tremenda vulgaridade? Tenho certeza de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi, uma mentira e que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo.

O amor de Bloom manifesta-se diferentemente, ignorando posturas machistas, nas atitudes e nos pensamentos em relação à família, mas uma das surpresas de Ulysses é como esta rotina é contraposta à sexualidade que aparece no romance. Boa parte do enredo de Ulysses gira em torno do casal Molly e Leopold e de sua inaptidão para sentir prazer físico e emocional um com o outro. Seja através da narração onisciente, seja por monólogos interiores, o texto documenta minuciosamente as abordagens sexuais inteiramente diversas e as tentativas românticas do casal. E estas ocorrem sempre SEPARADAMENTE. Durante o curso do dia, Molly comete adultério com Blazes Boylan, enquanto Bloom envolve-se com práticas sexuais voyeuristas, masturbatórias e, por que não dizer?, masoquistas. Mesmo que Bloom participe ativamente destes encontros, é curioso como Joyce obtém mantê-lo longe do estereótipo do fauno sedento por sexo e prazer. Bloom é o anti-herói, o low profile, o personagem simpático, agradável, amistoso e apagado. Mesmo o erotismo evidente de certas participações de Bloom, acaba diluído em gentileza e bonomia. Ele é pai e marido, possuidor de qualidades maternas, pacifistas, até femininas.

Os limites rígidos que compunham a prática religiosa e as normas sociais na virada do século XX são demasiadamente sufocantes para a expressão de Joyce da individualidade e do desejo carnal. No episódio em que Bloom masturba-se na praia, observando Gerty MacDowell, tendo por fundo um culto religioso, Joyce não apenas justapõe religião e erotismo, mas incorpora uma prática sexual não convencional.

Bloomsday em Dublin. Leopold põe os olhos em Gerty MacDowell.

Com isto, ele desafia o senso comum do que seria a sexualidade na virada do século XX e utiliza seu romance como um veículo através do qual pode expressar seu desejo de fundamentar sua crença no instinto e no físico — não esqueçam que cada capítulo do Ulysses refere-se também a uma parte do corpo humano. Para Joyce, a sexualidade é um ato de expressão da natureza. Neste sentido, concordava inteiramente com D.H. Lawrence, o qual desejava conceder ao corpo um reconhecimento igual ao que era dado à mente. É claro que tais intenções do romance iam ao encontro das teorias de Freud — o desejo sexual como energia motivacional primária da vida humana –, mas ia contra a moral vigente da virada do século. Os encontros de Bloom com mulheres no livro parecem servir de alívio para a exclusão social e a traição de Molly, são o meio utilizado por ele para adquirir o equilíbrio ou equanimidade entre sua existência e a de Molly.

Sandymount Strand, onde Stephen Dedalus caminha imaginando-se cego e onde Leopold Bloom encontra Gerty McDowell em Ulysses

Ulysses é um texto que procura minar e redefinir as noções de gênero e de hierarquia na sociedade patriarcal da época. O romance não promove a superioridade masculina, mas eleva as mulheres e a feminilidade. Não só Joyce inverte a hierarquia social predominantemente masculina, como confunde e desafia a noção de gênero na dicotomia da criação de um casal formado por um homem delicado e feminino e uma mulher decidida. Nesta combinação, o casal Molly e Leopold, desafia os estereótipos que definem a masculinidade como agressiva e dominadora e a feminilidade como passiva e reservada.

Salman Rushdie escreveu em seu ensaio The Short Story: “Comumente o que é pornográfico para uma geração, é clássico para a geração seguinte”. A frase parece ser perfeita para Ulysses: enquanto a censura do início do século XX considerava o texto imoral e inadequado, ele agora oferece para nós um quadro riquíssimo para a exploração e análise da sexualidade de personagens extremamente bem construídos, sendo que um deles era “o homem comum”.

Eu poderia definir a pornografia como a apresentação de cenas destinadas a despertar desejo sexual no observador? Assim como num filme de sexo explícito, Uliyses rastreia movimentos e sensações corporais, realizando (ou escandalizando) o desejo do leitor de observar com precisão a mecânica do corpo. No entanto, Joyce não faz pornografia: aqui, a predição de Rushdie funciona perfeitamente: apesar de possuir elementos pornográficos, Ulysses oferece a transformação da pornografia em uma forma de arte clássica. Tendo lido e estudado psicanalistas como Freud, Joyce nos oferece não apenas uma nova ficção e linguagem, oferece-nos um ponto de vista original para entender o sexo. A atitude perante a sexualidade estava mudando após a virada do século, especialmente na esfera psicanalítica, e Joyce reflete em Ulysses este novo interesse na sexualidade, o crescimento de uma ciência sexual e o desenvolvimento de novos conceitos que rompiam cabalmente a associação entre sexualidade e reprodução. Joyce pertencia ao grupo de grandes pensadores da época, que procuravam entender e redefinir a sexualidade. Declan Kiberd afirma jocosamente que “Ulysses era não apenas um exemplo de um empreendimento comercial de alto risco, mas também um manual muito particular que extrapolava em muito questões literárias”.

É importante salientar a relação de Joyce com a tradição inglesa do romance. A Irlanda estava sob o domínio inglês. Os ancestrais de Joyce abandonaram lentamente o gaélico — ainda falado em regiões rurais da Irlanda — pelo inglês. Deste modo, os irlandeses viviam a uma certa distância da literatura inglesa ou ao menos utilizavam a língua com menor respeito, muitas vezes com insolência. Deste modo, há, além das ideias de Joyce, um aspecto sociológico que torna a quebra da tradição um ato até desejável de afirmação de nacionalidade. Joyce não falava mal de Dublin e da Irlanda, como alguns afirmam, mas era, sim, contra a sentimentalização do passado, revoltava-se contra o provincianismo de achar que o passado — mesmo um inventado, como o dos gaúchos tradicionalistas — ia voltar.

O Rio Liffey e a Ponte Ha’penny Bridge em Dublin, Irlanda

(Segue)

Os ateus são pessoas más?

Por Renato Sabbatini

Recentemente a Igreja Católica iniciou uma campanha cerrada contra o que denominou de “valores ateus” e suas supostas conseqüências (basicamente, coisas como ser a favor do aborto e do uso da camisinha e da clonagem de embriões). Um bispo brasileiro, exagerado, chegou a afirmar publicamente que “os ateus são pessoas más”, possivelmente porque muitos religiosos acreditam que a religião é a única fonte da moral. Logo…. ateus não têm moral. Mas não têm mesmo? Os ateus são em média mais imorais e maus do que os que têm religião? A evidência científica aponta que parece ser justamente o contrário… A Bíblia afirma, em Salmos 14:1, que “Diz o insensato no seu coração: Não há Deus. Corrompem-se e praticam abominação; já não há quem faça o bem”. Então serão os ateus insensatos ou tolos? Corruptos e abomináveis? Incapazes de fazer o bem? Quanto à questão das “abominações”, a evidência é incontestável. Um estudo feito em 1997 pela Federal Prison Board, dos EUA mostrou que enquanto que 75% da população carcerária americana se declara religiosa e crente em Deus, apenas 0,2% se declaram ateus ou agnósticos! (na população em geral eles já representariam cerca de 10%). O divórcio (um pecado, segundo o catolicismo, mas não segundo os protestantes) ocorre em 40% dos católicos americanos, 27% de evangélicos e apenas em 21% dos ateus… Ou seja, a crença em um pecado é inversamente proporcional à sua adoção… Além disso, não é preciso pesquisar muito na história para constatar que, em nome de valores religiosos, foram praticadas grandes mortandades, infindáveis guerras, horrendas atrocidades (como a Inquisição) e nefandos atos terroristas. Ou matar em nome de Deus não é uma constante insana da humanidade? Quem é mau, então? Numerosos estudos sociológicos têm demonstrado cabalmente que ateus, em geral, cometem menos crimes, respeitam mais as leis, e criam seus filhos com mais critérios morais e familiares do que a maioria dos que acreditam em Deus. Conclusão: não é preciso acreditar em Deus para ser moral e respeitador dos costumes e das regras sociais. Eu mesmo, por exemplo, sou agnóstico, criei meus dois filhos sem batismo, Deus ou religião, e podemos nos incluir tranquilamente entre as pessoas mais morais e sérias e praticantes do bem que eu conheço. Tolos? Veja só a lista dos “tolos” e “insensatos” que foram ou são ateus ou agnósticos: Albert Einstein, Charles Darwin, Stephen Hawking, Francis Crick, James Watson, Richard Feynman, Paul Dirac, Linus Pauling, Alfred Kinsey, Karl Popper, Carl Sagan, Edward O.Wilson, Marvin Minsky, Thomas Edison, B.F. Skinner, Marie Curie, Bertrand Russell, Noam Chomsky, Isaac Asimov, Sigmund Freud, Michel Foucault, Richard Dawkins, Steven Pinker, Daniel Dennett, Stephen Jay Gould, Steve Jobs, Thomas Jefferson, Denis Diderot, Auguste Comte, Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Karl Marx, Oscar Niemayer, George Bernard Shaw, Jorge Amado, Jorge Luis Borges, Gore Vidal, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Robert Frost, H.G. Wells, José Saramago, Salman Rushdie, Mark Twain, Arthur Clarke, Michael Crichton, Milan Kundera, Marcelo Gleiser, Drauzio Varella, Ernest Hemingway, Kurt Vonnegut Jr., Luis Buñuel, Ingmar Bergman, Charlie Chaplin, John Lennon, Woody Allen, Angelina Jolie, Jodie Foster, Marlon Brando, Christopher Reeve, Juliana Moore, Jack Nicholson, Larry King, Chico Buarque, Paulo Autran e muitos outros. A nata da nata. Quase 40% de todos os cientistas declaram não ter religião. O ateísmo é muito mais prevalente entre pessoas de maior escolaridade, intelectuais e autores, do que no resto da população. Exceção: políticos (isso deve ser o resultado da democracia, ou seja. o fenômeno de seleção pelo eleitorado religioso, ou então medo de declarar publicamente seus “valores ateus”, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez uma vez, e perdeu a eleição para prefeito de São Paulo). Não fazem o bem? Os três maiores doadores de dinheiro para causas boas e nobres, de toda a história (conjuntamente doaram mais de 70 bilhões de dólares), George Soros e Warren Buffet (financistas) e o fundador da Microsoft, Bill Gates, são ateus declarados. Meu ídolo científico, o físico alemão Albert Einstein, eleito pela revista Time como a Maior Personalidade do Século XX (e erroneamente citado como sendo religioso) escreveu uma vez sobre isso: “Se as pessoas são boas apenas porque têm medo de punições, e esperam uma recompensa, então elas formam um grupo realmente lamentável“.

E disse tudo!