O filme chama-se Les Chatouilles (As Cócegas) no original. O título no Brasil? Inocência Roubada, claro.
Bem, mas passemos por cima disso.
Les Chatouilles (As Cócegas) foi escrito e dirigido por Andréa Bescond e Éric Métayer. Trata-se da adaptação para o cinema da peça de ambos The Chatouilles ou La Danse de la colère (As Cócegas ou A Dança do Ódio), vencedora de vários prêmios na França. A história é inspirada no drama da infância e da vida de Andréa Bescond — Odette, no filme –, vítima de violência sexual durante a infância. Na peça original, Bescond fazia todos os papéis. Aqui não, mas o filme guarda um pouco desta característica mantendo, por vezes, mais de uma Odette em cena.
Inocência Roubada está em cartaz no Guion Cinemas — convenhamos, a TV ou o computador de casa só devem ser utilizados quando vemos um filme pela segunda vez, né?
Claro que é uma história autobiográfica comovente, que nos deixa tensos e indignados. A característica do filme é bater sempre forte, é enérgico que trata a questão sem delicadeza. Mas isto não é uma crítica, pois reflete à perfeição a forma encontrada por Bescond para sobreviver — ficar permanentemente em estado raivoso. O filme mostra o começo de sua vida como dançarina com menos de dez anos de idade, alternado-se com os episódios de estupros de que ela foi vítima. O estuprador era o melhor amigo de seus pais. Um dia, já adulta, Odette cruza pela porta de uma psicóloga e inicia uma terapia para melhorar ou salvar sua vida.
A atuação de Odette/Andréa é agitada e boa, mas o destaque vai para o elenco de apoio. A ótima Karin Viard faz a mãe que não quer ver nada e que não acredita nos estupros. As cenas da mãe acusando a filha de divulgar publicamente fatos que perturbam seu cotidiano — ou seja, sendo extremamente prejudicial, incompreensiva e egoísta — são extremamente violentas e uma resposta dela, enigmática, provavelmente inventada, não tem nenhuma ressonância na história: “Você não sabe o que eu mesmo experimentei “, diz ela, às lágrimas. Viard é tão boa atriz que chega a ser tóxica em sua atuação cega à própria abjeção. Clovis Cornillac faz o pai e Pierre Deladonchamps, o estuprador pedófilo. Carole Franck faz uma terapeuta relutante que hesita em assumir um caso tão pesado.
Demora muito tempo para Odette revelar a seus pais o que aconteceu com ela. Enquanto seu pai mergulha numa penitência impossível, a mãe, como dissemos, rejeita os fatos, recusando-se ver sua filha como vítima, adotando o discurso que aquilo foi há muito tempo.
O assunto é da hora. Bescond e Métayer dão um bom empurrão para que as línguas se soltem ainda mais numa época onde parte das realidades da pedofilia aparecem em plena luz do dia. A pedofilia nos horroriza e requer retrospectiva e reflexão. Visualmente, somos movidos pela energia da dançarina em seu desejo de expulsar o passado. O filme, apesar de obviamente não mostrar nada explícito, criou-me desconforto.
O fio da história ziguezagueia entre a infância e a vida adulta, embarca em sonhos e fantasias com a clara intenção de aliviar o peso sobre o público. Mas, como na vida real, a memória e a dor das feridas recebidas recuperam o controle da história. Esta é a força de Inocência Roubada: mostrar a dor em torno da performance instintiva de Andréa Bescond.
O espectador às vezes tem a impressão de participar de um acerto de contas que não lhe diz respeito. Mas é um grito é um grito é um grito que deve ser ouvido.
Durante a semana, entramos em contato com a psicanalista Lucia Serrano Pereira. Nossa intenção era utilizá-la como fonte para uma matéria sobre o romance Lolita, de Vladimir Nabokov, que foi lançado nos EUA em 18 de agosto de 1955. O livro é fascinante do ponto de vista literário, mas descreve um caso de pedofilia sem culpa que não ousaríamos analisar sem consultar alguém especializado. Durante a conversa, notamos que Lucia tinha profundo conhecimento a respeito da obra. Não nos surpreendemos quando a psicanalista nos informou que era autora de um longo comentário sobre o livro e que este estava disponível para o Sul21. Deste modo, recuamos de nossa intenção de escrever sobre Lolita para dar lugar ao texto de nossa fonte e colaboradora na Coluna da APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Milton Ribeiro)
Por Lucia Serrano Pereira
Desejo, agora, apresentar a seguinte ideia. Entre um limite de idade que vai dos nove aos catorze anos, existem raparigas que, diante de certos viajantes enfeitiçados, revelam sua verdadeira natureza, que não é humana, mas “nínfica” (isto é, demoníaca), e a essas dadas criaturas proponho designar como nymphets.”
Trecho do diário de Humbert Humbert, o personagem.
A narrativa é um incrível tecido de linguagem e de estilo, onde Nabokov nos traz a trajetória de Humbert, esse viajante enfeitiçado, e de sua nymphet, Lolita. Quando se trata de feitiço, dessa natureza não humana, um pouco nínfica, é inevitável evocar a representação das sereias que deslumbram com seu canto irresistível e depois arrastam para a morte os enfeitiçados.
Humbert relata o turbilhão em que foi jogado, a paixão, o amor, o desejo vividos loucamente, delirantemente, “Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma”, são as primeiras palavras do texto. Mas para além do que ali se apresenta enquanto paixão, amor e desejo, e, de certa maneira transitando por todos eles, temos essa enigmática magia da nymphet, que, como a da sereia, é demoníaca. Essa magia do diabo, ela tem nome próprio. Chama-se sedução. O diabo, por sinal, é o mestre em matéria de sedução, é o sedutor- mor, sempre.
Seduzir vem do latim seducere, “levar para o lado”, ou seja, algo que alude ao desviar do caminho, sair da rota esperada, da estrada principal, para seguir com a ideia do viajante. Assim, algo do seduzir nos situa, nos desvela o que poderíamos chamar uma figura do desviante. Figura fundamental em Lolita, sob vários aspectos. A começar pela repercussão que teve na época de sua publicação, no contexto dos anos cinquenta. A estória do europeu de meia idade, culto, glamouroso, bem nascido e educado que se apaixona e faz de tudo, vida e morte por essa ninfeta norte-americana de vida e valores bem banais (revistinhas de artistas de cinema, vitrola, mau humor, uma mãe com quem brigar, entre o sofá velho e as bugigangas mexicanas) provocou um verdadeiro escândalo. Os desvios estão ali postos em cena, no que concerne a moral sexual vigente. O texto escancara esse viés do desejo de um homem por uma jovenzinha que, no fim das contas, nem era tão guria assim. O livro foi recusado por quatro editores norte americanos. Tema tabu, dizia Nabokov. Ainda mais que Humbert casa com a mãe de Lolita somente para ficar com a filha, sem a menor culpa, para ser, além de tudo, o seu papaizinho. Esse “frisson” acerca de um homem e sua garotinha nos EUA, nos anos cinquenta, teve também sua expressão pública e internacional com a polêmica que se armou em torno da vida amorosa e sexual de dois músicos bem conhecidos, dois “pais” do rock, Chuck Berry e Jerry Lee Lewis. Ambos pelas mesmas razões, escolheram jovens passando da puberdade para a adolescência. Jerry Lee Lewis casa com a prima de 13 anos. Os dois músicos terão suas vidas e carreiras musicais atacadas, afetadas, marcadas por essa escolha. Ficaram na história também como representantes do “desviante” no social. Chuck Berry era negro, já atraia a visada racista, Jerry Lee, branco mas tocando música de negros, e logo o rock, que era explicitamente apontado como música do diabo, sedutora, desencaminhadora, perigosa. Jerry Lee e Chuck Berry, por sua vez, não deixavam por menos, faziam jus a essa imagem do desviado com suas reações fortes e agressivas. Quem viu o filme Great Balls of Fire pode ter bem essa dimensão. Jerry Lee Lewis aparece em seus shows incendiando os pianos, enquanto sua jovem esposa, em outra cena, faz as compras como se estivesse numa grande loja de brinquedos, literalmente brincando de casinha.
Em Lolita, a marca do desviante é desdobrada pelo menos em três vias : na caracterização do personagem, Humbert, no rumo que vai tomar a vida de Lolita, e ainda no que se estabelece como a viagem e seus roteiros. Humbert já nas primeiras frases dirige-se aos senhores e senhoras do júri, nisso tomando para si o lugar do réu e a denominação de criminoso. Mais adiante nos faz saber de suas várias internações em hospitais psiquiátricos, onde descobria suas fichas com as classificações que o divertiam — “potencialmente homossexual” ou “completamente impotente”. Defende-se pedindo simplesmente à comunidade a permissão para prosseguir na chamada “conduta aberrante, mas praticamente inofensiva nos seus pequenos, ardentes e úmidos atos de anormalidade sexual”, sem que a polícia e a sociedade se lancem contra. “Somos cavalheiros infelizes, suaves, de olhar humilde, suficientemente integrados na sociedade para que controlemos nossos impulsos em presença de adultos, mas dispostos a dar anos e anos de vida em troca da oportunidade de acariciar uma nymphet.” É curioso o deslizamento de sentido nesta frase — controlamos nossos impulsos em presença de adultos — pois é como se ele pode nisso estar excluído de “adultos”, se posicionar fora do lugar “adultos”.
Lolita. Saída da puberdade, entrada na adolescência com tudo o que se tem direito nessa idade. Instável, ora de mau humor, ora alegre, respondona, um pouco desleixada e suja, meio metida, curiosa, provocadora, graciosa e desengonçada, e, aos olhos de Humbert, desejável da cabeça aos pés. Lolita, ao ser alvo de sua paixão, vai ter a vida revirada. A mãe casa com Humbert e morre atropelada quando sai de casa enlouquecida ao descobrir o interesse do marido novo pela filha. Assim que Lolita perde a mãe, ganha um padrasto apaixonado, e sai direto de um acampamento de férias desses que a gente vê nos filmes, para a vida nos motéis. Sai da adolescência comum para virar uma pequena rainha/tirana.
Terceiro ponto — a viagem. O inicio da viagem que vai ser a vida em comum, por alguns anos, de Humbert e Lolita, já é um desvio cuidadoso do fato de que a mãe morreu. Ele a busca no acampamento, sem revelar essa morte. O que vem na sequência é uma sucessão de roteiros, é por onde Nabokov vai apresentando a América “on the road”, (boa parte do livro foi escrita em casas de campo e motéis nas regiões do Arizona e do Oregon por onde Nabokov foi se hospedando) mas é ao mesmo tempo uma sequência de hotéis e motéis de todos os tipos, dos mais tradicionais, caseiros, aos mais baratos “beira de estrada”, um desenrolar de entradas e saídas, não é para que eles sejam descobertos nem localizados — é o cuidado com os quartos, as marcas nos lençóis, os recepcionistas e os hóspedes. Mesmo quando eles se instalam em uma pequena cidade onde Lolita vai à escola, é para manter a fachada de pai e filha, a fachada da estrada principal aos olhos do social. Esse jogo eles jogam em parceria.
Me pareceu interessante o elemento da viagem, do trilhar os Estados Unidos pelas estradas pois evoca justamente esse rumo da literatura norte-americana “on the road” que surge no final da década de 40, poucos anos antes de Lolita, então, como a expressão da chamada “geração beat”, aqueles jovens desviantes que criam este estilo de narrativa em poesia e em prosa.
Talvez a mestria de Nabokov em desdobrar a dimensão dos desviantes seja de alguma maneira tributária da sua própria história. Em 1919 um “rebanho de Nabokovs”, como ele diz em sua autobiografia, fugiu da Rússia para a Europa Ocidental, saídos em função da Revolução Russa, iniciando aí seu exílio. Foi estudar em Cambridge, tempo do qual não guardou muito boas recordações. Relata ter ficado, nesse primeiro passo no exílio com um medo mórbido — o de perder ou corromper, devido à influência estrangeira, a única coisa que trouxera da Rússia : a língua.
Podemos dizer que Nabokov foi, ele próprio um viajante encantado, pois além dos escritos em russo acabou sendo um dos maiores escritores contemporâneos em língua inglesa. Para fazer o que fez em termos de obra em uma outra língua que não a sua de origem é preciso ter se deixado mergulhar, seduzir por essa outra estrangeira. É bem verdade que isso aconteceu desde muito cedo na sua vida, tendo ele escrito primeiro em inglês, antes do russo. Uma das lembranças infantis que relata em seu Speak Memory é a da mãe lendo para ele à noite, antes de dormir, histórias em inglês.
Seduzir é também, por definição, atrair, encantar, fascinar, deslumbrar. Se por um lado Humbert planeja e executa um plano de sedução sobre Lolita, ele é, ao mesmo tempo o seduzido, o atraído, o deslumbrado. Em Don Juan isto também acontece, ele é aquele que seduz as mulheres, mas tem seu caminho desviado a cada vez em que se apresenta o “odor di femina”. Guardadas as diferenças. O que Humbert ressalta é que a nymphet não é uma “femina”. É uma figura pubescente perfeita, tão diferente de uma mulher como alhos de bugalhos. O “que” portado pela nymphet não é uma qualidade do senso comum como beleza ou graça, e vai depender justamente do olhar de quem a vê. Nabokov nos mostra muito bem através de Humbert o poder da sedução, o brilho, o fascínio representado em uma parcialidade. Em um momento são as maçãs do rosto, noutro o tom da pele, ou os anéis do cabelo cobrindo um joelho esfolado, ou esse momento exemplar : “outra ocasião, uma colegial de cabelos ruivos dependurou-se sobre mim no metrô, e uma revelação de pelos axilares que obtive permaneceu em meu sangue durante semanas.” O que aparece “amplificado” aí é relativo a essa qualquer coisa, um detalhe, um relance. É uma parcialidade que faz a captura.
Fascinar é um termo que contém fasces, o feixe latino que também origina fascismo, onde seu sentido original é o de amarrar (como num feixe), atar, prender, assujeitar (ref. R. Mezan, vide notas). Nesse sentido seduzir tem a ver também com essa violência refinada, com o ganho de um poder sobre o objeto da sedução. Talvez este seja o recanto onde Lolita se instale frente a seu parceiro. Uma das condições de sustentação da sedução é a não entrega, é esse jogo de subtração. “Ela jamais vibrou sob o meu contato”, Humbert se queixa. “Ao país das maravilhas que eu tinha para oferecer-lhe, a minha tola preferia o mais reles cinema de esquina, o mais enjoativo bombom.” No entanto Lolita negociava com Humbert — tantos dólares, ou cents por um abraço especial, uma carícia mais demorada (suborno é também um dos termos presentes entre os que designam o seduzir). Fica difícil de situar nessas promessas, negociações e concessões quem é que começou. “ A sedução é um jogo em cadeia, e o bom seduzido é sempre um bom sedutor” (ref. L. P. Moisés, vide notas). O seduzido consente em ser enganado, e também engana o sedutor. Lolita nisso tinha seu espaço, jogava os seus dados, mesmo que por vezes ao estilo infantil, para que Humbert a deixasse fazer isso ou aquilo, tal ou qual programa. Os roteiros das viagens seguiam em grande parte seus caprichos, as montanhas de presentes frequentemente eram para adoçá-la, e por aí vai. O assujeitamento, o aprisionamento em que eles se encontram aparece. Nos dois sentidos, mão e contramão : “a minha nymphet colegial me mantinha escravizado”, “eu era fraco e ela se aproveitou disso”; como o inverso : “…na posse e escravidão de uma nymphet, o viajante encantado se encontra, por assim dizer, para além da felicidade.”
As fantasias se apresentam. Lolita, ao referir-se ao hotel em que ficaram e transaram pela primeira vez diz algo como — Ah, aquele hotel em que você me estuprou… Enquanto que a versão de Humbert para a mesma cena é até de uma certa surpresa por Lolita se oferecer a ele tentando mesmo mostrar alguma técnica, alguma experiência. Em outra passagem, num momento de irritação ela diz — tem nome para isso que a gente faz : incesto! Uma fala que o instalaria muito diretamente no lugar de pai. Então, em Lolita poderia haver a tentativa de realização da fantasia de ser violentada pelo papai, o que não é nada incomum para as meninas nas suas fantasias sexuais adolescentes — serem forçadas ao sexo por um homem adulto que se aproveite delas. Humbert, por sua vez, sabe que o que possuía em Lolita não era ela mas sim sua própria criação, uma outra e fantasiosa Lolita, sobrepondo-se a ela, envolvendo-a, transformando-a. Dolores, Lo, Dolly, Lola, Annabel, o amor da adolescência, ou mesmo Carmen, a cigana sedutora. Ele chega a estabelecer o seguinte : “pode ser que a mesma atração que a imaturidade exerce sobre mim resida não tanto na limpidez de uma pura, clara e proibida beleza de criança, como na certeza de uma situação em que infinitas perfeições preenchem a lacuna entre o pouco que é dado e o muito que é prometido…”
A sedução navega nas promessas.
Nós sabemos que essa visada de realização perfeita, sem faltas, está fadada ao fracasso, é impossível. Humbert aspirava ser o pai, o professor, o pediatra, o “tudo” para Lolita. Um impossível faz com que as promessas, inerentes a toda sedução, não possam se cumprir na perfeição, a decepção é inevitável. Num belo dia Lolita some, vai embora. As coisas acontecem como se a sedução terminasse por levar a uma destruição do desejo, no seguinte sentido: seduzir é tornar-se senhor do desejo do outro, o que termina proibindo o outro de ser desejante. Do outro lado, ser seduzido é deixar-se escravizar ao desejo do outro para não precisar desejar mais nada. Nessa via, fixar-se no canto da sereia é imobilizante, é mortífero. No texto temos a morte de Charlotte, o assassinato de Quilty, a prisão de Humbert e a morte de Lolita. Isso não vai no sentido da moral, parece um pouco mais com as tragédias, como Carmem, tão citada.
Uma observação a mais — o nascimento da psicanálise passa de uma forma muito particular pela questão da sedução. Freud, quando escuta suas primeiras pacientes, vai chegando à conclusão de que praticamente todas tinham passado na infância por uma experiência de sedução por parte de um adulto, uma espécie de abuso sexual acontecido na infância. Ele estranha, será que todas as histéricas foram abusadas por seus pais? Mais tarde chega à conclusão de que isso não correspondia a uma ação acontecida na realidade, mas que fazia parte da fantasia de suas pacientes. É o caminho para formular a concepção de uma outra realidade, não a realidade sensível, mas a realidade psíquica. O que se apresenta a Freud pela trilha da sedução não é uma “mentira” das pacientes, mas sim a fantasia que indica o caminho do desejo. Nesse sentido, desviantes somos todos nós, humanos, que temos nossos desejos sustentados pelas fantasias que nos atravessam.
O que Nabokov traz com Lolita é uma marca da condição humana. Dito nas palavras fortes, com seu estilo impressionante: a labareda na carne.
Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Referências Bibliográficas:
NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo. Abril S. A Cultural e Industrial, 1981.
NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.
NABOKOV, Vladimir. A pessoa em questão – uma autobiografia revisitada. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo. Companhia das Letras, 1990.
RIBEIRO, Renato Janine (organizador). A sedução e suas máscaras : ensaios sobre D. Juan. São Paulo. Companhia das Letras, 1988.
Pois é. Andei lendo sobre o Caso Roman Polanski e — apesar de considerar a pedofilia o crime mais grave antes do assassinato — há tantos, mas tantos detalhes, que não sei o que eu decidiria em um juri. Os anos 70 eram diferentes. Polanski, já adentrado nos quarenta anos, namorava meninas de 15, como a grande Nastassja Kinski. Era tudo permitido, como podemos ver por esta surpreendente foto norteamericana de Brooke Shields, aos 11 anos de idade, em 1976.
Se isto não é pornografia infantil, não sei o que é. Saiu na imprensa da época, apesar de ser revoltante a nossos olhos certamente mais esclarecidos. (Digo isso sem nenhuma ironia).
Para meu pasmo, Samantha Gailey foi levada a Polanski pela mãe. E a mãe deixou-a sozinha lá para uma sessão de fotos… E Polanski era uma conhecida e admirada figura pública. E reconhecido por correr atrás de ninfetas. E era aceito pela sociedade menos conservadora. E Samantha, de 13 anos, tinha experiência sexual prévia.
Olha, é tudo muito estranho. O que hoje é um crime indiscutível, não parecia ser grave nos anos 70, apesar do veredicto do tribunal, que foi escolhido a dedo. De resto, calo-me antes que as feministas apareçam com uma argumentação perfeitamente razoável, porém com aquele tom indignado que nos deixa sem opções. Ou respondemos e somos sexistas (acusação falsa), ou ficamos quietos e somos indiferentes (acusação falsa), ou rimos e somos o pior tipo de rastejante (acusação que minha modéstia impede de considerar 100% falsa).
Eu tive um chefe que, quando alguém cometia uma mancada por ingenuidade, dizia:
— Falta bordel naquele corpo.
Bem, eu nunca fui a um bordel nem paguei por sexo e era dos que menos cometiam mancadas, mas entendia perfeitamente o que ele queria dizer. Há gente que está tão fora da existência moral comum que não pode medir a extensão daquilo que diz e faz. Há gente que aprendeu tão pouco a respeito do mundo onde vive que é capaz de cometer as maiores agressões sem dar-se conta.
Ontem, o cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano (espécie de vice-Papa) — certamente um tolo — , disse que os casos de pedofilia têm mais a ver com o homossexualismo do que com o celibato. Hum… E completou: “”Muitos psicólogos e psiquiatras demonstraram que não há ligação entre celibato e pedofilia, mas muitos outros demonstraram, ouvi dizer recentemente, que há uma relação entre homossexualidade e pedofilia“, disse Bertone em entrevista coletiva em Santiago, no Chile, quando perguntado se o fim do celibato ajudaria a reduzir os casos de abuso cometidos por religiosos. “Essa é uma doença que atinge todos os tipos de pessoas, e padres em uma escala menor em termos percentuais”.
Esta não é só uma opinião burra, é mais do que isso. É preconceituosa, é homofóbica. Se não parecesse tanto uma piada, talvez fosse uma grande agressão. Busca agredir The Usual Suspects (Os Costumeiros Suspeitos), aqueles que são os causadores de grande parte dos males da humanidade, os homossexuais, que agora são, no dizer da sumidade Bertone, os verdadeiros pedófilos. A igreja católica odeia os gays, vira e mexe e lá vêm a homofobia. O bom é que os gays não estão nem aí, apenas desprezam a igreja.
E então chegamos ao post de ontem do Rafael Galvão. É só uma frase:
A única coisa que não consegui entender ainda em toda essa confusão católica é por que a Igreja considera mais aceitável que seus padres façam sexo com crianças do que com adultos.
E então chegamos à ilha de Malta, que deverá receber o Papa Ratzo ainda no mês de abril. Vejam abaixo o que fizeram com alguns cartazes promocionais relativos à efeméride… Tsc, tsc, tsc.
A psicóloga e sexóloga portuguesa Marta Crawford recusou, nesta terça-feira, qualquer ligação entre pedofilia e homossexualidade, dizendo não compreender qual o objetivo da Igreja Católica ao tentar estabelecer esta relação. Abaixo as declarações da sexóloga depois de o cardeal Tarcísio Bertone ter dito que a pedofilia era mais culpa da homossexualidade do que do celibato:
«Não vejo qualquer relação entre pedofilia e homossexualidade. A pedofilia não é só relacionada com comportamentos com pessoas do mesmo sexo. Logo aí a relação nem sequer se coloca. Ser pedófilo não significa ter relações com pessoas do mesmo sexo, significa ter relações forçadas com pessoas de outra idade», afirmou Marta Crawford.
«Não sei qual é o objetivo da Igreja ao tentar meter tudo junto. A Igreja quer com isso provar o quê? Não percebo a intenção», questionou ainda.
Para a especialista, é importante sublinhar que a pedofilia é «uma situação clínica diagnosticada», enquanto a homossexualidade «não é uma doença» e «nada tem a ver com situações de abuso sexual sobre outros».
Ainda assim, Marta Crawford rejeita igualmente uma relação entre pedofilia e celibato: «Existem muitos pedófilos que nada têm a ver com a Igreja. Parece-me demais tentar dizer que todos os homens da Igreja sujeitos ao celibato são potenciais pedófilos. Não é a circunstância que fabrica pedófilos, existe uma situação clínica por trás e essa é uma questão mental».
Ultimamente, eu tenho lido Freud, sabem? (Qualquer dia desses, vou dar aulas ao Dr. Cláudio Costa!) Eu acho curioso que o pateta Bertone cite psicólogos e psiquiatras. Na minha opinião, estes são filhos de um dos homens mais honestos intelectualmente que já li e que melhor comprovaram a infantilidade intrínseca da religião. Eu adoriaria presentear o bocó Bertone com O futuro de uma ilusão. Nesta pequena obra, o homem do charutão explica as coisas tão bem que nem vale a pena explicar em detalhes porque os homens de deus não deveriam citar psicanalistas.
O documentário Loki – Arnaldo Baptista, de Paulo Henrique Fontenelle, me interessou tanto por suas antológicas imagens e filmes dos Mutantes, quanto pelo que tem de humano. Os Mutantes eram um trio acompanhado de baixo e bateria. Rita Lee cantava e fazia gracinhas — era fundamental ao grupo e a seu líder –, Sérgio Dias era um tremendo guitarrista e Arnaldo, irmão de Sérgio, era o líder musical e principal compositor. A sinceridade dos entrevistados e a tentativa de Arnaldo “organizar-se” para o filme são comoventes, com destaque para a franqueza de Roberto Menescal, que diz, com todas as letras, que concordou em produzir Loki — o grande álbum solo de Arnaldo Baptista — por achar que estava participando de um momento histórico, ou seja, que colocaria seu nome na gravação do disco do drogado maluco do maior grupo de rock brasileiro.
Senti falta de algumas explicações no documentário, mas logo após recuei, pensando que o período LSD de Arnaldo deve ter sido tão insuportável para quem estava próximo que é natural seus silêncios. Rita Lee, sua demissionária mulher na época, não é entrevistada e Sérgio Dias passa ao largo de explicar as décadas (mesmo!) que passou sem ver seu irmão. Bem, se os deprimidos já são pessoas chatas para os não-deprimidos, o que dizer de um drogado que viaja à Florença a fim de avisar a um amigo que o estava nomeando para comandante de sua nave espacial… (sério!). Imagino o grau de loucura e, quem sabe, de violência que não terá ocorrido na separação de Arnaldo e Rita.
Cê tá pensando que eu sou loki, bicho?
Sou malandro velho
Não tenho nada com isso
A gente andou
A gente queimou
Muita coisa por aí
Arnaldo é um sobrevivente de bela biografia: atirou-se do quarto andar de uma clínica, passou um bom tempo em coma, foi abandonado pela família no hospital e salvo por uma fã que o visitava diariamente e que á casada com ele até hoje. Baita história, deu um baita filme.
(Absolutamente imperdível é a apresentação dos Mutantes com Gilberto Gil no Festival da Record, com arranjo do maestro Rogério Duprat, cantando “Domingo no Parque”. O mesmo vale para Os Mutantes interpretando Panis e Circensis na TV.)
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Em minha opinião, Stellaé bastante superior a Entre os Muros da Escola a começar pelo fato de que me interessa muito mais o ontológico do que o sociológico. Entre os Muros pode ser contado em poucas palavras; Stella, nunca. O filme narra a história de uma menina cujos pais moram com ela num bar. Eles têm um apartamento no andar de cima e o bar fica embaixo. É um bar de bêbados… Muita música e baruho. Seus pais trabalham demais, brigam demais, bebem sem parar e fumam como chaminés. Um dia, a menina recebe uma bolsa para entrar num famoso colégio de Paris e ali começa a observar a existência de seus colegas. Primeiro, rejeita a escola; depois, faz amizade com uma judia argentina perfeitamente adaptada ao ambiente escolar (e é a melhor aluna da turma) e a amizade cresce. O confronto entre os dois mundos — um organizado, burguês e culto; outro caótico e violento, onde está onipresente certa pressão à pedofilia — é explorado até o fim pela diretora Sylvie Verheyde, que, sem ter de apelar para longos discursos, consegue sugerir nuances a partir de interpretações pré-adolescentes.
É um filme delicado e pesado, que não dramatiza excessivamente os problemas, mas também não os evita. E, junto com O Casamento de Raquel, forma a dupla de melhores filmes que vi no primeiro semestre de 2009.
Faz uns cinco anos, uma amiga minha que é muito bonita, foi a um evento político aqui em Porto Alegre. Lá, conheceu Fernando Lugo. Não, não engravidou, mas me contou. O cara tinha todo o jeito da religioso que fez a opção pela pobreza e, de sandálias, disse que seria candidato à presidência do Paraguai. Ela não deu muita bola para os planos do ex-bispo nem para a parte política, prestou mais atenção no sorriso contagiante, na simpatia e nas piadas. Típico. Ano passado, num jantar aqui em casa, voltou a falar no bispo:
— Viram? Meu bispo será presidente do Paraguai, claro. Ele é cheio de charme, um verdadeiro “hot” bispo. Receberia tranquilamente meu voto…
Arrã. Lugo ocupou as manchetes na semana passada. Ele confirmou ter um filho de 10 anos e pululavam mais dois candidatos a filhos seus na mídia. Estes dois logo transformaram-se em seis. Provavelmente irá para o Guiness como o homem que mais fez exames de paternidade. Sua biografia é exemplar: infância pobre, família perseguida por Alfredo Stroessner, noviciado em 1970 (19 anos), padre em 1977 (26 anos), aproximação com a Teologia da Libertação, bispo em 1994 (43 anos), ex-bispo em 2004 (53 anos), presidente do país em 2008 (57 anos). Mesmo antes de tornar-se padre, Lugo sempre confessara a amigos um plano: aos 55 anos, largaria a Igreja para escrever, dar aulas, casar e ter filhos. E, bem, sexo é algo de que ele aparentemente nunca abriu mão.
Eu realmente não gostei do debate que se criou sobre o caso. Todos discutiam a queda de popularidade e o ocultamento da verdade. OK, são fatos políticos, mas podem ser perfeitamente passageiros. Poucos discutiram que, em 2004, o Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (CERIS) fez uma pesquisa onde 41% dos padres brasileiros admitiram terem tido relações sexuais depois de ordenados. Nem todo mundo consegue ficar só na masturbação, como Ratzinger. E pouquíssimos citaram o fato de Lugo ter-se afastado aos 53 anos, quando o natural é fazer isto lá pelos 75 anos — tal fato não apontaria para uma oposição de consciência?
O celibato é uma regra criada há 1000 anos; é, portanto, posterior ao cristianismo. Porém… O que me surpreende mesmo é que não li em nenhum lugar o motivo principal de sua existência: a Igreja Católica não quer ver padres com famílias e filhos pois eles teriam HERDEIROS e estes seriam incômodos para quem sempre se utilizou do trabalho dos padres, da fé e da liberação do pagamento de impostos para ficar mais rica, ops!, desculpem, para que as obras de suas vidas dedicadas a deus ficassem não para mulheres e filhos e sim para a Santa Igreja Romana.
Acho que a crise de confiança do eleitorado paraguaio em relação a Fernando Lugo poderá ocorrer assim como aconteceu com FHC, que não era bispo mas tem filho fora do casamento. Hoje, poucos falam em FHC como pai de “filho ilegítimo” (expressão horrível e preconceituosa). O Paraguai não é os EUA e alguém poderia espalhar por lá que o celibato é desumano. Alguns padres, inclusive, acabam envolvendo-se com adolescentes de mesmo sexo, lembram…? A Igreja sabe disso e a prova é que relaxou as punições por desvios sexuais aos padres. Elas foram reduzidas no Código de Direito Canônico. Ou seja, defendido o Santo Dinheiro, que grasse a pedofilia!
— Sabias que tens algo em comum com o FHC, papito? — Si, nuestro nombre es Fernando…