Eu tinha 16 anos e simplesmente precisava conhecer a Sinfonia Nº 10 de Shostakovich. Era o inverno de 1973. Shostakovich, imaginem, ainda estava vivo — ele faleceu em 1975. Então escrevi uma carta — sim, papel, selo, envelope, correio — para a Rádio da Universidade, dirigida ao programa Atendendo o Ouvinte. Duas semanas depois, pude ouvir a maravilha deitado em minha cama. Hoje é muito fácil ouvi-la.
Shostakovich foi provavelmente o único compositor nascido no século XX a desenvolver um tipo de sinfonia instantaneamente reconhecível, que poderia estar ao lado das de Beethoven, Mahler ou Sibelius. Embora cada uma das sinfonias de Shostakovich tenha suas características distintivas, elas compartilham muito uma com a outra. A maioria delas se baseia nos movimentos tradicionais, com scherzo, adagio, alegretto, etc. O que Shostakovich fez com essas categorias, no entanto, foi único. Seus scherzi, sombrios e sarcásticos, não são como quaisquer outros — haverá o exemplo em vídeo do scherzo da décima abaixo –, e seus movimentos de abertura, muitas vezes mais lentos do que o que se está acostumado, também são inconfundivelmente seus.
Sua Sinfonia Nº 10 é um monumento da arte contemporânea que contém música absoluta, intensidade trágica, humor, ódio mortal, tranquilidade bucólica e paródia. Tudo isso em esplêndidos quatro movimentos. Tem, ademais, uma história bastante particular. Stálin…
A Sinfonia Nº 10, Op. 93, foi estreada pela Orquestra Filarmônica de Leningrado sob regência Yevgeny Mravinsky em 17 de dezembro de 1953, após a morte de Joseph Stálin em março daquele ano. Não está claro quando foi escrita: de acordo com a composição das cartas do compositor foi entre julho e outubro de 1953, mas a extraordinária pianista e colaboradora Tatiana Nikolayeva declarou que foi concluída em 1951, quando o compositor estava proibido de estrear obras pelo regime soviético.
Em 1948, Shostakovich, Prokofiev, Khachaturian e outros notáveis compositores da URSS foram censurados por escrever o que os censores do partido chamavam de música “formalista”, uma palavra-código para dissonâncias e expressões de emoções negativas ou cinismo. Naturalmente, examinados contra tais padrões vagos, virtualmente qualquer composição estava vulnerável a ataques, e muitos trabalhos de Shostakovich foram criticados. A partir de 1948, a maioria dos compositores do país não tinha certeza do que era seguro escrever.
Como escrevi antes, em março de 1953, quando da morte de Stálin, Shostakovich estava proibido de estrear novas obras e a execução das já publicadas estava sob censura, necessitando autorizações especiais para serem apresentadas. Tais autorizações eram normalmente negadas. Foi o período em que Shostakovich dedicou-se à música de câmara e a maior prova disto é a distância de oito anos que separa a nona sinfonia desta décima. Esta sinfonia, provavelmente escrita durante o período de censura, além de seus méritos musicais indiscutíveis, é considerada uma vingança contra Stálin. Primeiramente, ela parece inteiramente desligada de quaisquer dogmas estabelecidos pelo realismo socialista da época. Para afastar-se ainda mais, seu segundo movimento – um estranho no ninho, em completo contraste com o restante da obra – contém exatamente as ousadias sinfônicas que deixaram Shostakovich mal com o regime stalinista. Não são poucos os comentaristas consideram ser este movimento uma descrição musical de Stálin: breve, absolutamente violento e brutal, enfurecido mesmo. Sua oposição ao restante da obra faz-nos realmente pensar em alguma segunda intenção do compositor.
De qualquer forma, este movimento diabólico tem ecos de obras anteriores de Shostakovich, como a Sexta e Oitava Sinfonias e o Primeiro Concerto para Violino. É, de certo modo, o outro lado do primeiro movimento sério e trágico. Talvez precisemos dessa brincadeira grosseira, antes de seguirmos para um estado mental mais tranquilo.
Abaixo, este segundo movimento da Sinfonia com Andris Nelsons.
Para completar o estranhamento, o movimento seguinte é pastoral e tranquilo, contendo pela primeira vez o famoso tema baseado nas notas DSCH (ré, mi bemol, dó e si, em notação alemã) que é assinatura musical de Dmitri SCHostakovich, em grafia alemã. Ele é repetido várias vezes. Ouvindo a sinfonia, chega-nos sempre a certeza de que Shostakovich está dizendo insistentemente: Stálin está morto, Shostakovich, não. Ou então que o compositor, orgulhoso, diz “Eu escrevo o que eu quero”.
Aqui, Shostakovich toca o tema DSCH ao piano de uma forma extravagante:
O mais notável da décima é o tratamento magistral em torno de temas que se transfiguram constantemente.
Dada a complexidade da Sinfonia e as terríveis experiências de Shostakovich com os críticos do Partido Comunista, é compreensível que o compositor não quisesse comentar sua 10ª Sinfonia em detalhes. Sua declaração para o Sovietskaia Muzyka foi absurdamente auto-depreciativa. Shostakovich, que com tanta frequência fora forçado a exercer autocrítica no passado, agora a levou a um ponto inacreditável: “Como meus outros trabalhos, escrevi isso muito rapidamente. Isso é provavelmente mais um defeito do que uma virtude, porque há muito que não pode ser bem feito quando se trabalha tão rápido”. O que essa afirmação estava tentando fazer era evitar os críticos em seu jogo sujo. Então, minimizou a importância do trabalho. Os críticos engoliram a isca e castigaram a peça apenas por ser “pessimista” e “individualista”. Porém… Os músicos e plateias, por outro lado, assumiram imediatamente a 10ª, tanto na União Soviética quanto no exterior. É uma de suas sinfonias mais frequentemente executadas. Uma compilação recente lista nada menos que 70 gravações.
A Sinfonia completa com o grande Bernard Haitink:
No próximo sábado, às 17h, a Ospa apresenta esta sinfonia na nova Casa da Música da Ospa.
O programa completo do concerto:
Gilberto Salvagni: Concerto para Trompete e Orquestra
Dmitri Shostakovich: Sinfonia nº 10
Solista: Tiago Linck (trompete – Brasil)
Maestro: Stefan Geiger (Alemanha)
Quando: 11 de maio de 2019 (sábado)
Local: Casa da Música da Ospa