Um semana, um texto: O Manifesto de Gandhi sobre a questão judaico-palestina

Um comentarista autodenominado Exigente, do blog de música erudita P.Q.P. Bach, publicou um Manifesto de Mahatma Gandhi (1869-1948) sobre a questão judaico-palestina. Foi escrito em 1938 porém seu conteúdo, feitas as reservas à linguagem e à religiosidade é absolutamente claro e compreensível, apesar de referir-se aos anos 30 do século passado. Foi publicado em My Non-Violence, editado por Sailesh K. Bandopadhaya, Navajivan Publishing House, Ahmedabad, 1960.

Harijan, em 26 de novembro de 1938.

“Recebi muitas cartas solicitando a minha opinião sobre a questão judaico-palestina e sobre a perseguição aos judeus na Alemanha. Não é sem hesitação que ouso expor o meu ponto-de-vista.

Na Alemanha as minhas simpatias estão todas com os judeus. Eu os conheci intimamente na África do Sul. Alguns deles se tornaram grandes amigos. Através destes amigos aprendi muito sobre as perseguições que sofreram. Eles têm sido os “intocáveis” do cristianismo; há um paralelo entre eles, e os “intocáveis” dos hindus. Sanções religiosas foram invocadas nos dois casos para justificar o tratamento dispensado a eles. Afora as amizades, há a mais universal razão para a minha simpatia pelos judeus. No entanto, a minha simpatia não me cega para a necessidade de Justiça.

O pedido por um lar nacional para os judeus não me convence.

Por quê eles não fazem, como qualquer outro dos povos do planeta, que vivem no país onde nasceram e fizeram dele o seu lar?

A Palestina pertence aos palestinos, da mesma forma que a Inglaterra pertence aos ingleses, ou a França aos franceses.

É errado e desumano impor os judeus aos árabes. O que está acontecendo na Palestina não é justificável por nenhuma moralidade ou código de ética. Os mandatos não têm valor. Certamente, seria um crime contra a humanidade reduzir o orgulho árabe para que a Palestina fosse entregue aos judeus parcialmente ou totalmente como o lar nacional judaico.

O caminho mais nobre seria insistir num tratamento justo para os judeus em qualquer parte do mundo em que eles nascessem ou vivessem. Os judeus nascidos na França são franceses, da mesma forma que os cristãos nascidos na França são franceses.

Se os judeus não têm um lar senão a Palestina, eles apreciariam a idéia de serem forçados a deixar as outras partes do mundo onde estão assentados? Ou eles querem um lar duplo onde possam ficar à vontade?

Este pedido por um lar nacional oferece várias justificativas para a expulsão dos judeus da Alemanha. Mas a perseguição dos alemães aos judeus parece não ter paralelo na História. Os antigos tiranos nunca foram tão loucos quanto Hitler parece ser.

E ele está fazendo isso com zelo religioso. Ele está propondo uma nova religião de exclusivo e militante nacionalismo em nome do qual, qualquer atrocidade se transforma em um ato de humanidade a ser recompensado aqui e no futuro. Os crimes de um homem desorientado e intrépido, estão sendo observados sob o olhar da sua raça, com uma ferocidade inacreditável.

Se houver sempre uma guerra justificável em nome da humanidade, a guerra contra a Alemanha para prevenir a perseguição desumana contra uma raça inteira seria totalmente justificável. Mas eu não acredito em guerra nenhuma. A discussão sobre a conveniência ou inconveniência de uma guerra está, portanto, fora do meu horizonte. Mas se não pode haver guerra contra a Alemanha, mesmo por crimes que estão sendo cometidos contra os judeus, certamente não pode haver aliança com a Alemanha. Como pode haver aliança entre duas nações que clamam por justiça e democracia e uma se declara inimiga da outra? Ou a Inglaterra está se inclinando para uma ditadura armada, e o que isso significa?

A Alemanha está mostrando ao mundo como a violência pode ser eficientemente trabalhada quando não é dissimulada por nenhuma hipocrisia ou fraqueza mascarada de humanitarismo; está mostrando como é hediondo, terrível e assustador quando isso aparece às claras, sem disfarces. Os judeus podem resistir a esta organizada e desavergonhada perseguição? Existe uma maneira de preservar a sua auto-estima e não se sentirem indefesos, abandonados e infelizes? Eu acredito que sim. Ninguém que tenha fé em Deus precisa se sentir indefeso, ou infeliz. O Jeová dos judeus é um Deus mais pessoal que o Deus dos cristãos, muçulmanos ou hindus, embora realmente, em sua essência, Ele seja comum a todos. Mas como os judeus atribuem personalidade a Deus e acreditam que Ele regula cada ação deles, estes não se sentiriam desamparados.

Se eu fosse judeu e tivesse nascido na Alemanha e merecido a minha subsistência lá, eu reivindicaria a Alemanha como o meu lar, do mesmo modo que um “genuíno” alemão o faria, e desafiaria qualquer um a me jogar na masmorra; eu me recusaria a ser expulso ou a sofrer discriminação. E fazendo isso, não deveria esperar por outros judeus me seguindo em uma resistência civil, mas teria confiança que no final estariam compelidos a seguir o meu exemplo.

E agora uma palavra aos judeus na Palestina:

Não tenho dúvidas de que os judeus estão indo pelo caminho errado. A Palestina, na concepção bíblica, não é um tratado geográfico. Ela está em seus corações. Mas se eles devem olhar a Palestina pela geografia como sua pátria mãe, está errado aceitá-la sob a sombra do belicismo britânico. Um ato religioso não pode acontecer com a ajuda da baioneta ou da bomba. Eles poderiam estabelecer-se na Palestina somente pela boa vontade dos palestinos. Eles deveriam procurar convencer o coração palestino. O mesmo Deus que rege o coração árabe, rege o coração judeu. Só assim eles teriam a opinião mundial favorável às suas aspirações religiosas. Há centenas de caminhos para uma solução com os árabes, se descartarem a ajuda da baioneta britânica.

Como está acontecendo, os judeus são responsáveis e cúmplices com outros países, em arruinar um povo que não fez nada de errado com eles.

Eu não estou defendendo as reações dos palestinos. Eu desejaria que tivessem escolhido o caminho da não-violência a resistir ao que eles, corretamente, consideraram como invasão de seu país por estrangeiros. Porém, de acordo com os cânones aceitos de certo e errado, nada pode ser dito contra a resistência árabe face aos esmagadores acontecimentos.

Deixemos os judeus, que clamam serem os Escolhidos por Deus, provar o seu título escolhendo o caminho da não-violência para reclamar a sua posição na Terra. Todos os países são o lar deles, incluindo a Palestina, não por agressão mas por culto ao amor.

Um amigo judeu me mandou um livro chamado A contribuição judaica para a civilização, de Cecil Roth. O livro nos dá uma idéia do que os judeus fizeram para enriquecer a literatura, a arte, a música, o drama, a ciência, a medicina, a agricultura etc., no mundo. Determinada a vontade, os judeus podem se recusar a serem tratados como os párias do Ocidente, de serem desprezados ou tratados com condescendência.

Eles podiam chamar a atenção e o respeito do mundo por serem a criação escolhida de Deus, em vez de se afundarem naquela brutalidade sem limites. Eles podiam somar às suas várias contribuições, a contribuição da ação da não-violência.”

11 comments / Add your comment below

  1. Apenas uma observação: não considero a religiosidade de Gandhi sujeita a restrições ,já que ela obviamente informa boa parte de seu humanitarismo, é a base mesma dessa postura pela qual ele está sendo exaltando.

  2. belíssimo texto.
    judeus sionistas costumam usar uma promessa feita ao patriarca Abrãao (multiplicaria a descendencia e daria a terra) para alegar herança da terra (livro do Gênesis). Mas parece que esquecem que o mesmo livro traz a promessa do mesmo Deus ao outro filho de Abraao, Ismael, tido como pai fundador da nação árabe.
    fui consultar as tais promessas divinas e vi que há uma passagem no gênesis que diz que, no futuro, o menino Ismael (cujo irmão ‘legítimo’ é Isaque) seria “como um animal selvagem”, sempre em “confronto com seus irmãos” e que “moraria para sempre fronteiro com eles”.

    não consegui encontrar o link desse extraordinário texto-comentário no pqp bach. vou citá-lo no meu blog e linkar na sua postagem. pode ser?

  3. Eu concordo com o Henrique a respeito da religiosidade de Gandhi. Eu não pussuo nenhuma crença, infelizmente, mas acho que a religiosidade pode ser tocante, seja numa obra de arte sacra, seja numa posição humanística como a dele. O texto é realmente belíssimo e eu acho extraordinária, e triste, a sua atualidade.

  4. Gandhi, nas suas palavras, parece se formar claramente nas minhas imagens mentais. Vejo-o a carregar os punhados de sal. Talvez a mensagem dele, nos dias de hoje, seja busque razões e soluções para a sua vida que sejam melhores do que o consumismo, seja de sal ou do que for. Se desapegue da matéria, tenha equilíbrio em todo seu ser, esteja alinhado com o Bem Maior das forças da Criação. Gandhi é um portador de shanti, a paz espiritual. Uma criança que se libertou dos casulos do mundo. Um espírito muito evoluído. Ele resolveu muitos conflitos religiosos na Terra. Sua mensagem universalista quebrava qualquer modelo de fanatismo. Foi capaz de citar o Sermão da Montanha de Jesus, para que as pessoas entendessem a importância da paz. Jesus e Gandhi fizeram ótimas plantações, e eles terão a colheita do fruto da vida, nem que seja temporão. O grão da vida que parecia estar morto na Terra, agora, começa a surgir. Muitos surgem na Terra em forma de temporão, para iluminar e transformar a humanidade. Existe uma música do Almir Sater, chamada Semente, que fala justamente sobre a questão do grão temporão. Tal música parece dizer uma mensagem a respeito disso. Vivemos, às vezes, momentos de geada, de trevas, mas tudo se transforma. Como diz a música, “da semente sai futuro, nem que seja temporão”. Termino por lembrar outra fase da música. “Esse ano com certeza desengano vai ter fim, natureza tem seu planos, mas não sabe ser ruim”.

    Visite minha Casa, quando puder.

    http://casadojulianosanches.blogspot.com/

    Paz e luz.

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