Recebi uma intimação para responder este questionário. Na verdade, acho um saco estes pedidos e sempre os ignoro, mas como é sobre literatura, vamos lá. Tentei descobrir o primeiro autor das perguntas, mas entreguei os pontos.
1. Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Esta pergunta é sobre que livro gostaríamos de SER. Interessante. Então, desejaria ser alegre. Sugeriria tornar-me a Modesta proposta para evitar que as crianças da Irlanda sejam um fardo para os seus pais ou para seu país de Jonathan Swift. Opcionalmente poderia ser o irresistivelmente cômico Uma Confraria de Tolos de John Kennedy Toole ou quem sabe — tornando-me mais reflexivo, sutil e elegante — os esplêndidos Contos de Machado de Assis. Em qualquer um dos casos, porém, seria muito solicitado pelos ouvintes; seria popularíssimo, sem dúvida.
Quem não leu Fahrenheint 451 ou não viu o filme de mesmo nome de François Truffaut, ficará sem entender a última frase do parágrafo anterior… ou talvez tudo.
2. Já alguma vez ficaste apanhadinho(a) por um personagem de ficção?
Sem dúvida, este questionário veio de Portugal. Apanhadinho é igual a “ficar caidinho” ou “ficar apaixonado”.
Uma vez, numa roda de amigos discretamente alcoolizada, uma das mulheres perguntou aos homens presentes quais teriam sido as mulheres de suas vidas. Por azar, coube a mim ser o primeiro a responder. Sou dono de proverbial franqueza, de lendária sinceridade e, depois de olhar para minha insegura cara-metade da época, declarei: a mulher de minha vida é certamente alguém que quis e nunca tive e da qual só imagino delícias, perfeições, calma e carinho. É alguém de quem não conheço os defeitos. A mulher de minha vida é… E disse um nome conhecido daquelas pessoas que quedaram-se boquiabertas.
Hoje, fiquei pasmo ao ver que as “mulheres de livros” pelas quais me apaixonei têm igualmente amores irrealizados. A primeiríssima é Sílvia, que aponto polemicamente como a maior personagem de Erico Veríssimo. Ela é a principal habitante de O Arquipélago, terceiro volume da trilogia O Tempo e o Vento. Sílvia é casada com outro, mas seu grande amor é Floriano, com quem apenas dialogava, trocava cartas e a quem escrevia um diário. A segunda é Sarah Woodruff, do romance de John Fowles A Mulher do Tenente Francês e a terceira é Leen do romance Casa sem Dono, de Heinrich Böll. A história de Sarah é muito conhecida, ainda mais depois da indicação de Meryl Streep ao Oscar, no papel de Sarah. Já Leen é obscura. Ela morre aos 19 anos, na página 124 de minha edição, após morar um ano com Albert, personagem principal do livro de Böll. O vendaval de sua entrada e saída em Casa sem Dono destroçou temporariamente minha vida.
3. Qual foi o último livro que compraste?
(Anotação: nunca fazer esta pergunta à Caminhante.)
Foram dois, ambos comprados num sebo: Os Duelistas de Joseph Conrad e A chuva antes de cair, de Jonathan Coe.
4. Qual o último livro que leste?
Foram dois. A Borra do Café de Mario Benedetti e A chuva antes de cair de Jonathan Coe.
5. Que livros estás a ler?
Estou clássico. Leio Ensaios de Montaigne e Os Duelistas de Conrad.
6. Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?
Penso que nunca mais me apaixonarei por livros como na juventude. O que lia durante a adolescência e até os vinte e poucos anos marcou-me muito mais do que qualquer coisa lida depois. Todos os meus livros vêm de lá:
Contos de Machado de Assis (relidos depois);
Contos de Anton Tchekhov (relidos depois);
Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa;
Doutor Fausto de Thomas Mann (relido depois);
Dom Quixote de Cervantes.
Bem, se a fiscalização da ilha fosse camarada, acrescentaria um Manual de Sobrevivência…
Também não gosto de questionários, Milton (exceto quando o Guto responde e me faz rir muito). Mas, coisas que falam de livros com paixão, tem um certo lirismo e eu ando muito, mas muito suscetível aos impulsos que levam à leitura.
Abrimos os livros em busca do que realmente? Sonho? Ficarmos mais acordados, mais inteligentes, mais sensíveis? Será que é nessa busca que está o prazer de ler? Ou ele nada tem a ver com isso. O prazer vem do insondável, do incognissível sobre nós.
Por outro lado, fica nossa relação com os livros (não com a literatura), mas com o objeto físico e aquelas letras que parecem terem sido escritas apenas para nós. Falo daqueles que depois de calarem na alma, se tornam amigos espelhos, tão iguais, tão entranhados em nós, tão parceiros em nossas virtudes e defeitos que relemos continuamente com o entusiasmo da primeira vez, redescobrindo-o a cada leitura, como um amigo encantador se torna mais interessante a cada novo encontro.
Entretanto, como acho que tudo tem sem tempo, nem todo o livro nos diz o tempo todo, alguns precisam de anos e maturidade para conseguirem nos falar. Outros se acomodam em uma época de nossa vida, outros ficam na cabeceira a vida inteira.
Mas, acho que no fim definiste com felicidade esse impulso que tenho buscado desvendar. Talvez, o leitor seja esse que procura o encantamento daquele primeiro livro mítico. Daquele que ficou perdido em algum lugar da memória, mas que o maravilhou de tal forma, que lembra o vício em heroína, como se nunca mais a primeira viagem fosse possível.
Não sei se faço muito sentido, mas foi o que ficou na minha mente.
Abração.
Uma mulher por quem me apaixonei, e acredito que não fui o único, foi a princesinha de Guerra e Paz. Como li duas vezes esse livro_ uma aos dezessete, outra aos trinta_ meu sofrimento acompanhou a estatura de minha maturidade emocional. A primeira vez em que a vi morrer no quarto sombrio daquela mansão aristocrática, assimilei a perda como a definitiva incapacidade em encontrar o amor verdadeiro, o amor desabnegado dos dezessete anos. Tendo incorrido em abrir a cicatriz depois de 15 anos, a princesinha que me fora retirado para sempre era um tanto mais inacessível, sua partida um tanto mais do tamanho da capacidade de resignação que a experiência me outorgara. Mas novamente o velho Tolstoi, o meu orgulho da raça, me fizera chorar, porque a morte na literatura é mais cruel e desonesta do que na realidade, porque vem moldada na beleza terrível de que alguma coisa preciente e inconcebível a justifica.
O livro que gostaria de ser, ai,ai. Pensei na dureza amarga de qualquer um de Faulkner, na onipotência da Montanha Mágica, na felicidade de alguma cançãozinha assobiada de Juan Ramón Jiménez, ou talvez apenas a absoluta inspiração do menor e mais completo conto do mundo, do Augusto Monterroso_ “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”_, mas uma voz teimosa da infância teima em me colocar na hipótese da encarnação de algum daqueles livrinhos que me cativaram a alma aos dez anos, “As Aventuras de Xisto”, “O Cavalo Mágico”, “A Mina de Ouro”. Livros que nunca tive a audácia de revisitar para não corromper a compreensão concentrada daquela época.
Meus 5 melhores livros_ não o que levaria para uma ilha deserta, pois nesse caso, se fosse um náufrago, parafraseando, levaria um manual de construção náutica:
Ensaios, de Montaigne;
Montanha Mágica, de Thomas Mann;
Anna Karenina, Tolstoi;
Os Demônios, Dostoévski,
e O Legado de Humbold, de Saul Bellow.
Esta educação é dialética. A literatura faz de nós melhores observadores da vida; e permite-nos exercitar o dom na própria vida; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na literatura; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na vida. E assim sucessivamente.
James Wood, “A mecânica da ficção”
Quetzal, 2010 (Editora portuguesa)
Trad. Rogério Casanova
E temos necessidade de ficção, não?
Eu concordo com James Wood. Eu acho que a literatura nos faz melhores ou ao menos acentuam aquilo que somos. Vejo isso nas pessoas que leem.
Bj.
Também acho que a leitura nos melhora. Quem lê sabe que o mundo tem mais portas do que aquelas que ele pode ver apenas com seus olhos físicos. Tem leituras que nos abrem tantas portas que chegam a ser angustiosas.
Talvez, por isso, não sei se empregaria a palavra dialética. Quando a leitura transpassa o ser e se incorpora nela, o jogo vai além da troca, por mais complexa que esta seja. Ao menos, comigo, é assim.
A tentação, claro, é responder as mesmas perguntas. Então vamos lá:
1) Pantagruel, de Rabelais. Aula hilária, iconoclasta, iluminérrima, chanchada, escracho e corrosão. Um modelo para os homens de qualquer tempo.
2) Na adolescência por Kamala, do Sidarta de Hesse; mais tarde por Claudia Chauchat (acho que é isso), d’A Montanha Mágica, há pouco por Joana Prado, do maravilhoso romance “O último a sair acende a luz”;
3) Facundo, de Sarmiento;
4) Khadji Murat, de Tolstói;
5) A dama do cachorrinho, de Tchekhov, Dom Casmurro, do Machado, Os Possessos, de Dostoiévski, Contos, de Guy de Maupassant, e A Trégua, do Benedetti. Neste momento. daqui a quinze minutos, outros, mais meia hora, outros mais, e assim por diante. Como pude me esquecer do Kafka?
Também gostei da Joana Prado.
É, acho que o Milton também. Eu tava fazendo um esforço de autopromoção…
Milton, cadê o meu comentário que eu postei aqui??
3. HAHAHAHAHAHAHAHAHA! Não é bem assim! Uma vez, em 1987…
Meu questionário ficaria sem graça. Responderia a mesma coisa para as perguntas 1 e 2. 4 e 5 seriam livros de sociologia. E levaria pra ilha livros que não li de autores bons. Bolaño estaria lá – o que significa que teria que te consultar antes da viagem.
E eu adoraria saber quem é a tal mulher que você citou. Ainda bem que não adiantaria nada você me contar.
Não é bem assim! Uma vez, em 1987…
QUASE COMPREI UM LIVRO…
É porque tinha na biblioteca!
Gostei do “apanhadinho” . Poderia ficar com todas as descritas pelos grandes escritores? Fiz uma versão desse questionário no meu blog. Abraços Milton!