Dmitri Shostakovich (V)

Para Paulo Ricardo Brinckmann Oliveira

Seguimos nossa série iniciada aqui, continuada ali e ainda aqui e acolá.

Sinfonia Nº 13 (Babi Yar), Op. 113 (1962)

Após o equívoco da Sinfonia Nº 12 – lembrem que até Beethoven escreveu uma medonha Vitória de Wellington, curiosamente estreada na mesma noite da sublime 7ª Sinfonia, mas este é outro assunto… -, Shostakovich inauguraria sua última fase como compositor começando pela Sinfonia Nº 13, Babi Yar. Iniciava-se aqui a produção de uma sequência de obras-primas que só terminaria com sua morte, em 1975. Esta sinfonia tem seus pés firmemente apoiados na história da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. É uma sinfonia cantada, quase uma cantata em seu formato, que conta com a nada desprezível colaboração do grande poeta russo Evgeny Evtuchenko (conforme alguns, como a Ed. Brasilinense, porém pode-se encontrar a grafia Ievtuchenko, Yevtuchenko ou Yevtushenko, enfim!).

O que é, afinal, Babi Yar? Babi Yar é o nome de uma pequena localidade situada perto de Kiev, na atual Ucrânia, cuja tradução poderia ser Barranco das Vovós. Ali, em 29 e 30 de setembro de 1941, teve lugar o assassinato de 34 mil judeus pelos nazistas. Eles foram mortos com tiros na cabeça e a participação comprovada de colaboradores ucranianos no massacre permanece até hoje tema de doloroso debate público naquele país. Nos dois anos seguintes, o número de mortos em Babi Yar subiu para 200 mil, em sua maioria judeus. Perto do fim da guerra, os nazistas ordenaram que os corpos fossem desenterrados e queimados, mas não conseguiram destruir todos os indícios. Ievtuchenko criticou a maneira que o governo soviético tratara o local. O monumento em homenagem aos mortos referia-se às vítimas como ucranianas e russas, o que também eram, apesar de se saber que o fato determinante de suas mortes era o de serem judeus. O motivo? Ora, Babi Yar deveria parecer mais uma prova do heroísmo e sofrimento do povo soviético e não de uma fatia dele, logo dele, que seria uma sociedade sem classes nem religiões… O jovem poeta Ievtushenko considerou isso uma hipocrisia e escreveu o poema em homenagem aos judeus mortos. O que parece ser uma crítica de importância relativa para nós, era digna de censura, na época. O poema — o qual tem extraordinários méritos literários — foi publicado na revista Literatournaia Gazetta e causou problemas a seu autor e depois, também a Shostakovich, ao qual foram pedidas alterações que nunca foram feitas na sinfonia. No Ocidente, Babi Yar foi considerado prova da violência antissemita na União Soviética, mas o próprio Ievtuchenko declara candidamente em sua Autobiografia Precoce (Ed. Brasiliense, 1987) que a tentativa de censura ao poema não teve nada a ver com este gênero de discussão e que, das trinta mil cartas que recebeu falando em Babi Yar, menos de trinta provinham de antissemitas…

O massacre de Babi Yar é tão lembrado que não serviu apenas a Ievtuchenko e a Shostakovich, tornando-se também tema de filmes e documentários recentes, assim como do romance Babi Yar de Anatoly Kuznetsov. Não é assunto morto, ainda.

O tratamento que Shostakovich dá ao poema é fortemente catalisador. Como se fosse uma cantata em cinco movimentos, os versos de Ievtuchenko são levados por um baixo solista, acompanhado de coral masculino (formado apenas por baixos) e orquestra. É música de impressionante gravidade e luto; a belíssima linha melódica ora assemelha-se a um serviço religioso, ora aum dos grandes modelos de Shostakovich, Mussorgski; mesmo assim, fiel a seu estilo, Shostakovich encontra espaço para seu habitual sarcasmo.

Tranquila crueldade: soldados alemães examinam as roupas dos mortos em Babi Yar.

“Babi Yar” é como ficou conhecida a sinfonia para coro masculino, baixo e orquestra.  A partir do texto de dura indignação de Ievgueni Evtuchenko e apesar dos problemas que ele geraria na União Soviética pós-stalinista, Shostakovich construiu um painel de extraordinária força em torno de mazelas típicas de seu tempo: o medo e a opressão, o conformismo e o carreirismo, o massacre cotidiano num Estado policial e a possibilidade de superação através do humor e da intransigência.

Em linguagem quase descritiva, combinando a severidade da orquestra com a impostação épica das vozes, “Babi Yar” tem um poder de evocação cinematográfico: raramente se ouviu música tão plástica. O realismo e a imagens dos poemas são admiravelmente apoiados pelo estilo alternadamente sombrio e agressivo da música de Shostakovich. Não obstante o grande efetivo orquestral e a tensão dos clímaxes, as texturas são rarefeitas e o coro, declamando ou murmurando, canta quase sempre em uníssono ou em oitavas — mais um elemento dessa estrutura preparada para expressar a desolação e o nervosismo.

O primeiro movimento alterna estrofes que exploram o horror e a culpa de Babi Yar com relatos de dois outros episódios — o de Anne Frank e o de um menino massacrado em Bielostok. No segundo movimento, ritmado de forma tipicamente shostakovichiana, o tom enfático das vozes falam da resistência que o “Humor” jamais deixará de oferecer à tirania. “Na loja”, o Adagio que se segue, descreve quase fisicamente as filas das humilhadas donas-de-casa numa linha sinuosa à espera de um pouco de comida. Quando chegam ao balcão, o poema diz: “Elas nos honram e nos julgam”, enquanto percussão e castanholas simulam panelas e garrafas se entrechocando. É em clima que estupefação que o movimento se encerra: “Nada está fora de seu alcance”.

A linha sinuosa torna-se reta ao prosseguir sem interrupção para o episódio seguinte, um ameaçador ‘sostenuto’ das cordas graves sob solo da tuba: é o “Medo”, componente constante da vida soviética. Contrapondo-se às sombras que até aqui dominam a sinfonia, Shostakovich a conclui com uma satírica reflexão sobre o que é seguir uma “Carreira”. Em ritmo de valsa lenta, ficamos sabendo que a verdadeira carreira não é a dos que se submetem, mas a de Galileu, Shakespeare ou Pasteur, Newton ou Tolstói: “Seguirei minha carreira de tal forma que não a esteja seguindo”, conclui o baixo, com o eco do sino que abrira pesadamente a sinfonia, agora aliviado pela celesta.

Shostakovich (esquerda), com o poeta Evgeni Ievtuchenko (direita)e o regente Kiril Kondrashin na estréia da 13ª Sinfonia.

A história da primeira execução de Babi Yar foi terrível. Houve protestos e ameaças por parte das autoridades soviéticas. Se até 1962, Shostakovich dava preferência a estrear suas obras sinfônicas com Evgeny Mravinsky (1903-1988), Babi Yar causou um surdo rompimento na parceria entre ambos. O lendário regente da Sinfônica de Leningrado amedrontou-se (teve razões para tanto) e desistiu da obra pouco antes de começarem os ensaios. Porém, como na União Soviética e a Rússia os talentos brotam por todo lado, Mravinsky foi substituído por Kiril Kondrashin (1914-1981) que teve uma performance inacreditável e cujo registro em disco é das coisas mais espetaculares que se possa ouvir.

P.S.- Por uma dessas coisas inexplicáveis, encontrei o disco soviético com o registro da estreia num sebo de Porto Alegre em 1975. Comprei, claro.

Obs.: A descrição da música foi adaptada de um texto que Clovis Marques escreveu para um concerto no Municipal do Rio de Janeiro.

10 comments / Add your comment below

  1. Milton, sou leitor atento do que você escreve e interessa-me bastante quando o assunto é música. Obrigado pelos belos textos.

    Se seguirmos a regra geral de transliteração, em que “sh” representa “ш” e que “ch” representa “ч”, o sobrenome do poeta fica EvtuSHenko.
    Já em relação ao Y ou I antes do E é o mesmo preciosismo que faz aquela famosa personagem feminina de Tolstói virar Anna KarIÊnina.

  2. Cássio, eu realmente não tenho a menor noção de russo e posso cometer as maiores barbaridades.

    Só sei que os russos tiveram a inteligência de colocar o nome de aguínha em sua bebida nacional e que algo como “galuboy” significa tanto azul como gay, o que faz interessante paralelo com o Gaymio, time aqui de Porto Alegre. Já krassni, ou alguma bela palavra como essa, é vermelho e é também superior, grandioso, absoluto, o que faz a língua russa especialmente amada por este baita ignorante.

    1. O pior é que é verdade.

      ‘Azul’ é como eles falam viado. Agora imagina só o que eles pensam quando a seleção da França entra em campo e ouve da arquibancada o famoso “Allez, allez, les bleus!”

      O drama dos franceses é muito maior do que o da torcida gremista, meu.

      E se você ainda me permite, krasnii é só vermelho mesmo. Fantástico, superior, é ‘prekrasnii’ (tem um pre- que serve para tirar as ilusões coloradas).

      Saudaçoes gremistas.

  3. Babi Yar

    “O medo se esgueirava por toda parte, como uma sombra”, li.
    Imediatamente o medo me paralisou
    Em meio a uma paisagem que velozmente
    Contava histórias da multidão assassinada,
    Da turba que cruza as avenidas e traz
    A lembrança de pilhas e pilhas de cadáveres
    Formando eles mesmos um barranco
    Sob o céu indiferente.

    O melhor e o pior do homem é a memória
    O registro, a imagem e a palavra, mas
    Tudo morre, embora ainda possamos dizer:
    O medo percorre todos os caminhos
    Como uma sombra interior que marca nosso olhar
    Com o terror do fim de nosso tempo.

    Alguns por isso creem em deuses, enquanto outros
    Apostam na música, na canção, no poema ou
    No gesto de conciliação, braços abertos, lábios para beijar
    Dentes para mil sorrisos mesmo depois da morte.

    Ça ira, é o que aponta a lembrança
    Que mira o futuro a partir desse barranco de mortos
    Pois muitos ainda não são o bastante, nem
    Todas as mães, filhos, pais e avós do mundo a revolutear
    como um tornado em meio a uma loja de departamentos.

    Quem sobreviverá entre essa multidão
    Quer percorre as ruas, atenta às vitrines
    Mas imune à história? Será aquele, eu, inerte
    Cuja memória reconta na langorosa sinfonia
    O inferno distante, composto por nossas sombras
    Vivas de medo?

    1. Gostei. Faltou referir-se ao Humor, não? Talvez seja o trecho mais inesperado e (paradoxalmente) típico de Shosta.

      Na 14ª, ele abandonia até o humor, até o sarcasmo.

  4. Essa sinfonia foi o primeiro concerto erudito que vi. OSESP tocando, Sergei Leiferkus solando. A-n-i-m-a-l. Até hoje lembro daquele trecho em que se fala de Tolstoi: o Leiferkus se vira para o coro e, com cara de surpresa, interroga: “Liev?!?!?” e o coro: “Liev!!”
    No entanto, estranhamente, a que “grudou” mais no meu cérebro foi a 14ª. Esquisito isso: a 14ª é quase atonal, e, no entanto, sua “falta de melodia” grudou muito mais facilmente do que a 13ª. Mas adoro ambas igualmente.

    A estrutura da sinfonia também pode ser vista como uma estranha homenagem a Brahms – sua cantata Rinaldo também é para orquestra, baixo solista e coro masculino. Não vejo relação entre Rinaldo e Babi Yar, então, pode ter sido 1) coincidência ou 2) uma referência estritamente estrutural (com o perdão da aliteração).

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