Sobre absolutamente nada (ou Irritações em casa)

Tolstói dizia que o que mais irrita o ser humano é a mudança de planos causada por surpresas desagradáveis. O russo era dado à declarações bombásticas e devia falar como se fosse a Bíblia, tal o número de afirmativas de tom indiscutível que externava em seus escritos. Se os sites que divulgam citações lessem Tolstói, estariam cheios de frases do autor. A mim, o que mais irrita são as surpresas desagradáveis que envolvem desencaixes financeiros, fato que está perfeitamente dentro do conceito acima e de quem  é financeiramente contido — sucedâneo para pão-duro — mas é obrigado a gastar muito mensalmente.

Pois anteontem, nós montamos uma espécie de estúdio na casinha (edícula) de trás de nossa casa para minha filha estudar tranquila, no silêncio. Só que chovia lá fora e descobrimos uma enorme goteira no corredor que liga a sala da casinha a seu único quarto. Mas quando falo em enorme goteira, quero dizer que quase chovia dentro da casa, sobre o parquê. Para completar, a casa, onde há pouco mais de ano morava minha mãe, que é agradável e que usamos habitualmente para receber pessoas, tinha virado um depósito de portas e colchões, fato que certamente deixaria Tolstói furioso, louco para atirar Guerra e Paz na cabeça do primeiro ser humano que visse pela frente.

A edicula com suas telhas malditas

Instalando boa dose de esquizofrenia no cérebro, fingimos ser normal a presença de colchões e portas, assim como da chuva estragando o parquê, e transferimos as excrescências para o quarto da edícula. A sala ficou uma beleza para estudar. Compramos quadro-negro, flip-chart, canetas, papel, além de um pequeno farnel de guloseimas.

Com a chuva, voltou o velho problema da Vicentina, nossa cadela burra. Há anos de forma unilateral, ela tomou a decisão de que não pode tomar chuva. Então, quando chove, ela fica na garagem, onde passa a fazer suas necessidades. Claro que isto é irritante, mas a gente está adaptado. Só que hoje pela manhã, notei que algo no cérebro da Vicentina — que foi adotada por nós e que deve ter sofrido graves problemas alimentares durante a mais tenra infância — fez com que ela permanecesse cagando na garagem mesmo em noite estrelada e sol nascente radiante. Lembrei de Tolstói novamente ao concluir que não conseguiria sair de casa sem retirar os cocôs. Quase perdi o ônibus.

Obviamente, estava louco para dar uns tapas na Vicentina, mas não costumo fazer isso e ela não entenderia, pois nenhum cão, nem os mais inteligentes, ligariam uma surra ao fato de ter posto um cocô horas antes. Ela apenas ficaria com medo de mim. Mas por que a Juno aprende tudo e a Vicentina nada? Qual é o grau de cognição daquela cusca? Bom, hoje à tarde vai o cara lá arrumar o telhado. Quando liguei para ele, parecia saudoso de nós. Há quanto tempo, seu Milton! É muito boa pessoa, muito engraçado, competente, simpático e gremista. Poderia nos visitar sem cobrar, né?

Juno e sua companheira preta a burra

8 comments / Add your comment below

  1. “A sala ficou uma beleza para estudar. Compramos quadro-negro, flip-chart, canetas, papel, além de um pequeno farnel de guloseimas.”

    Acrescente café e faça um matemático feliz.

    Ri muito com a imagem de Tolstói atirando Guerra e Paz na cabeça de alguém. Fiz uma nota mental para evitar irritar as pessoas no Bloomsday.

  2. Milton, pode parar com esse negócio de chamar a Vicentina de burra só porque ela não faz o que não queres que ela faça. Burra coisa nenhuma, Vicentina é, sim, uma cadelinha de opiniões firmes e não se dobra a fazer todas as vontades de seu dono. Quanto a decidir, unilateralmente, não mais tomar chuva, só posso dizer: cada vez mais parecida com o humanos…

  3. Milton,
    você já cogitou a hipótese de levar a Vicentina num psicólogo de cães: pode ser um problema de genialidade reprimida; pois ela tem um focinho e orelhas duma efetiva rafeira, quer dizer, em poucas palavras: é uma digníssima vira-lata!…

    1. À genialidade embutida da Vicentina…
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      OS VIRA-LATAS
      by Ramiro Conceição
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      Todo mundo
      tem seu tempo
      de cão largado,
      de cadela rejeitada,
      porém com o pedigree
      amoroso dum vira-lata.
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      ALIMENTOS
      by Ramiro Conceição
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      .
      Na bacia hidrográfica da arte,
      oS rIoS sÃo AvEsSoS à ReAlidAdE:
      os grandes alimentam os pequenos
      que se tornam grandes… Alimentos.

      1. POEMA QUÂNTICO
        by Ramiro Conceição
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        Ser um assassino;
        um gênio; uma besta quadrada;
        milhões de átomos; um animal;
        um ser; um planeta; uma galáxia;
        esta ou aquela verdade:
        tudo – é probabilidade!

        Se da lama foi possível a alma
        num jogo aleatório de traumas,
        então por que da incerteza bruta
        não ser uma inteligência culta?
        Nunca se está doente enquanto se sonha.
        Sonhar é ser a beleza abrupta – da acácia,
        que nasceu, na feia cidade, com audácia.

        Então agora que penso-sinto tudo,
        viverei lúcido até o possível, pois
        se aproxima o segundo segundo
        mais curto.
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        O NENÊ DO PEIXE-BOI
        by Ramiro Conceição
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        Quando o nenê
        do peixe-boi nasce,
        a mãe,
        a peixe-mulher,
        o leva à superfície
        para respirar…
        E depois desce.

        No silêncio,
        por sete dias
        sem descanso,
        por não ser Deus,
        a mãe vê o seu nenê
        aprender a sua parte.

        Ora,
        não faz a mesma coisa a arte
        com seu nenê de 30000 anos?

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