Decupagens assim, de Ronald Augusto

No dia 8 de novembro, escrevi no meu Facebook:

Feliz.

Pois, mesmo cansado, resolvi ir à Feira para conhecer o Ronald Augusto. Para dizer a verdade, achei que seu livro “Decupagens assim” fosse de poesia. Mas não, era um livro de crítica. Como os ônibus de Porto Alegre são lentos, pude ler quatro pequenos ensaios capazes de incutir entusiasmo no mais cansado dos interessados em cultura. Comecei pelo surpreendente “O substrato moral dos vencedores de prêmios literários”. Não pude deixar de rir com as reflexões de Ronald, exatas e sobre as quais jamais tinha pensado. Depois, concordei com suas observações sobre a qualidade da música de Paul McCartney, na qual vemos méritos artísticos além do que deveríamos, se considerássemos o estigma de comercial que o cantautor carrega há meio século, acho. Depois, reli o conhecido “Dá licença meu branco!” sobre o racismo em Monteiro Lobato e terminei com outro que compara Beyoncé e Tina Turner. Não adianta, quando o cara tem equipamento de verdade, ele destrincha o sacro e o secular com a mesma classe, graça e inteligência.

Cito os ensaios assim porque eles podem ser lidos no blog do Ronald.

E, quando chego em casa, louco por um algo doce, minha filha tinha feito um bolo. Reclamar do quê?

.oOo.

Agora li todo o livro e não pretendo divergir de mim. O primeiro exercício crítico de Ronald Augusto, Decupagens Assim (Letras Contemporâneas, 2012, 191 páginas), é entusiasmante por alguns motivos a mais que não coloquei acima. Chega a provocar um sorriso no leitor a minuciosa forma com o que o autor decupa cada um de seus temas. Ao invés de ater-se apenas ao leito principal, Augusto visita as margens dos assuntos, às vezes realizando buscas pelo interior. Não, ele não se perde. O que desejo dizer é que o cara sobra. Sua análise da obra de Jorge Ben revela uma finura não encontrável nas redondezas da crítica cultural. Eu até acho aquilo de Jorge Ben, mas nem chego a imaginar por quê. Na minha ignorância eurocêntrica, ignorava o que era o jongo. O mesmo vale para a constatação da decadência de Caetano Veloso e para o pasmo com a fama de Mia Couto. O prazer da decupagem é tão grande que Ronald retorna duas vezes a temas já esmiuçados a fim de fazer mais. E o prazer da leitura garante-se com textos surpreendentemente legíveis para a complexidade de alguns tópicos. Aprendi um monte.

Indico fortemente a quem gosta de cultura e de discuti-la sem esquemas preconcebidos.

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  1. É, tive vendo lá, esse puto é bom mesmo, só que a massa de texto (porque fundada em argumentos sólidos que ele destrincha em detalhamento quase fanático – o texto sobre Monteiro Lobato é de referência, para sepultar os babacas defensores do escritor) posta em blog como ele faz é de dar raiva, daí que o livro é especialmente recomendável para uma pessoa “normal”, que só lê textos mais extensos em livro, e odeia a barra de rolagem.

    1. Bom, vi um outro texto com uma foto do autor. Ele é negro, o que dá mais autenticidade ao texto repudiado do Lobato, mas ainda assim preferi pulá-lo. Fui para o do McCartney, e o achei muito melhor que o redudantismo (sic) da velha lenga-lenga em torno do Lobato. Acho que o blog tem lá as suas vantagens, e a principal delas é extrapolar o pedantismo moral “maria vai com as outras” dos textos impressos em folha. É muito adstringente ver Hitchens, por enfastio, defender os judeus no embate do Oriente Médio, ou Gore Vidal dizendo que o Timothy McVeigh é um ser humano superior. Mesmo que não se concorde com eles, a liberdade que eles propõe às fórmulas impostas das mesmices do politicamente correto dos ditos “sofisticados meios da imprensa e da academia” é um sopro de revitalização e inteligência. Existe algo mais contraproducente à causa dos movimentos negros do que esses textos embrutecidos de excesso de razão como os da Ana Idelber e os demais sobre o sempre racista filho-da-puta do Lobato?

  2. nunca liguei pra tamanho de texto em blog, website, essas coisas. é uma bobagem essa lei branca (sem trocadilho) de que na internet tem de ser tudo curto e bobo.

    é incrível como a lobatomia tem defensores: uns são seguidores outros são omissos e cínicos. mas mais uma vez repito, trata-se do lobato como representação do racismo naturalizado brasileiro. ao mesmo tempo é um autor medíocre, nem escritor, de fato, foi.

    e comprem o livro.

    1. Lobatomia! Tem até uma nomenclatura! Que bonitinho!

      Mediocridade é coisa relativa. Também não gosto de Lobato, nunca o li, e meus filhos não o leiam. Mas ainda se compram muito as obras do tal. Já de blogueiros que apenas compilam o que publicaram em blogs pessoais, nem os reiterados amigos servem para evitar aquele depósito particular na casa com as dezenas de volumes acumulados, mofando.

    2. Olha, eu acho que sim, texto de blog tem que ser curto, que nem crônica publicada em jornal; não tem que ser bobo – tem que ser curto. Seus textos valem como ensaios; é melhor lê-los impressos, em livro, pois penso que é inerente ao meio virtual a leitura veloz, com sua sucessão de páginas, janelas, pop ups, etc.

      Seu livro está a ser vendido no Rio de Janeiro?

      Quanto a questões do racismo, tem a citação a seguir, ó, que dá conta dessa “suave interdição” à discussão sobre o tema, o desconforto que ele causa, a mania do “racista cordial” de se proteger com o argumento que não pode referendar um erro “científico”, daí que toda e qualquer ação afirmativa, para ele, só faz afirmar o velho racismo e corromper as gerações futuras com a disputa racial que “inexiste” no Brasil, que é uma “virtude” cultural brasileira, e não pode ser substituída por métodos utilizados nos EUA, etc. A citação:

      ” A ciência vem revelando a falácia do conceito de raça do ponto de vista biológico. Essa constatação científica é utilizada para minar as reivindicações de políticas específicas para grupos discriminados com base na ‘raça’ ou na cor da pele. As novas pesquisas destroem as bases do racialismo do século XIX, que consagrou a superioridade racial dos brancos em relação a outros grupos humanos, justificando opressões e privilégios, mas elas ainda não tiveram impacto sobre as diversas manifestações de racismo em ascensão no mundo inteiro, e sobre a persistente reprodução de desigualdades que ele gera, o que reafirma o caráter político do conceito de raça, a sua permanência e atualidade, a despeito de ser insustentável do ponto de vista biológico”*

      * CARNEIRO, Sueli. A miscigenação racial no Brasil. In: __________. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. p. 66-69

      Por último, não dá para publicar aqui uma charge em que um vilão argumemnta com Batman: “Dia do Negro? Então tem que tem também Dia do Bran…”, instantaneamente interrompído por um soco desferido pelo “herói” que ainda contra-argumenta da seguinte forma: “Ser escravizado você não quer, né?”

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