A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, ou Identidade Cultural, Sistema Métrico Decimal e Canudos

a guerra do fim do mundoEu amo o mar, mas sou de origem e de alma um sujeito do sertão, que sei de vivência e não de notícia dos Euclides e Guimarães.

Adalberto de Queiróz

Pois eu só conheço o sertão de notícia, Beto, infelizmente só de notícia. A frase acima faz parte de um e-mail que meu amigo enviou-me anos atrás. Falávamos sobre férias, viagens e trabalho. Estava pensando em reler Os Sertões, mas ao notar que ainda não tinha lido o livro de Mario Vargas Llosa sobre Canudos — A Guerra do Fim do Mundo –, escolhi o peruano. O livro fora comprado em 21 de dezembro de 1981, conforme a anotação da primeira página. Nunca fora aberto.

A história de Canudos é riquíssima como documento humano e político. Os acontecimentos são regidos de um lado pelo fanatismo religioso e de outro pelos tortuosos caminhos da política brasileira. Os interessados no conflito são tantos que — guardadas as proporções — às vezes parece que estamos lidando com a Revolução Francesa. Há monarquistas que mudam seus apoios conforme os ventos, há o povo nordestino que tinha Antônio Conselheiro por santo, há os jagunços convertidos, há os republicanos que acabarão por realizar o massacre, há socialistas que viam na ação do Santo Conselheiro uma espécie de vanguarda intuitiva de suas idéias, etc. Ou seja, não é uma história simples e os interesses muitas vezes são acomodados de forma surpreendente.

Porém, o que desejavam os amotinados da terra santa de Canudos? Ora, livrar-se do Anticristo representado pela República e de seus “avanços”. O juramento que os novatos em Canudos faziam explica bem suas motivações:

Juro que não sou republicano, não aceito a expulsão do Imperador nem sua substituição pelo Anticristo. Não aceito o matrimônio civil, nem a separação da Igreja do Estado, nem o sistema métrico decimal. Não responderei às perguntas do censo. Nunca mais roubarei, nem fumarei, nem me embriagarei, nem apostarei, nem fornicarei por vício. E darei a vida por minha religião e o Bom Jesus.

Surpresos com a citação sobre o censo? Canudos era monarquista mas anti-escravatura. A ojeriza ao censo pode ser explicada da seguinte maneira: por que pretendia a República saber a raça e a cor das pessoas senão para, outra vez, escravizar os negros? E por que interessava-se ela pela religião da população, senão para identificar os crentes antes da matança? A rejeição ao sistema métrico decimal tinha motivações ainda mais disparatadas: é que as medidas inglesas eram, digamos, mais monarquistas… Digo-vos, meus caríssimos sete leitores: havia demência no ar. Ainda há hoje, não?

Além do completo massacre dos habitantes da vila de Canudos, houve enorme sacrifício de vidas no exército brasileiro, que não conseguia entender aquela guerra sem ética. Despreparado para ações de guerrilha, o Exército via os amotinados como um inimigo sinuoso, covarde, que se emboscava e desaparecia quando os “patriotas” tentavam encará-lo e que desconhecia as leis e os procedimentos da guerra. Além disto, os amotinados resistiam com inacreditável bravura, certos de que a morte lhes renderia o caminho dos céus. Os soldados, crentes em sua maioria, atacavam outros brasileiros que, paradoxalmente, cantavam hinos ao Senhor sob qualquer pretexto. Isto custou a todos muitas vidas, além de ódio mortal. O episódio Canudos pode ser dividido em 4 campanhas: a primeira e a segunda vencidas facilmente pelos amotinados — o que só fez com que se reforçassem e crescessem –, sendo a terceira foi uma guerra muito longa e tática à espera de reforços e a quarta o massacre no qual foram mortos TODOS os habitantes de Canudos.

O livro não é e nem se tornará um clássico com o de Euclides; é antes um romanção com dezenas de personagens e histórias que se desenvolvem ao mesmo tempo nas várias frentes: Canudos, Exército, jagunços, política e jornais baianos 1, 2 e 3, surpresa e raiva federal, etc. O livro se vale de quatro personagens principais: o monarquista Barão de Canabrava, o republicano Epaminondas Gonçalves, o jornalista míope e o anarquista escocês Galileu Gall. Não é por acaso que o intelectual da história seja um jornalista míope que teve seus óculos quebrados e que anda pela Vila de Canudos sem ver nada claramente.

Por que há tão poucas obras sobre Canudos, por que nosso cinema e a televisão não exploram mais o massacre? Lá foram mortas 25.000 pessoas! Será que Euclides da Cunha, com seu impecável estilo empolado e sua justa aura de fundador da sociologia brasileira, tornou-se intocável? Bobagem, Canudos não é dele. E por que há tantas recriações, abusadas ou não, de Machado de Assis e quase nada da grande história contada por Euclides? Trata-se de um equivocado respeito, de uma distância inexplicável de um fato que fala muito sobre nossa identidade cultural. Por que ignoramos Canudos? Sei lá. O que sei é que veio um peruano destituído deste respeito, fez pesquisas no local e enfrentou a complexa história em 560 páginas. Vale a pena ler, antes ou depois de Os Sertões.

nuestra identidad cultural el roto

Observações: (1) A charge acima, do El Roto, foi retirada do jornal El Pais e refere-se à Espanha. Deve ser a globalização… (2) Sugiro a leitura do livro no original em espanhol, mesmo para aqueles que têm pouca vivência com a língua. A tradução brasileira deste best-seller (na capa acima) é, digamos, média.

16 comments / Add your comment below

  1. Milton, você tocou em um assunto sério: Canudos. Li “Os Sertões” muito cedo. Sem maturidade intelectual para compreendê-lo. É um livro, entre muitos, que entrou em meu “esquecimento interior”. Sou um ruminante…
    Tenho um projeto adiado por 30 anos: escrever a saga de Canudos em versos. À época da leitura, escrevi uns trinta poemas, porém, extremamente, imaturos artisticamente falando. Alguma coisa ainda se salva. Talvez um dia retorne qual escritor-filho-pródigo para aqueles poemas-pais esquecidos… Tarefa colossal. Terei fôlego? Não sei…
    Mas voltando ao livro de Euclides. O impressionante, para mim, no texto de Euclides, são as muitíssimas passagens entre uma aridez, quase insuportável, para uma poesia arrebatadora entre uma página e outra. É tal qual caminhar num deserto e de repente estar diante dum relâmpago ensurdecedor. Ou de repente escutar o aboiado monótono a ninar a terra. Ou a batalha sangrenta. Ou a fé cega. Ou…: é um oceano literário sem-fim!
    A saga de Canudos tem de ser retomada nas escolas, teatros, cinemas: é história.

    Parabéns, Milton, pelo texto.

  2. Ramiro, acho que me arrependo de ter lido este e não relido aquele. Minha lembrança de “Os Sertões” é também muito antiga.

    Claro que a tarefa colossal vale a pena. O problema é que seria COLOSSAL MESMO!

  3. Retornando. Milton, se me conheço bem: levaria no mínimo uns 10 anos, entre leituras, visitas ao local – que foi inundado, mas parece me que já é possível o acesso-, reflexões e propriamente o escrever, até o primeiro “boneco”; depois, no mínimo, uns 5 anos de revisão do texto.

  4. Duas fofocas.

    Primeira: não sei se você sabe que Ruy Guerra, o cineasta, afirma que a idéia do livro de Llosa foi roubada, absolutamente plagiada, de um roteiro dele.

    Segunda: parece que o último redator da Suruba colocou o senhor como um dos personagens da novela… Achei uma sacanagem.

  5. Os sertões de Euclide da Cunha é magnifico…..
    Sou descendente do Barão de Geremuabo ou melhor de Cícero Dantas Martins.
    como se chamava.
    Sou do sertão Baiano, de Cícero Dantas- ba
    O barão de Geremuabo como era conhecido, foi um personagem importante na guerra de Canudos.

  6. Totalmente… fora de órbita… Mas a orbitar a Gálaxia…

    PECADOS CAPITAIS
    by Ramiro Conceição

    A soberba é uma senhora
    pequena que se julga alta.
    Feia: imagina-se bela.
    Grosseira: idealiza-se meiga.
    Gorda: inventa que é magra.
    Ignorante: matuta que é culta
    mas a ininteligência urra
    porque a soberba é burra.

    Um corriqueiro vazio é a gula,
    um navio que não é cargueiro,
    mas um acúmulo repleto do nada
    duma classe que devora o mundo
    com frieza e crueldade sem fundo.

    A inveja ouve, olha, toca,
    degusta e fareja até a toca
    da inveja imunda do outro.

    Uma filosófica lesma metafísica é a preguiça:
    um sol sem energia; um poema sem palavras;
    uma verdade sem dúvida; um mar sem água;
    um universo sem estrelas; um “Ah” sem ar…

    A avareza é folha seca
    que não quer ir à terra:
    é uma prisão de ventre
    que retém tudo sempre.

    Uma diarreia é a ira:
    de Marx – defecar stalin;
    de Jesus, o poder pra si.

    Um prazer perverso é a luxuria de bento XVI
    em hebdomadárias trepadas clandestinas
    junto a pedófilos do intestino corrupto do Vaticano.
    Porém bentinho, cuidado!… Não fique tão à volonté.
    Papai-do-céu não perdoa  Ele só finge que não vê.
    Além disso, exumar um cadáver para fazê-lo santo
    é sem dúvida um pecado… contra o Espírito Santo.
    Aliás, lobo ratzinger, por que condenaste Leonardo Boff
    ao mesmo castigo de Galileu que disse eppur si muove?

    LUCIDEZ DO CORDEIRO
    by Ramiro Conceição

    “… países em desenvolvimento […] continuam a abastecer o desenvolvimento de países mais ricos ao custo de seu próprio presente e futuro. Os países desenvolvidos devem ajudar a pagar essa dívida […] assistindo países mais pobres a gerar políticas e programas de desenvolvimento sustentável”.

    É, esse Francisco… cada vez mais… surpreende.
    Cada vez mais a sua lucidez de fato fica brilhante
    diante daquela outra, opaca, que o antecedeu: sim,
    aquela do morto-lobo-vivo que condenou Leonardo
    Boff – ao silêncio –, na mesmíssima cadeira girante,
    em torno do Sol, na qual respirou Galileu.

    ESCATOLÓGICO
    by Ramiro Conceição

    Quando a inocência
    pousou na encosta,
    o mar se acalmou
    duma maneira que
    não se cria… mais.
    A lua acordou os girassóis
    quando a pé – pés ante pés – 
    os Sóis desceram a encosta.

    P.S.: caríssimo ateu, considere em suas reflexões posteriores:
    http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

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