Carta de Fernanda Torres para os 90 anos de sua mãe Fernanda Montenegro

Publicado pela Folha de São Paulo em 6 de outubro de 2019

Mãe.

Espanta em seu livro a lucidez afiada de uma mulher de quase um século.

Minha mãe, no dia 16 você completa 90 anos.

O seu pai, seu Vitorino, quando chegou à sua idade, deu de apostar uma corrida contra o tempo. “Vou aos cem!”, ele dizia, já surdo, batucando uma música imaginária com os dedos, que era incapaz de escutar.

A paralisia infantil o deixou manco de uma perna, mas ele inventou um jeito próprio de caminhar, acompanhado de um larí, larí… que transformava a passada coxa num trejeito de Chaplin.

Vitorino tinha certeza de que morreria aos 33 anos, idade em que Cristo foi posto na cruz. Não morreu, e eu pude conviver com a sensibilidade de artesão, que você tem dele, com as bochechas que todas nós herdamos e com a delicadeza que nenhuma das mulheres da família tem.

Fernando Torres também era um homem doce. Torturado e doce. Bebia, mas nunca nos ofendeu ou te impediu de ser quem era.

Já o burocrata que te chamou de sórdida, ex-cocainômano que agredia mulher e filho, e diz ter sido curado de um tumor pela graça divina, já esse, pode bem ter se livrado do mal físico. Mas faltou, ao Deus que ele cultua, dar cabo da agressividade e da misoginia do cordeiro grosso.

Estranhos homens esses, que batem e xingam em nome de Deus.

Quando você completou 70 anos, me disse que havia cumprido o ciclo furioso de peças, novelas e filmes. Não havia nada mais a esperar da vida. Quatro meses depois, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, por “Central do Brasil”.

Trabalhar sempre foi a sua sina. Sua alegria, sua mania, seu destino e sua sina.

Agora, com a autobiografia, o que seria um ponto final tornou-se farol, uma luz de integridade em meio ao obscurantismo carola dos adoradores de fuzis.

Eu cresci te vendo beijar outros homens em cena como beijava o meu pai. Isso nunca corrompeu a solidez da nossa família. Mas o prefeito do Rio de Janeiro, tão beato quanto ausente, mandou recolher, na Bienal do Livro, os exemplares de uma história em quadrinhos com um beijo gay.

Num país que mata crianças e nega educação, saúde e saneamento às famílias dessas crianças, tratar um beijo como ameaça é sinal não só de oportunismo político, como também de pequenez moral.

O episódio inspirou sua foto de bruxa diante da fogueira de livros. Sórdida, exclamou o burocrata convertido. A injúria, no entanto, detonou uma onda de respeito e admiração à sua figura. Resposta outra, que não a agressão no mesmo nível, sempre baixo. A solidariedade como antídoto para inocular os Savonarolas.

Teu livro é o testemunho de uma autodidata, neta de imigrantes e filha de um operário com uma dona de casa que, por meio da prática obstinada de um ofício, sobreviveu aos inúmeros reveses sociais e políticos que, volta e meia e sempre, acometem o Brasil.

A morte de Getúlio, a renúncia de Jânio, o AI-5, a campanha frustrada das Diretas-Já, o confisco de Collor, a coalizão corrompida da social-democracia e a ascensão da teocracia armada, os tombos e levantes que nos condenam a começar do zero “ad aeternum”, filtrados pelos olhos de uma Sísifo mambembe.

Quem sabe, quando eu fizer 70 e você passar dos cem, teremos vencido o horror de agora? Horror que promete deixar o legado de um país sem Rádio MEC, sem TBC ou Oficina, sem cinema novo nem velho, sem MPB e rock, sem Arena e sem Asdrúbal, sem Dulcina, Bibi, Dercy e Cacilda, sem Antunes e Nelson.

Terra arrasada. Esse é o horizonte. Sigamos.

O partidarismo, à esquerda e à direita, nunca foi o seu norte. Avessa a dogmatismos, você fez do drama existencial da comédia humana a sua matéria. Penso que foi isso o que te fez uma mulher do presente, não importa a época.

Comemoraremos os seus 90 com uma missa no lugar em que celebramos, todos os anos, a partida do papai. Apesar da profunda devoção cristã, você jamais nos impôs a sua fé. Você jamais nos impôs crença, diploma, sucesso, nada. Você ensinou os seus filhos a serem, na medida do possível, livres.

No fundo, há uma ilustração da Fernanda Montenegro. Na frente, várias pessoas aplaudindo e vibrando diante da atriz. Flores estilizadas estão em torno de toda a cena

Nas suas memórias, você narra o último delírio teatral do Fernando, com ele já doente, querendo ensaiar a peça “É…”, de Millôr Fernandes. Na mesa da sala de jantar, você se dispõe a ler com ele, até que meu pai se cala, ao perceber que não há elenco presente.

A cena é puro Beckett e lembra o final de “Seria Cômico se Não Fosse Sério”, em que você, Alice, cuidava dele, do marido, Edgar, vítima de um derrame. Vida e arte sempre se confundiram na nossa casa.

Chorei muito com o seu relato. Espanta, nele, a lucidez afiada de uma mulher de quase um século.

Feliz aniversário, minha mãe. Que o Brasil, tão trágico, bruto e desesperado entenda, com gente como você, o quanto a arte e a criação podem fomentar amor, progresso e civilização.

Evoé, novos artistas.”

Fernanda Torres
Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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  1. “A morte de Getúlio, a renúncia de Jânio, o AI-5, a campanha frustrada das Diretas-Já, o confisco de Collor, a coalizão corrompida da social-democracia e a ascensão da teocracia armada, os tombos e levantes que nos condenam a começar do zero “ad aeternum”, filtrados pelos olhos de uma Sísifo mambembe.” Engraçado é que ela pulou uma parte da história recente do Brasil, entre a social-democracia e a teocracia. Falta algo aí no meio. Por que será?! De resto, grande homenagem a uma grande atriz.

    1. A parte a ser pulada é agora ,que vergonha ,nunca vi tanta coisa negativa e inversão de valores. Talvez seja bom olhar um pouco ao seu redor , revisando seus conseitos de bondade , dignidade e respeito,cuidado com falsos Mitos…

  2. Tbem acho Rita. Ela pulou, não sei se de proposito, ou cala-te boca. Pois a MAIOR HISTÓRIA, desde que me entendo por gente, foi a obra de um SENHOR, chamado de LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA. tenho estudado história, más como essa, de humanização, nunca li em lugar nenhum do mundo. Qndo um ser, luta pelo bem do próximo, esse sim, merece ser elogiado na mais alta patente possível. #LulaLivreUrgente. #LulaNobelDaPaz. #LulaAPatriaLivre.

    1. Não sei se você percebeu, Vanea, mas no parágrafo a que me refiro Fernanda cita mazelas e, pelo que o Universo todo sabe, no período ignorado por ela foi posto a funcionar no Brasil simplesmente o maior esquema de corrupção da história. Fora o pequeno, pequeníssimo, quase insignificante detalhe do buraco econômico no qual nos meteram… Simples.

      1. Peraí Rita, me inclua fora desse teu Universo que acredita nas lorotas da respeitabilissima, imparcial e insuspeita midia famigliar brasileira.
        Pra poderes pensar um pouco fora dessa caixinha, que tal dares uma olhada em como evoluiram nossas reservas internacionais (https://www.researchgate.net/figure/Figura-5-Evolucao-das-reservas-internacionais-liquidas-US-Bilhoes-Fonte-BCB-Mesmo_fig2_314230094) e a divida publica brasileira (https://blogdoibre.fgv.br/posts/divida-bruta-ou-divida-liquida-eis-questao) nesse “período em que foi posta o funcionar o maior esquema de corrupção” da galaxia, desvendado pelos ilibados Moro e Dallanha.

  3. Quanto a nossa maior atriz desse País, FERNANDA MONTENEGRO, é para mim, uma atriz completa inigualável, sensacional. Pois me fez rir, chorar e aflorar meus sentimentos no âmago de minh’alma. Uma atriz como nunca haverá igual. Extraordinariamente perfeita.

  4. Me encanta não apenas a Maria Fernanda, mas o legado da garra, força e esperança passado a Deus filhos e tão bem elucidado nessa bela carta de sua filha Fernanda Torres.
    Parabéns mãe e filha, parabéns a esses dois lindos seres humanos!

  5. Prestem atenção “O partidarismo, à esquerda e à direita, nunca foi o seu norte” …cuidado com seus ídolos e mitos , sejam pessoas mais racionais ,esse país está um ruínas..”Terra arrasada. Esse é o horizonte. Sigamos.” Controle militar , religioso ,censura , intolerância, desigualdade social .. ambiente perfeito aos adoradores de “MITOS” , rezemos para aqueles que seguem com seus antolhos enxerguem um mundo fora do eixo de seus umbigos . Pensar diferente não é comunismo ou esquerdismo . Somos muitos sem ídolos ou partidos … gostaria apenas de ser chamado de humano.
    Obrigado Fernanda Montenegro um verdadeiro mito na arte do Brasil. Que o BOM DEUS te ilumine sempre.

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