Eu li bastante da primeira metade da obra de Rubem Fonseca. Conheci-o adolescente quando houve a censura ao ótimo Feliz Ano Novo. A censura era uma boa propaganda na época.
Acho que conheço quase tudo de sua obra até Agosto ou Bufo & Spallanzani ou Vastos Pensamentos, não sei qual foi o último. Achei que sua literatura, antes sinceramente noir, estava decaindo.
Gostava de sua habilidade para inserir a maldade em seus textos. Ela estava sempre rondando.
Creio de Feliz Ano Novo, Lúcia McCartney, O Cobrador e A Grande Arte ficarão.
Era um mineiro muito carioca que recebeu seis Jabutis e era um sujeito conservador, apoiador do golpe de 64 e homofóbico, mas isso não chegava a transparecer com clareza em sua obra, que é o que interessa.
Nem se falava em quarentena,
era o dia 18 de fevereiro de 2020,
em Barcelona, no belíssimo Palau de la Música Catalana. Grigory Sokolov, piano.
Recital com obras de Mozart e Schumann (e mais 6 bis…).
Traduzido rapidamente daqui, com pequenas alterações
Autor: Rafael Ortega Basagoiti
O público, com razão, sempre espera viver uma nova experiência musical daqueles que coloca em uma altíssima categoria separada. Categoria em que o pianista de São Petersburgo está, sem dúvida, colocado há muito tempo. Ele está naquele lugar onde não há chance para confusão, acessório ou banalidade. Sokolov entra no palco hierático e imperturbável, reverencia um lado e outro do palco, senta e ataca a primeira peça, depois a outra, sem interrupção. No final, várias saídas e bises em meio a uma crescente apoteose. E os bises vem aos montes. Em Barcelona foram seis, nem mais, nem menos.
Nem uma salva de palmas, nem, provavelmente, um terremoto, conseguiria deter o russo naquela caminhada determinada e solene, na reverência mecânica e, após, naquela mutação de indivíduo imperturbável para o artista capaz de elaborar momentos de uma mágica que está ao alcance de muito poucos. Em 18 de fevereiro, Sokolov desenvolveu um programa com trabalhos relativamente pouco frequentes. A primeira parte foi dedicada a Mozart, mas, com a exceção da Sonata K 331 , que é frequente, duas outas belas páginas não especialmente viajadas foram incluídas no Salzburgo, os K. 394 e 511.
Quem assina isso não se lembra da última vez que ouviu o Prelúdio e Fuga K. 394 em um recital, O Prelúdio foi legendado pelos editores como “Fantasia” e não sem razão. Seu caráter é caráter muito livre, às vezes quase improvisado. Na “fantasia do prelúdio” Mozart deixa voar uma imaginação transbordante. Já a fuga, impecavelmente construída por Sokolov, é de uma gravidade bachiana que não associamos a Mozart. Aqui, Sokolov já usava aquele controle mágico da pulsação, aquela e beleza no som que a gente fica se perguntando como é possível.
O Rondó K 511, algo mais frequente em recitais do que o prelúdio comentado, não é das partituras de teclado mais talentosas do gênio de Salzburgo. Obra dos últimos anos da vida de Mozart (1787), que contém grandes doses de tristeza, a peça é salpicada de grande intensidade dramática e culmina com um final que apresenta uma escuridão ameaçadora. O canto requintado de Sokolov, o desenho rasgado daquele drama intermediário e o final misterioso e chocante emolduravam uma interpretação de grande emoção, não importando a tentativa criminosa do telefone celular que tocou na plateia visando o assassinato do Rondó.
No meio desses dois trabalhos, apareceu a peça mais conhecida que citamos anteriormente, a Sonata K. 331 . Era evidente desde o início que Sokolov mais uma vez favoreceu o canto elegante (início do primeiro movimento), o som requintado (variação V), as nuances cuidadosas, o legato extraordinário (variação III) e a articulação cristalina (mão esquerda do variação II) antes de qualquer tentativa de fazer as coisas diferentes. O movimento final teve um ritmo que genuinamente respondia à indicação allegretto. Mais uma vez admirável o controle impossível da pulsação por Sokolov, com um pedal justo que também lhe permite executar os arpejos “turcos” apenas com a redondeza e a rusticidade, mas sem cobrir ou embaçar o que está acima deles. Eu raramente ouvi aquelas passagens feitas de maneira mais requintada.
Novos elogios à escolha do Bunte Blätter de Schumann, uma coleção que quase nunca está agendada, embora Sviatoslav Richter um defensor da obra. Há tudo nessa série: fantasia, lirismo, poesia, vitalidade energética, melancolia, agitação tempestuosa, animação … Há até uma marcha — o trabalho mais extenso da série — , que poderia muito bem ser considerado uma marcha fúnebre. Todo esse caleidoscópio de atmosferas expressivas foi dissecado por Sokolov. Como não admirar a bela poesia do número inicial, a canção nostálgica do terceiro, a tristeza sombria da quarta, a vibrante e leve Novelette, a tremenda tempestade do Präludium ou a tristeza devastadora da marcha mencionada acima?
Ao final, o Palau de la Música Catalana veio abaixo sob aplausos e urros. E na “terceira parte”, no enorme bis, a magia foi expandida. Os dois Intermezzi Op. 118 ( n. 2 e 3 ) de Brahms dificilmente podem ser melhores. Íntimo, delicado, sussurrando o primeiro; retumbante e enérgico, mas sempre cantado com requinte, o segundo. Sensacional, refinado e elegante naquela ambiguidade que Chopin lidou tão bem, a Mazurca Op. 30 nº 2. Não faltaria a dose de Rameau e, embora eu não seja um defensor especial dessa música no piano moderno, se houver alguém na terra capaz de reproduzir com essa improvável leveza e clareza a chuva impossível de ornamentos do francês, é precisamente Sokolov, portanto, resta apenas permanecer sem palavras antes da realização espetacular de Le rappel des oiseaux. Novo salto para uma tradução elegante, refinada e poética do Rachmaninov Prelude Op. 32 No. 12, e majestosa conclusão com uma leitura severa e coletiva do coral de Bach Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ BWV 639 no arranjo de Busoni.
O público teria gostado mais, mas a iluminação completa deixou claro que essa “terceira parte” já havia sido concluída. Enquanto isso, continuaremos nos perguntando como é possível para esse homem obter aquele som, essa nuance, essa articulação, esse equilíbrio de vozes. E continuaremos olhando boquiabertos para suas demonstrações contínuas, embora hieráticas, de uma estatura artística tão grande e vigorosa.
A romancista revela como a loja de que ela é proprietária em Nashville está fazendo e refazendo planos para levar livros aos leitores que os querem mais do que nunca
Por Ann Patchett, no The Guardian (traduzido livremente por mim)
Nós fechamos a Parnassus Books, a livraria de que eu sou sócia em Nashville, no mesmo dia em que todas as lojas em torno de nós fecharam. Não sei dizer quando foi porque não tenho mais um relacionamento com minha agenda.
Todos os dias agora são oficialmente os mesmos, iguais. No dia do fechamento, eu e minha parceira de negócios, Karen, conversamos com a equipe e dissemos que, se não se sentissem confortáveis em entrar, tudo bem. Continuaríamos a pagá-los pelo tempo que pudéssemos. Mas se eles se sentissem bem em trabalhar em uma livraria vazia, tentaríamos continuar enviando livros para os clientes.
Na primeira semana, realizamos entregas, o que significava que um cliente poderia ligar para a loja e nos dizer o que queria. Pegávamos as informações e depois corríamos com os livros para o estacionamento e os jogávamos na janela aberta do carro. A entrega parecia uma boa ideia, mas o problema era que havia tantas pessoas ligando que a equipe acabou se agrupando em torno das caixas registradoras, organizando os pedidos e tratando de despachá-los o mais rápido possível. Uma correria. Nós reavaliamos e decidimos que todos os livros teriam que ser enviados pelo correio, mesmo para os clientes que moravam descendo a rua.
Nós fazemos nossos planos. Mudamos nossos planos. Esta é a nova ordem mundial.
Nossa livraria é espaçosa e arrumada, com escadas para alcançar as prateleiras mais altas, um grande sofá de couro e uma alegre seção infantil com um mural colorido com um sapo contando uma história para um grupo extasiado de animais variados. A sala dos fundos é o exato oposto, é um tumulto cheio de mesas, pilhas de caixas vazias ou cheias de livros que chegaram ou a serem devolvidos, etc. Há decorações de Natal, displays giratórios abandonados. Ficamos lá juntos, forçados a ouvir as conversas telefônicas um do outro e a cheirar o perfume um do outro.
Não é o cenário do distanciamento social.
Então, na ausência dos clientes, o pessoal dos bastidores mudou-se para a ampla frente da loja, com mesas distantes umas das outras a fim de criar nossos espaços privados. Nós aumentamos o volume do som nas caixas. O chão é um mar de caixas de papelão — pedidos concluídos, pedidos ainda aguardando mais um livro. Não fazemos nenhuma tentativa de arrumar nada antes de sair à noite. Não temos nem o ímpeto, nem a energia. Existem peixes maiores para fritar: os pedidos de clientes e para os fornecedores ativos.
Penso em como eu costumava falar no mundo pré-pandemia, defendendo a importância de ler e de fazer compras localmente, de apoiar as boas livrarias independentes. Hoje em dia, percebo até que ponto isso é verdade — agora entendo que somos parte de nossa comunidade como nunca antes e que nossa comunidade é o mundo. Quando um amigo meu, preso em seu minúsculo apartamento em Nova York, me disse que sonhava em poder ler o novo livro de Louise Erdrich, eu realizei o sonho dele. Não consigo resolver nada, não posso salvar ninguém, mas caramba, posso enviar para Patrick uma cópia de The Night Watchman.
Pelo menos por enquanto. Fazemos parte de uma cadeia produtiva que conta com editores para publicar os livros, distribuidores para enviá-los e as bikes e o serviço postal para pegar os pacotes e levá-los aos clientes. Até agora, esse frágil ecossistema está se mantendo, embora eu entenda que basta o tempo entre eu escrever este texto e você lê-lo para ele desmoronar. Mas, nesta época em que finalmente há tempo para ler novamente, é o que temos. Portanto, ligue para a livraria local e verifique se os livros podem ser enviados. Acontece que a comunidade de leitores e livros é a comunidade que precisávamos antes, e é a comunidade que precisamos em tempos difíceis, e é a comunidade com quem queremos estar quando tudo isso acabar.
Faz quase dez anos que Guy Roland não sabe quem é. Após uma crise de amnésia, não lembra nem de seu nome, nem do que fazia, nem do que aconteceu com ele. Nos últimos tempos, ele trabalhava em um escritório auxiliando um detetive. Mas, após ver fechado o local em razão da aposentadoria do dono, sai em busca de pessoas que possam lhe ajudar a dizer quem, afinal, é (ou foi). Uma trama policial? Não, a busca da identidade.
Modiano se utiliza de algumas características da literatura e do film noir, só que os usa para contar uma história entre o charme a a filosofia. O charme: Guy está sempre entrando em ambientes noir — ruas mal-iluminadas, bares enfumaçados, apartamentos velhos e sujos. A filosofia: Guy demonstra o valor da memória, da perda e a necessidade de pertencimento do indivíduo. Durante a busca, as perguntas a si mesmo são:”Esse sou mesmo eu?”, “Teria eu essa vida?”, “Teria eu morado aqui?”, “O que essa pessoa significava para mim?”, “Por que esse nome não me desperta nada?”, “Essa música deveria me remeter a algo?”.
O livro é melancólico, cheio de belas cenas com ligações entediantes entre elas.
Em 2014, Patrick Modiano recebeu o Prêmio Nobel de literatura “pela arte da memória com a qual ele evocou os destinos humanos mais inacessíveis e descobriu o mundo da vida da ocupação”. OK. Com a aprovação do prêmio, parecia que seria um bom momento para ele estourar, o que não aconteceu. Compreensível. É o cara é o arquétipo de certo gênero de vencedores de Nobel: o chato de grandes temas.
Voltando. O livro começa portentosamente com a frase: “Não sou nada”. Como disse, é somente depois que seu chefe se aposenta que ele é libertado do trabalho para finalmente assumir a tarefa de buscar saber quem é. Naturalmente, isso envolve uma investigação. A princípio, Guy é levado a acreditar, erroneamente, que ele pode ser um homem chamado Freddie Howard de Luz. No entanto, com o tempo, sua pesquisa o leva a acreditar que seu nome verdadeiro seja Jimmy Pedro Stern, e ele que nasceu na Grécia. Mas algumas evidências indicam que seu nome e identidade reais possam de um certo Pedro McEvoy, nascido na República Dominicana. Se ele é Stern, desapareceu em 1940. Se ele é McEvoy, ele deixou a França antes da guerra.
Em sua busca para descobrir quem é, Guy trabalha por intuição, premonição, suposição e imaginação onírica. Ele constantemente faz hipóteses sobre os motivos e o comportamento das pessoas. Os detalhes díspares que descobre servem como o fio de Ariadne que ele espera que o leve a si mesmo. Mas mesmo quando sente que está fazendo algum progresso, reconhece: “Fragmentos, fragmentos vieram à tona como resultado de minhas pesquisas … Mas então é isso que uma vida significa… É realmente minha vida que estou rastreando? Ou de outra pessoa na qual eu me infiltrei de alguma forma?”.
Finalmente, sua investigação o leva a concluir que ele e uma mulher, Denise, provavelmente foram vítimas de uma cilada enquanto atravessavam a fronteira franco-suíça no inverno, durante os últimos dias da guerra. Denise desapareceu. E ele também pode ter desaparecido. O trauma de ser enganado e deixado nas montanhas para morrer de frio pode ter sido, ele decide, o choque que produziu sua amnésia. O paradeiro de Denise permanece desconhecido, mas, graças ao trabalho de Guy, ela agora tem um nome e uma história. No final, o ex-Guy está fisicamente presente, mas apesar de seus esforços, ele continua sendo uma pessoa desaparecida, sem nome ou história verificável. Ele pode ser Jimmy Pedro Stern ou Pedro McEvoy. Ou ele pode ser nenhum dos dois. Ou pode ser que, como ele diz no começo do romance, que ele não seja nada.
Eu lamento as duas mil mortes de ontem nos EUA. Mas fico pensando nos filmes horríveis que teremos que aguentar, se sobrevivermos. Eles não vão deixar a humanidade livre disso.
A livraria La Buena Vida, de Madri, foi reconhecida como livraria cultural em 2018. Por conta da crise do coronavírus, está com as suas portas fechadas, mas não deixou de atender seus clientes. Jesús Trueba, proprietário e livreiro da La Buena Vida, falou com o PublishNews em Espanhol para contar como está a sua rotina de trabalho nesse período de isolamento social. A conversa com Jesús dá início à série Papo do Confinamento, que vai traduzir entrevistas publicadas pelo nosso colega Lorenzo Herrero, editor do PublishNews em Espanhol.
PublishNews – Como você acha que o mercado do livro será afetado pela crise provocada pela pandemia de covid-19? Quais as áreas ou companhias que sofrerão mais?
Jesús Trueba – Como em qualquer setor, as consequências desta crise são totalmente imprevisíveis, porque não há precedentes. O que posso te assegurar é que o tecido das livrarias independentes tem um grau de exposição ao risco muito alto. Por um lado, estamos muito atomizadas e passamos por baixo do radar de muitas políticas públicas. Por outro, todos os grandes problemas econômicos nos afetam: a gentrificação e o boom imobiliário; a crise do comércio de vizinhança e do varejo tradicional; a escassa margem de lucro e o baixo poder de negociação.
PN – Como livreiro, acredita que a sua livraria poderá minimizar essas perdas?
JT – Nós nos consideramos um serviço público e nos posicionamos como um comércio de bairro, que assegura uma forma de vida e a interação social em nossas comunidades. Seus problemas são nossos problemas. Temos potencializado nossa competitividade no mercado eletrônico, oferecendo serviços e atividades. Mas nada pode ser feito contra a competição desigual com multinacionais que pagam nem um terço dos impostos que nós pagamos. E pagamos com prazer porque entendemos que colaboramos com os nossos serviços sociais públicos.
PN – Como você acredita que a crise afetará o mercado de livros digitais? Acha que pode criar um desequilíbrio com o livro físico?
JT- O livro digital segue sem decolar. É ainda uma expectativa. Em mercados mais maduros, inclusive, até diminuiu. Não quero falar do livro digital. É como se me pedisse para falar de cinema. O livro em papel subvenciona boa parte dos conteúdos digitais, cujas receitas dificilmente poderiam custear as traduções e os adiantamentos. Essa sim é uma realidade.
PN – Como o vírus afetou a sua vida profissional?
JT – Mesmo com as portas fechadas, estamos trabalhando de segunda a sexta, das 11h às 13h para dar conta de pedidos, fazer a manutenção, cuidar da parte administrativa e para nos sentir úteis. Caso contrário…
PN – O que recomendaria às pessoas que estão confinadas em casa?
JT – Há muito mais não leitores do que leitores. Esta crise é uma oportunidade para que pessoas que nunca pegam um livro nas mãos descubram o poder curador de se concentrar mentalmente em uma história que não é a sua própria e, mesmo assim, se envolver com ela. É aprender e adquirir empatia. Começar com sessões de leitura de dez minutos, várias vezes ao dia. Essa é a minha recomendação.
PN – A La Buena Vida segue atendendo sua cliente pela internet. Por que tomou essa decisão?
JT – Seguimos porque, entre outras coisas, o próprio Estado tem ajudado, há alguns anos, o setor comercial como um todo a se digitalizar e nós nos aproveitamos essa oportunidade. Creio que fazer o uso dessas ferramentas agora é a única coisa que podemos fazer para ajudar-nos e fazer que as instituições vejam que as ajudas têm efeitos benéficos em todo o tecido empresarial.
No nosso caso, chegamos a um acordo com alguns dos nossos fornecedores habituais que realizam a operação de pedidos dentro das suas próprias instalações, eliminando etapas e intervenções de pessoas, assim como otimizando os recursos disponíveis, que são escassos.
Não seria justo deixar que só os grandes conglomerados, que não pagam impostos equivalentes em nosso país, pudessem operar. Se, por razões sanitárias, se decretasse que estes serviços não poderiam ser oferecidos, não teríamos nenhum problema em respeitar, porém, daí, ninguém poderia oferecê-los de igual modo.
PN – Como tem gerenciado todo o processo, respeitando os protocolos sanitários?
JT – Não existe nenhum processo além daqueles realizados por um supermercado no fornecimento de alimentos, por exemplo. Além disso, nosso produto não é perecível. Existem serviços mínimos e não há contato com o público. Em Bruxelas, as livrarias ficaram de fora do fechamento do comércio. Eles entendem que as livrarias não são lugares de aglomeração de pessoas e que, ao contrário, servem de oxigênio social e intelectual para o confinamento.
PN – Há algo que queira acrescentar?
JT – Me parece surpreendente que, em uma situação como a atual, sociedades de grande tradição democrática como as europeias possam confinar seus cidadãos em casa mediante um decreto e que, no entanto, não consigam decretar medidas igualmente excepcionais para impor a grandes empresas de tecnologia a retenção de impostos na fonte. É realmente triste e significativo.
Bem, botei um CD pra tocar e ela logo perguntou se o Quarteto era o Borodin. É que ela tinha ouvido um solo de violino que lhe sussurrara qual era o Quarteto. Mas era o Quarteto Kopelman. Só que Mikhail Kopelman foi por anos o primeiro violino do Borodin.
Por José Carlos Fernandes, no Observador.pt
(Copiado aqui só para não perder esta joia).
O maestro Daniel Barenboim gravou pela terceira vez as nove sinfonias de Bruckner. O que tem a música do compositor austríaco que justifique tamanha atenção?
Quem vagueie pelo final da letra B das discotecas, físicas ou online, deparar-se-á com uma apreciável abundância de gravações das sinfonias de Anton Bruckner (1824-1896). Porém, o compositor nem sempre gozou deste prestígio: levou anos a ganhar confiança em si mesmo como compositor e mais anos ainda a afirmar-se no meio musical vienense. Mesmo quando logrou obter algum reconhecimento, nunca deixou de ser alvo de ataques ferozes na imprensa musical, algumas das suas sinfonias foram desfiguradas pelos seus discípulos e outras nem chegaram a ser executadas durante a vida do compositor.
Nos nossos dias, apesar da profusão de gravações, continua a reinar alguma má vontade contra Bruckner entre alguns sectores da crítica, que menoriza as suas obras em termos que raramente são aplicados a outros compositores canónicos.
Um campónio de Ansfelden
Anton Bruckner não partiu de uma posição favorável para vir a ser um grande compositor: foi o primeiro dos 11 filhos de um mestre-escola na vilória de Ansfelden, perto de Linz, e viu sete irmãos morrer na infância; seguiu-se-lhes o pai e Anton, então com 13 anos, foi enviado para o mosteiro de Sankt Florian, onde foi menino de coro e recebeu treino como organista.
Estudou para mestre-escola em Linz e, aos 17 anos, tudo indicava que iria seguir a carreira paterna. O posto de assistente para que foi nomeado em Windhaag sujeitava-o a constantes humilhações do seu superior e era tão mal remunerado que, para equilibrar as finanças, tocava violino e piano nos bailes populares ou desempenhava tarefas mais humildes, como espalhar estrume nos campos agrícolas. As condições eram francamente melhores em Kronstorf, onde esteve em 1843-45, prosseguindo a instrução musical com o organista local. Em 1845, com 21 anos, regressou, como professor de órgão, a Sankt Florian – o mosteiro era afamado por possuir um dos maiores órgãos do mundo, com 103 registos e 7300 tubos. Passaria aí a década seguinte, dividindo-se entre o ensino e o estudo afincado, que lhe permitiu, mediante vários exames, obter qualificações para ensinar a níveis mais elevados.
Após ser nomeado oficialmente organista de Sankt Florian, em 1851, começou a alimentar sonhos mais altos e, a partir de 1855, passou a ir a Viena uma vez por semana para ter aulas com Simon Sechter, um eminente professor de composição (que, por coincidência, fora também o escolhido por Schubert para aperfeiçoar os seus conhecimentos, duas semanas antes de falecer). Em 1856 foi nomeado organista da catedral de Linz e em 1861 fez a estreia pública como maestro, dirigindo uma Ave Maria de sua lavra (a segunda, pois compusera outra em 1856). Nesse mesmo ano, estreou na Catedral de Linz a sua primeira obra de maturidade, a Missa n.º 1.
Este reconhecimento não fez muito para atenuar a sua insegurança: nesse mesmo ano de 1861, deu por terminados os estudos com Sechter, apenas para iniciar novos estudos com Otto Kitzler, primeiro violoncelo da orquestra da ópera de Linz e nove anos mais novo do que Bruckner, que já ia nos 37 anos – o que levaria o maestro Wilhelm Furtwängler a comentar que, com a idade com que “Schubert e Mozart já tinham terminado as suas obras, Bruckner ainda andava a fazer exercícios de contraponto”.
Bruckner continuaria a estudar com Kitzler até 1868.
Mudança para Viena
Só em 1868 resignou ao posto de organista na catedral de Linz e se mudou para Viena, ocupando o lugar de professor no conservatório da cidade, que vagara com a morte de Sechter. Porém, a mudança para Viena esteve longe de corresponder às suas expectativas: o cargo no conservatório era mais mal pago do que o de organista em Linz, o posto de organista da corte não era remunerado e não passava de um título vazio e o posto que almejava na Universidade de Viena foi-lhe sucessivamente negado – só em 1875 acabou por ser-lhe atribuído o cargo de professor de harmonia e composição, mas este trabalho só a partir de 1877 seria remunerado.
Entretanto, após vários anos a produzir exclusivamente música sacra, começara as experiências no género sinfónico: a Sinfonia em fá menor, conhecida hoje também por n.º 00 ou Studiensymphonie, foi composta em 1863, aos 39 anos, como um exercício para Kitzler e raramente é tocada.
A Sinfonia n.º1 foi iniciada em 1865 e estreada em Linz em 1868; mas a confiança vacilou com a sinfonia seguinte, terminada em 1869, mas que Bruckner declarou inválida – só estrearia em 1924 e é conhecida como n.º 0, ou “Die Nullte”.
A n.º 2, dedicada a Liszt e estreada em 1873, foi o primeiro sucesso de Bruckner.
A n.º 3 foi dedicada a Wagner e é referida, por vezes como “Wagner-Symphonie”, apesar de Bruckner ter feito uma “limpeza” das abundantes citações wagnerianas entre a composição, em 1873, e a estreia, em 1877, que foi um fiasco: o público foi abandonando a sala, restando no fim 25 pessoas (entre as quais um rapaz de 17 anos chamado Gustav Mahler), o que levou Bruckner a empreender nova revisão.
A insegurança, motivando sucessivas revisões das partituras, assombrou toda a carreira de Bruckner como sinfonista e nem sempre conduziu a melhores resultados. Quando, duas décadas após a estreia em Linz, Bruckner se dispôs a rever a Sinfonia n.º 1 para uma apresentação em Viena, para agradecer à Universidade a atribuição do grau de doutor honoris causa, o maestro Hermann Levi suplicou-lhe que não alterasse uma nota, mas Bruckner foi em frente – e, todavia, quase todos os maestros de hoje preferem tocar a primeira versão.
Para piorar tudo, três alunos seus – os irmãos Josef e Franz Schalk e Ferdinand Löwe – decidiram tornar a música de Bruckner mais acessível ao gosto médio e prepararam novas edições de várias das suas sinfonias e persuadiram Bruckner a dar-lhes aprovação oficial. Foram estas edições adulteradas que estiveram em uso até à década de 1920, quando os musicólogos as desautorizaram e advogaram o regresso às versões do compositor. Mas este regresso não tem nada de simples, uma vez que Bruckner fizera sucessivas revisões, o que leva a que hoje coexistam diferentes versões de cada sinfonia – esta disputa musicológica divide-se essencialmente entre as edições preparadas pelo musicólogo Robert Haas nos anos 30 e as do seu rival Leopold Nowak nos anos 50, que acusava Haas de ter introduzido alterações a seu bel-prazer, embora existam outras edições, cabendo a cada maestro escolher aquela que entende corresponder mais fielmente às intenções do compositor.
Grandes blocos em bruto
Josef e Franz Schalk e Ferdinand Löwe tinham, no seu limitado entendimento, razões para tentar “normalizar” as sinfonias de Bruckner, pois estas eram diferentes de tudo o que se ouvira até ali. Como escreve Gerald Abraham, em The concise Oxford history of music, “Bruckner orquestrava como o organista que era: por grandes blocos de som, alternando entre naipes orquestrais como se fossem combinações de registos de órgão, incluindo até as pausas de que o organista necessitava para fazer as mudanças de registo”. A vasta arquitectura das suas sinfonia é erguida com blocos ciclópicos, onde os metais desempenham papel proeminente, e caracteriza-se por cortes abruptos, que os Schalk e Löwe tentaram disfarçar, aproximando Bruckner da fluidez wagneriana – ora, Bruckner, embora tivesse uma devoção ilimitada por Wagner não pretendia compor como ele.
Nas duas magras páginas que o guia de música clássica da Third Ear dedica a Bruckner, Stephen Chakwin define-o, certeiramente, como um “Ansel Adams composer”. A analogia que está subentendida é que as sinfonias de Bruckner são o equivalente sonoro das fotos que o fotógrafo americano realizou nas paisagens selvagens do Oeste americano, sobretudo em Yosemite, e que realçam o carácter bravio, inóspito e rude das grandes formações rochosas. As sinfonias de Bruckner estão por lapidar, não porque o compositor não soubesse como o fazer, mas porque as pretendia assim, altaneiras e agrestes como uma cordilheira.
Mas, ao longo da história da música, bem como das restantes artes & letras, sempre houve e sempre haverá a tendência para as pessoas “sensatas”, sejam eles amigos ou editores, tentarem expurgar, ou, pelo menos, atenuar, o que há de estranho, bizarro e idiossincrático nas obras, tendo, por vezes em mente a adequação ao que imaginam ser os gostos, os interesses e as capacidades intelectuais do seu público, e não percebendo que, ao fazê-lo, descartam o que a obra tem de mais original, vital e duradouro.
No fogo cruzado da “Guerra dos Românticos”
Entretanto, em Viena, Bruckner, apesar de desfrutar de uma situação material mais confortável, caíra inadvertidamente no meio de uma acesa disputa estética que opunha brahmsianos a wagnerianos. Bruckner até começara por estabelecer amizade com Eduard Hanslick, o influente crítico da revista vienense Neue Freie Press, mas a admiração de Bruckner por Wagner nunca poderia ser aceitável para o crítico, de gosto conservador, que defendia Brahms e cujo ensaio Sobre o belo na música (1854) abria com um ataque a Wagner.
Hanslick tinha uma pena vitriólica e escreveu coisas tremendas sobre Bruckner: “Interminável, desorganizada e violenta, a Sinfonia n.º8 alonga-se numa duração detestável […] Não é de excluir que o futuro pertença a esta tenebrosa mixórdia, mas será um futuro de que não quero fazer parte”.
A Sinfonia n.º 3 mereceu-lhe esta definição: “a Sinfonia n.º 9 de Beethoven faz amizade com as valquírias de Wagner e acaba espezinhada sob os cascos dos seus cavalos”.
Max Kalbeck, correligionário de Hanslick e crítico no Wiener Allgemeine Zeitung, comparava, em 1883, a música de Bruckner ao chinfrim de uivos e rosnidos produzido por “matilhas de lobos na Noite de Walpurgis [o equivalente germânico da Noite das Bruxas]” e deixava um vaticínio similar ao de Hanslick: “Se o futuro for este caos musical, que soa como os ecos devolvidos por uma centena de escarpas, espero que esse futuro fique muito longe de nós”.
Gustav Dömpke, outro aliado de Hanslick, escrevia, a 22 de Março de 1886, no mesmo Wiener Allgemeine Zeitung: “Arrepiamo-nos, repugnados com o odor a putrefacção que assalta as nossas narinas e que emana deste contraponto apodrecido. A sua imaginação é tão irremediavelmente mórbida e retorcida que algo como uma progressão de acordes regular ou uma estrutura periódica não existem para ele. Bruckner compõe como um bêbedo”.
O extremar de posições entre wagnerianos e brahmsianos levou Bruckner a suspeitar que Brahms estaria por trás dos ataques desferidos por Hanslick e os seus apaniguados – como se Hanslick precisasse de tal incentivo. Consta que Bruckner terá chegado a pedir ao imperador austríaco que fizesse com que Hanslick deixasse de escrever coisas desagradáveis sobre ele.
Mas a reacção adversa não se cingiu aos brahmsianos nem a Viena e, um pouco por todo o mundo “civilizado” surgiram críticas virulentas a Bruckner. Em 1885, a revista nova-iorquina Keynote reagia assim à estreia da Sinfonia n.º 3: “Causa surpresa que qualquer editor com dois dedos de testa tenha concedido a dignidade da publicação impressa a esta partitura, surpresa só comparável à ideia de punir o público inocente com a sua execução, pois não é possível conceber nada mais inane e cansativo do que esta caldeirada de detritos sortidos […] A orquestração é, de fio a pavio, absolutamente pueril e a ausência de construção sensata ou capacidade inventiva atestam a imbecilidade musical do Sr. Bruckner”.
O também nova-iorquino Tribune, em 1886, descrevia assim a Sinfonia n.º 7: “Polifonia ensandecida […] A linguagem orquestral é uma espécie de volapuk musical […] Um fiasco. Talvez seja julgada bela daqui a 25 anos, mas não é bela hoje. A música abateu-se como chumbo sobre o público, do qual um terço saiu da sala após o II andamento”.
Outro crítico norte-americano viu em Bruckner “a maior ameaça musical viva, um Anticristo tonal […] [A expressão do seu rosto] pode revelar a modesta alma de um banal Kapellmeister, mas tudo o que compõe é alta traição, revolução e assassínio. A sua música pode emanar a fragrância de rosas celestiais, mas está envenenada com o enxofre do Inferno”.
Números, raparigas e cadáveres
Mesmo quem não partilhava de opiniões tão extremadas, tinha escasso apreço pelas sinfonias de Bruckner. A Filarmónica de Viena começou por recusar executar as suas três primeiras sinfonias; a Sinfonia n.º 4 foi bem recebida, mas a n.º 5 (completada em 1878) só foi executada, numa versão mutilada por Franz Schalk, em 1894, numa ocasião a que Bruckner não pôde assistir, devido às enfermidades que o atormentaram nos últimos anos de vida.
Sinfonia n.º 6, terminada em 1881, só seria estreada em 1899 (em mais uma versão abastardada), após a morte do compositor. A estreia da n.º 7, sob a direcção de Hermann Levi, foi um sucesso, mas o maestro não ficou agradado com a Sinfonia n.º 8 e foi arranjando pretextos para não a estrear, o que conduziu o compositor a um esgotamento nervoso. Levi transferiu a responsabilidade da estreia para um seu protegido, Felix Weingartner, que voltou a adiar sucessivamente a execução da obra – a estreia só teve lugar a 18 de Dezembro de 1892, sob a direcção de Hans Richter, e embora parte do público tenha deixado a sala, acabou por ser bem acolhida.
Se muitas das resistências a Bruckner no meio musical vienense resultavam da incompreensão da sua música, o carácter do compositor também não ajudava. A vida no meio cosmopolita, as viagens pela Europa (para ouvir óperas de Wagner em Bayreuth, ou dar recitais de órgão em França e em Londres) e o convívio com figuras como Wagner e Liszt pouco fizeram para lhe abrir a sua mentalidade provinciana ou libertá-lo do sotaque rural. As suas roupas eram deselegantes e provincianas e assentavam-lhe mal e as suas competências sociais eram limitadas. Quando Hans Richter ensaiava a sua Sinfonia n.º 4, Bruckner não encontrou melhor forma de exprimir o seu orgulho e satisfação do que meter à força uma moeda na mão do maestro, para que fosse beber uma cerveja à sua saúde.
A sua profunda fé católica assumia frequentemente a forma de beatice: se a meio de uma aula de contraponto, ouvia soar o Angelus numa igreja, ajoelhava-se para rezar, para perplexidade dos alunos.
Seria um eufemismo descrever como “desajeitado” o seu relacionamento com o sexo feminino: Bruckner tinha uma fixação em raparigas adolescentes, mantendo nos seus diários uma longa lista daquelas que lhe agradavam; porém, as suas intempestivas propostas de casamento conduziam invariavelmente à recusa e ao afastamento (numa ocasião os avanços feitos a duas alunas foram tão intrusivos que acabou por ser alvo de um processo disciplinar – a partir de então passou a ensinar só rapazes). Embora tenha continuado a propor casamento a adolescentes para lá dos 70 anos, acabou por permanecer solteiro – a única resposta positiva que obteve veio de uma empregada de quarto de hotel de Berlim, que acabou por recuar perante a exigência de conversão ao catolicismo imposta por Bruckner.
A obsessão de Bruckner por raparigas só tinha par na sua “numeromania”: contava sistematicamente tudo o que se lhe deparava, folhas de árvores, janelas de casas, cataventos em telhados e compassos em partituras. Embora os diagnósticos a esta distância no tempo sejam falíveis, parece certo que sofria de uma desordem obsessivo-compulsiva.
Com a idade, a necromania veio juntar-se ao catálogo de obsessões: vasculhava os jornais em busca de notícias sobre homicídios e execuções, fez fotografar o cadáver da mãe e colocou no seu gabinete a foto da falecida, que, em vida, não tivera direito a tal atenção. Ia a funerais de pessoas que não conhecia e quando, em 1868, o corpo embalsamado do Imperador Maximiliano regressou a Viena (fora executado no México) para ser sepultado, Bruckner não faltou à cerimónia.
O mesmo aconteceu quando os restos de Beethoven e Schubert foram trasladados para o cemitério central de Viena (há relatos de que terá acariciado e beijados os seus crânios e que na excitação para o fazer terá deixado cair uma lente do seu pince-nez para dentro do caixão). Não é de estranhar que tenha deixado instruções para ser embalsamado após a morte.
Desde novo que Bruckner sofria de “melancolia” – aquilo a que hoje se chamaria depressão – a ponto de por várias vezes ter considerado o suicídio. Numa carta a um amigo confessava “um sentimento de completo abandono e perda […] Vivo em permanente frustração e sou demasiado sensível”. Os banhos frios nas termas de Bad Kreuzen não atenuaram estas inclinações, que foram agravando-se com a idade.
Em 1891 começou a compor a Sinfonia n.º 9, mas o esgotamento nervoso causado pelos adiamentos da estreia da n.º 8, ao longo de 1892, desgastou a sua saúde física e mental. As mãos tremiam-lhe tanto que muito do tempo que passava à secretária, a compor, eram gastos a limpar os borrões que se iam multiplicando. Estava consciente de que não lhe restava muito tempo. “Será a minha última sinfonia […] Só peço a Deus que me deixe viver até a terminar”. Quando Mahler o visitou, confidenciou-lhe: “Tenho que acabá-la, ou então farei uma triste figura quando comparecer perante o Criador e ele me perguntar. ‘Então, meu rapaz, o que fizeste com o talento que te concedi para que me cantasses e glorificasses? Até agora vi poucos resultados’”.
Bruckner morreu em 1896, com 72 anos, e foi sepultado em Sankt Florian, perto do órgão de que fora titular. Deixou incompleta a Sinfonia n.º 9, que só estreou em 1903, em mais uma versão adulterada pelos seus alunos. Apesar de várias tentativas para reconstruir um IV andamento a partir dos esboços deixados pelo compositor, a obra é hoje executada com apenas três andamentos. A ideia de substituir o IV andamento pelo Te Deum (composto em 1884), que alguns autores atribuem a Bruckner, é destituída de sentido e não é praticada.
A discografia das sinfonias (em 2017)
A partir da década de 1960, as sinfonias de Bruckner têm vindo a despertar a atenção de maestros, orquestras, editoras e salas de concertos. Há gravações integrais das nove sinfonias (esporadicamente também da n.º 0 e da n.º 00) por:
Riccardo Chailly & Deutsches Symphonie-Orchester Berlin (Decca, gravações de 1985-2002);
Bernard Haitink & Concertgebouw Orchestra (Philips/Decca, 1963-1972);
Eliahu Inbal & Orquestra Sinfónica da Rádio de Frankfurt (Teldec/Warner);
Herbert von Karajan & Filarmónica de Berlim (Deutsche Grammophon, 1975-1980), antecedido de um ciclo incompleto com a Filarmónica de Berlim (EMI/Warner) e seguido por outro ciclo incompleto com a Filarmónica de Viena (Deutsche Grammophon);
Georg Solti & Orquestra Sinfónica de Chicago (Decca, 1979-1995);
Stanislaw Skrowaczewski & Orquestra Sinfónica da Rádio de Saarbrücken (Oehms Classics);
Georg Tintner & Real Orquestra Nacional Escocesa ou Orquestra Sinfónica Nacional da Irlanda (Naxos);
Günter Wand & Orquestra Sinfónica da Rádio de Colónia (RCA/Sony, 1974-1981), mais ciclos incompletos com a Filarmónica de Berlim (RCA/Sony) e com a Orquestra Sinfónica da Rádio do Norte da Alemanha (RCA/Sony).
Somam-se a este acervo gravações parciais por Karl Böhm (Decca), Sergiu Celibidache (EMI/Warner), Christoph von Dohnányi (Decca), Carlo Maria Giulini (Deutsche Grammophon), Otto Klemperer (EMI/Warner) e, em instrumentos de época, Philippe Herreweghe (Harmonia Mundi). E isto para nos ficarmos só por maestros de primeiro plano.
Eugen Jochum, um dos mais eminentes brucknerianos, gravou mesmo o ciclo integral por duas vezes: primeiro com a Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks (Orquestra Sinfónica da Rádio Bávara) e a Filarmónica de Berlim (Deutsche Grammophon, 1958-1967) e depois com a Staatskapelle Dresden (EMI/Warner, 1975-1980).
O maestro e pianista israelita (nascido na Argentina) Daniel Barenboim foi mais longe: depois de gravar as nove sinfonias com a Orquestra Sinfónica de Chicago (Deutsche Grammophon, 1972-1981) e com a Filarmónica de Berlim (Teldec/Warner, 1990-1997), voltou à carga com a Staatskapelle Berlin, em concertos ao vivo realizados em 2010 (Sinfonias n.º4-9, na Philharmonie de Berlim) e 2012 (Sinfonias n.º1-3, no Musikverein de Viena). O registo começou por estar disponível apenas sob a forma de download, através da Peral Music, a editora digital fundada por Barenboim, e cujo nome alude ao seu nome de família – Barenboim vem do alemão Birnbaum, que significa “pereira”.
Esta terceira integral foi agora disponibilizada em formato físico pela Deutsche Grammophon, sob a forma de uma caixa com nove CDs.
O registo das Sinfonias n.º 4-9, na Philharmonie de Berlim, em seis noites consecutivas de Julho de 2010, foi editado em formato vídeo (DVD ou Blu-ray) pela Accentus Music (como caixa de seis discos ou como discos isolados).
Apesar de nem sempre ser fácil estabelecer comparações entre leituras, devido ao recurso a diferentes edições (Haas, Nowak, etc.), é audível que a abordagem de Barenboim tende a polir e homogeneizar o som, atenuando os contrastes abruptos, efeito que é reforçado por uma imagem sonora um pouco difusa.
Os naipes da Staatskapelle Berlin soam perfeitamente integrados, o que alguns verão como positivo, mas que poderá parecer menos apelativo a quem entenda que as arestas e rugosidades são parte essencial das sinfonias de Bruckner e que os metais devem soar claramente recortados contra a restante textura orquestral.
Solti, Karajan e Jochum são, em geral, mais acutilantes e dramáticos nos trechos mais agitados, mas Barenboim oferece excelentes leituras dos trechos mais serenos. Nos finais das Sinfonias n.º 2 e n.º 6, Karajan é mais trágico e exaltado. No I andamento da n.º 4, Jochum & Staatskapelle Dresden oferece mais ênfase e articulação mais definida, embora no andamento seguinte as diferenças se esbatam.
Na n.º 8, a mais longa e imponente das sinfonias, Barenboim oferece uma leitura algo desvitalizada e flácida.
Tratando-se da terceira incursão nestas obras, esperar-se-ia que Barenboim tivesse algo de novo para revelar, porém traz-nos apenas mais uma interpretação de bom nível, que dificilmente se imporá como alternativa às versões de referência já existentes. Todavia, poderá ser apelativo para quem ache que as sinfonias de Bruckner soam melhor se forem amaciadas e polidas.
Para línguas de anjos
Salvo um quinteto de cordas composto em 1879 e mais uma ou outra peça ou fragmento de música de câmara escrito como exercício durante a sua longa aprendizagem, a obra de Bruckner resume-se às sinfonias e à música sacra. Esta consiste em oito missas (incluindo um Requiem), um Te Deum e meia centena de motetos e salmos, mas parte das missas e motetos são obras “de aprendizagem” ou “de circunstância”, que raramente são tocadas.
A Deutsche Grammophon reeditou há poucos meses uma caixa económica com as gravações realizadas por Eugen Jochum com o Coro e a Orquestra Sinfónica da Rádio Bávara ou com o Coro da Deutschen Oper de Berlim e a Filarmónica de Berlim, entre 1965 e 1972.
Os quatro CDs contêm o essencial das obras sacras da maturidade de Bruckner, que correspondem às obras que se implantaram no repertório corrente: as Missas n.º 1 (1864), n.º 2 (1866) e n.º 3 (1867), uma dezena de motetos e salmos (os mais consagrados, como Locus iste, Os justi ou Vexilla regis) e o Te Deum.
A música sacra de Bruckner é mais convencional do que as suas sinfonias, mas nem por isso as três missas “de maturidade” e o Te Deum deixam de estar entre o que de melhor se produziu no género no século XIX.
O Te Deum começou a ser composto em 1881 e concluído em 1884 e foi dedicado “à glória do Senhor”, em jeito de acção de graças pelo sucesso alcançado pela sua Sinfonia n.º 4. Foi estreado em versão integral, com orquestra, apenas em Janeiro de 1896 (foi a última vez que Bruckner assistiu à execução de uma obra sua) e o autor tinha-o em grande apreço – “se apresentar a partitura do meu Te Deum ao Criador, ele julgar-me-á com benevolência”. O musicólogo Jean Gallois dizia ser o Te Deum “a obra bruckneriana por excelência” e Mahler, que a dirigiu várias vezes, riscou, no seu exemplar da partitura, a indicação “Para coro, solistas e orquestra” e escreveu “Para línguas de anjos, bem-aventurados, corações atormentados e almas pacificadas pelo fogo”.
Estas versões de Jochum têm sido o padrão pela qual as outras têm sido avaliadas, mas, face ao padrões actuais de qualidade sonora, deixam algo a desejar. Salvo o Te Deum, registado na acústica generosa da Jesus-Christus Kirche, de Berlim, soam secos, baços e distantes.
O problema é mais notório nos motetos, que resultam morosos, sem detalhe e sem vida, sobretudo quando postos em confronto com o CD inteiramente preenchido com motetos de Bruckner gravado pelo Coro da St. Mary’s Cathedral, de Edimburgo, com direcção de Duncan Ferguson, para a Delphian.
A abordagem de Duncan, com um coro muito mais pequeno, as partes de soprano confiadas a crianças (rapazes e raparigas) e a vantagem de uma acústica reverberante, traz uma frescura e intensidade que faz a versão de Jochum soar amarelecida e murcha.
Também nas missas Jochum enfrenta hoje concorrência séria, de Matthew Best (Hyperion) e, mais ainda, de Philippe Herreweghe (Harmonia Mundi).
Embora não tenham envelhecido tão bem como os dois registos integrais das sinfonias, os registos de música sacra por Jochum para a Deutsche Grammophon não deixam de ter méritos, nomeadamente um bom leque de solistas, em que avultam Edith Mathis, Maria Stader, Ernst Haefliger ou Karl Ridderbusch, e o baixo custo.
O Bardo sobreviveu à praga, referenciou-a em algumas de suas peças mais famosas e tornou suas quarentenas produtivas | Ilustração fotográfica da revista Slate. | Fotos da Biblioteca de Manuscritos Raros da Universidade de Yale e Wikipedia.
William Shakespeare (1564-1616) é considerado por muitos o maior escritor de língua inglesa de todos os tempos. Autor de clássicos da dramaturgia como Romeu e Julieta, Macbeth, Rei Lear, A Tempestade e Hamlet, o “Bardo” foi um escritor prolífico, que sabia como ninguém trabalhar e interpretar os caminhos e lacunas da psicologia humana. O que pouca gente sabe, porém, é que a epidemia de Peste Bubônica na Europa teve um papel fundamental em sua vida e obra.
É realmente verdade o pouco que se sabe sobre Shakespeare? Bem, talvez. Mas, certamente, é justo dizer que, como todos os elizabetanos, a carreira do dramaturgo foi afetada pela peste bubônica de maneira quase impossível de se conceber agora, mesmo em meio a pandemia do Covid-19. Quando criança, teve a sorte de sobreviver à doença: é que Stratford-upon-Avon foi devastada por um enorme surto no verão de 1564, logo após seu nascimento, e até um quarto da população da cidade morreu. Ao crescer, Shakespeare deve ter ouvido inúmeras histórias sobre esse evento apocalíptico e se ajoelhado na igreja em lembrança e respeito solenes aos mortos. Seu pai, John, esteve intimamente envolvido nos esforços de assistência e participou de uma reunião para ajudar os mais pobres de Stratford. Ela foi realizada ao ar livre em razão do risco.
Quando Shakespeare se tornou um ator profissional, além de dramaturgo e acionista de uma empresa de Londres, a peste representou uma ameaça tanto profissional quanto existencial, tanto econômica quanto médica. Por falar em médicos, os doutores elisabetanos não tinham ideia de que a doença era transmitida por pulgas de ratos e, no momento em que um surto explodia — muitas vezes durante os meses de primavera ou verão, estações de pico dos teatros –, as autoridades proibiam as reuniões de massa. Pior, isolavam pessoas em casas por onde os roedores passeavam com suas pulgas. Dado que as autoridades naturalmente suspeitavam da arte como um incentivo à indecência e às fantasias e Deus sabe o que mais, os teatros eram, invariavelmente, os primeiros a fechar. Além dos bordéis, claro. Como um pregador da época disse categoricamente: “A causa das pragas é o pecado, e a causa do pecado é a peça de teatro”. Entre 1603 e 1613, quando a capacidade de Shakespeare como escritor estava no auge, o Globe e outros teatros de Londres foram fechados por um total surpreendente de 78 meses…
Em tempos de isolamento social em razão do COVID-19, a revista americana Slate publicou um excerto do livro The Hot Hand: The Mistery and Science of Stakes, de Ben Cohen, que conta como isso aconteceu.
Como disse, Shakespeare já nasceu em meio a uma epidemia na pequena cidade de Stratford-upon-Avon. Foi o terceiro filho de oito, sendo o mais velho a sobreviver. De acordo com Cohen, apesar da peste ser “a força mais importante na vida dos seus contemporâneos”, ela era um tabu para Shakespeare e outros escritores. Eles não falavam dela, não era de bom tom.
Porém, ela surge num momento decisivo de sua obra. Em Romeu e Julieta, a principal reviravolta da história acontece por causa da peste. A trágica falha de comunicação entre os amantes mais famosos de todos os tempos acontece por um motivo insólito… O personagem Frei Lourenço, responsável por entregar a carta que revelaria os planos de Julieta a Romeu, não conseguiu sair de casa por causa de uma quarentena!
Foi a quarentena também a responsável por um dos períodos mais produtivos do “Bardo”. Entre os anos de 1605 e 1606, a maioria dos teatros da Inglaterra estavam fechados por medidas sanitárias, fazendo com que Shakespeare não pudesse se apresentar com sua companhia teatral. Ele se aproveitou disso para escrever. Foi nesses anos que produziu alguns dos seus maiores clássicos: Antônio e Cleópatra, Rei Lear e Macbeth.
Vamos ao texto de Cohen?
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A pestilência infecciosa reinou
Como a praga devastou o mundo de William Shakespeare e inspirou seu trabalho, de Romeu e Julieta a Macbeth
Traduzido livremente por mim da Revista Slate
Texto original de Ben Cohen
Num dia de verão em 1564, o aprendiz de um tecelão morreu em uma pequena vila no interior da Inglaterra, uma tragédia local que foi imortalizada nos registros da cidade. Ao lado do nome do aprendiz, foram escritas três palavras ameaçadoras em latim: “Hic incipit pestis” (Isso inicia pestes).
A epidemia destruiu uma porção considerável da vila. Sobreviver foi aparentemente uma questão de sorte. A praga poderia dizimar uma família e poupar a família ao lado. Em certa casa, numa rua chamada Henley Street, por exemplo, havia um jovem casal que já havia perdido dois filhos devido às ondas anteriores da peste, e seu filho recém-nascido tinha três meses quando eles trancaram as portas e janelas para tentar impedir que a praga invadisse sua casa novamente. Eles sabiam, por infelizes experiências, que os bebês eram especialmente vulneráveis a essa doença. Entenderam muito bem que seria um milagre se ele sobrevivesse. Era como se eles estivessem jogando uma moeda num cara ou coroa, apostando a vida de seu rebento. Mas quando a peste foi embora naquela pequena vila no interior da Inglaterra, chamada Stratford-upon-Avon, o casal deu um suspiro de alívio por seu filho ainda estar vivo. O nome dele era William Shakespeare.
Existe a possibilidade de Shakespeare ter desenvolvido imunidade em razão de sua exposição quando criança, mas essa especulação começou apenas séculos mais tarde e somente porque a peste foi um incômodo constante para Shakespeare. “A peste foi a força mais poderosa que moldou sua vida e a de seus contemporâneos”, escreveu Jonathan Bate, um de seus biógrafos. As epidemias eram naturalmente um assunto tabu na sociedade da época. Mesmo quando as pessoas só pensavam a respeito dela, ninguém falava a respeito. E os londrinos iam aos teatros da cidade para que pudessem esquecer temporariamente do medo.
Mas a peste também era uma arma de Shakespeare. Ele não a ignorou. Ele a usou.
Um exemplo deste curioso fenômeno é Romeu e Julieta. É basicamente impossível apreciar a natureza verdadeiramente louca dessa peça quando você a lê pela primeira vez. Então vamos apontar alguns detalhes agora. Você provavelmente se lembra do básico da trama: Romeu e Julieta nascem em famílias rivais; Romeu e Julieta se apaixonam; Romeu e Julieta morrem. Mas você se lembra como isso acontece? Talvez não. E você sabia que a peste é o que acaba separando Romeu e Julieta? Aposto que não lembra.
Há outra morte no 3º Ato de Romeu e Julieta, um assassinato. Romeu mata Tybalt, primo de Julieta. Isso é um problema, porque não somente porque a família de Romeu é inimiga jurada da de Julieta, mas porque, como consequência, Romeu é banido de Verona. Julieta não sabe o que fazer. Quando ela conversa com Frei Lourenço, ele decide que há uma maneira de acabar com a rixa entre as famílias: ele casará Romeu e Julieta. E traça um plano que exige que Julieta tome uma poção que a faça dormir por tanto tempo que sua família achará que ela está morta. Ao mesmo tempo, Lourenço escreverá uma carta para Romeu explicando o esquema preparado. Frei João entregará essa carta a Romeu na cidade de Mântua, onde ele está agora. Romeu voltará furtivamente e roubará Julieta para que eles possam se casar e viver felizes para sempre.
Era um plano absolutamente maluco que funcionará pessimamente — mas não pelas razões que você poderia esperar. Julieta bebe a poção. A família dela acha que ela está morta. Romeu volta furtivamente para vê-la. Por enquanto, tudo bem. Mas a parte mais confiável desse plano ridículo não funciona: Frei João nunca chega a Mântua e, assim, a carta de Frei Lourenço nunca chega a Romeu. O que acontece a seguir é uma série de eventos altamente infelizes. Romeu acha que Julieta está morta. Ele se mata. Julieta acorda de sua falsa morte e descobre que Romeu está morto de verdade. Ela se mata.
Vamos retroceder algumas cenas e ler como Frei João explica a Frei Lourenço o motivo pelo qual ele nunca chegou a Mântua. (Eu, Milton Ribeiro, reli na tradução de José Francisco Botelho e copio aqui para vocês). A conversa deles revela como o esquema se desfez.
FREI LOURENÇO
Vens de Mântua. E Romeu, o que nos diz?
Se ele escreveu, me entregue sua carta.
FREI JOÃO
Eu fui atrás de um outro irmão descalço,
Da nossa Ordem, pra me acompanhar
Na visita aos doentes da cidade
Fui atrás e encontrei, mas a patrulha,
Foi à casa onde estávamos, nós dois,
Suspeitando que a praga ali imperasse,
Selou as portas, nos prendeu lá dentro,
E, por isso, eu não pude ir a Mântua.
FREI LOURENÇO
E quem levou a carta até Romeu?
FREI JOÃO
Eis a carta. Não pude enviá-la,
Nem buscar mensageiro que a trouxesse,
Tamanha era a suspeita de contágio.
FREI LOURENÇO
Acidente infeliz!
Por que Frei João não entregou a carta de Frei Lourenço a Romeu? Porque ele ficou preso em QUARENTENA. Deste modo, Romeu e Julieta foram indiretamente atingidos pela peste. A praga é a reviravolta que transforma a mais famosa história de amor já contada em uma tragédia.
Toda a peça desemboca e gira em torno dessa cena final. Talvez você não lembrasse de como a praga criou a tragédia final. Shakespeare foi propositadamente discreto. Ele escreveu em linguagem velada, mas o subtexto era óbvio na época. Ele não precisava explicar o assunto. Mencionar a praga era o equivalente shakespeariano de terminar um tweet com ridículo emoticon. Não havia necessidade de qualquer tipo de explicação adicional. “A peste era onipresente”, diz James Shapiro, professor da Universidade Columbia. “Todo mundo na época sabia exatamente o que essas uma ou duas linhas significavam.”
Mas como Shakespeare usaria a praga mais tarde em sua vida?
Estudiosos acreditam que Shakespeare escreveu Rei Lear, Macbeth, e Antônio e Cleópatra em poucos meses entre 1605 e 1606. O consenso era o de que Shakespeare escrevia duas peças por ano, mas isso é dito por estudiosos de literatura nada estatísticos. Eles chegaram a esse número simplesmente dividindo o número de peças que ele escreveu pelo número de anos produtivos. Deu duas por ano. Segundo estes cálculos, se Shakespeare escreveu 10 peças em cinco anos, escreveu duas peças por ano… Bobagem, isso não é nem remotamente verdade.
Acontece que “Shakespeare não era um conta-gotas teatral, ele escrevia em espasmos, em grupos”, diz Shapiro. “Foi algo que demorei um pouco para entender, simplesmente porque eu sempre acreditei nas alegações infundadas de que ele produzia duas peças por ano. Mas nunca foi o que ele fez. Shakespeare escrevia em surtos de criatividade. Suas peças não foram espalhadas de forma homogênea ao longo de sua carreira. Elas vinham agrupadas. “E quando você começa a ver essas peças realmente agrupadas, começa a perguntar: o que explica tantas peças em um período muito curto de tempo?”
Ora, a peste. A praga fechou os teatros de Londres e forçou a companhia de atores de Shakespeare, os King’s Men, a serem criativos em suas apresentações. Enquanto viajavam pelo campo inglês, parando em cidades rurais que não haviam sido atingidas pela praga, Shakespeare notou que escrever era uma melhor utilização de seu tempo. “Isso significava que seus dias eram livres pela primeira vez desde o início da década de 1590”, escreveu Shapiro em seu livro The Year of Lear: Shakespeare in 1606, o melhor relato desse momento estranho em sua vida.
Além disso, Shakespeare também se beneficiou da praga por um motivo do qual não tinha controle: ela dizimou a concorrência que permaneceu em Londres… Os King’s Men acabariam recuperando seus espaços de teatro por causa da doença que atacava mais os jovens. A praga criou a circunstância que fez explodir o talento de Shakespeare, primeiro ele escrevia durante o dia nas viagens para fugir da peste, depois voltou e viu o campo livre . E ele tinha com ele Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra.
“Três tragédias realmente extraordinárias”, diz Shapiro. “Estou sempre interessado em como e porque essa coisa misteriosa aconteceu. Shakespeare entendeu completamente o mundo em que estava e era capaz de falar com ele e por ele!”. Muitas vezes, é tentador para os estudiosos examinar determinados momentos da carreira de Shakespeare através das lentes de sua vida pessoal. O problema com essa linha de pesquisa é que eles ainda não sabem muito da vida do Bardo. “Não temos ideia do que ele estava sentindo”, escreveu Shapiro em seu livro. “Sabemos muito mais sobre como uma visita de roedores em 1606 alterou os contornos da vida profissional de Shakespeare, transformou e revigorou sua companhia de teatro, prejudicou a concorrência e mudou a composição do público para quem ele escreveria (e, por sua vez, os tipos de peças que ele poderia escrever).
Shakespeare não era um escritor com um metrônomo na mão. Ele era participante de sua época. Estava envolvido pelo ambiente. E escrevia em surtos de criatividade. E esses surtos eram possibilitados pelo que ocorria lá fora. Eram forças além de seu controle. Foi por causa da praga que ele conseguiu transformar um período de grande convulsão social em algo completamente diferente: num arrebatador nível artístico cujo brilho dura até nossos dias.
Bolsonaro decidiu por esse “jejum religioso” depois que Marco Feliciano foi bater na sua porta. Como eu previa — e não sou nenhum gênio — os neopentecostais escolheram o lado dos criminosos. É natural. A atuação deles tem muito a ver com as atividades ilícitas. Seu modus operandi é a pura exploração da ingenuidade com a finalidade de enriquecer.
Ninguém está calmo, ninguém está prevendo um futuro brilhante. Eu só penso em sobreviver, eu e a Bamboletras. Estamos trabalhando em regime de tele entrega e correndo bastante. É uma novidade pra nós.
Pois hoje eu pensei que tivesse enlouquecido. Passei na frente do servidor e ele, sem ter ninguém a operá-lo, estava respondendo sozinho a um e-mail de uma editora. E respondia com lógica e educação. O cursor se mexia, fazia copiar/colar e escrevia com sintaxe perfeita sem ninguém sentado na frente do teclado e do monitor.
Estava pensando em sair correndo ou em telefonar pro Robson Pereira, pra Lucia Serrano Pereira, pro Julio Conte, pra Larissa Bacelete, pro Claudio Costa ou pra Vera Rodrigues pedindo uma hora, quando lembrei que uma de nossas funcionárias estava trabalhando em home office através do AnyDesk.
Qual é a graça de morrer de susto durante a pandemia?
Gerárd de Cortanze é um biógrafo de Frida Kahlo. Quando este livro, cujo título original é Los amantes de Coyoacán, foi lançado, ele disse ter feito um enorme trabalho de pesquisa, tornando-se uma espécie de Sherlock Holmes da relação entre Frida Kahlo e Leon Trótski, rastreando todos os números e provas, comparando dados e informações. E completou dizendo que tudo o que “afirmo e escrevo é justo e verdadeiro. A imprensa da época, testemunhos, os diários íntimos, as memórias, usei tudo para contar essa história.”
Ele denomina a obra de romance, mas a parte romanceada serviu apenas para corrigir dúvidas que os documentos deixaram vagos e para preencher e ligar cenas.
Trótski chegou ao México após oito anos de exílio. Ele era perseguido tanto por Stálin como pelos fascistas. Foi ao país a convite do pintor Diego Rivera, na casa de quem se hospedou. Ao chegar com a esposa Natalia, foi recebido pela mulher de Rivera, Frida. Trotski jamais tivera contato com uma mulher assim — inteligente, saltitante, sorridente e, principalmente, livre. A paixão foi imediata. A bissexual Frida logo atacou, atraindo-o para sua cama na Casa Azul, onde vivia desde a infância. O marido de Frida, Diego Rivera, tinha vários casos, um deles com a cunhada, Cristina. Para se vingar, Frida passou a encontrar Trótski no apartamento da irmã. Por fim, separou-se de Diego.
O livro humaniza duas importantes figuras históricas que costumavam trocar bilhetinhos de amor dentro de livros. Frida, sempre corajosa. Leon, apaixonado, mas sem nenhuma intenção de abandonar a esposa. O casal também podia se disfarçar para fugir dos seguranças em cenas nada engrandecedoras. Trótski diz que com Frida viveu seu grande amor. Feliz, Frida produz muito naquele período de paixão. Achei muito divertidas as cenas com o ultra chato surrealista André Breton.
Bem contextualizado, o romance mostra não somente um caso amoroso, mas como o marxismo era visto e combatido na época. Quase todos os intelectuais eram comunistas cindidos entre os campos stalinista e trotskista.