Atrás do balcão da Bamboletras (LIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LIII)

Entra um cliente esbaforido e pergunta pelo livro X. Diz que precisa dar de presente hoje para sua mulher, que faz aniversário. Eu lhe respondo que vendi o último à tarde, depois olho para trás e vejo que há um exemplar na reserva. Eu prometi para o cliente que reservou entregar-lhe o livro entre 10 e 12h amanhã. Mandei até uma foto do livro, idiota que sou. Chega aquele momento de reflexão que começa por PQP.

— PQP, o cara está aqui, quer o livro. E o livro está ali.

Já notei que todo livreiro gosta de correr riscos. Nem é pela grana, é pela função mesmo, pelo prazer da logística alucinada de correr atrás. Penso que posso ir cedinho na distribuidora, pegar o livro — se houver… — e abrir a Livraria um pouco depois do horário.

Retiro lentamente o livro da prateleira das reservas e digo para o cliente que olha, este está reservado e coisa e tal. O cara é um bom sujeito e diz que não quer me prejudicar junto a outro cliente. Eu reflito novamente, desta vez começando por f°da-se.

— F°da-se, dou um jeito.

E vendo o livro.

Enquanto passamos o cartão, ele me pergunta sobre quem escreve aquelas resenhas no perfil da Livraria Bamboletras. Eu digo que sou eu. E ele diz:

— Muito, mas muito melhor que os textos das editoras. A gente fica se coçando pra ler os livros.

Eu agradeço e digo que se não escrever algo, é como se não tivesse finalizado a leitura.

Então, amanhã pela manhã, às 8h30, estarei correndo para fazer a substituição. Se vocês verem um louco correndo pelo centro de Porto Alegre, há boas chances de ser eu.

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Deu tudo certo, mas com emoção. Fui na distribuidora e não tinha o livro. Pedi em outra e tinha, mas o motoboy que foi buscar teve im contratempo — o cabo do acelerador da geringonça se rompeu. Mas entregamos o livro sem problemas ao meio-dia. O livro era fácil de achar: era o excelente Bambino a Roma, de Chico Buarque.

 

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Notas de Concerto: a Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach

Notas de Concerto: a Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach

Vamos começar falando de um compêndio que influenciou gerações de melômanos no Brasil. O tal livro é Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux. Muita gente da minha geração e das anteriores (talvez também das posteriores) leram este livro. Na parte que fala de Bach, Carpeaux o colocava como o maior compositor de todos os tempos (OK), mas dizia ousadamente que a Missa em si menor era a maior obra de todos os tempos. Carpeaux gostava de afirmativas bombásticas e de comparar alhos com bugalhos, mas era um cara tão respeitado — era colunista o autor de uma História da Literatura Ocidental em oito volumes, reconhecera Grande Sertão: Veredas com um clássico absoluto 15 dias após seu lançamento e já tinha feito o algo parecido com outros autores — que todo mundo até se vestia melhor em casa para ouvir a tal maior obra de todos os tempos. E, mesmo que ele tenha se enganado na medição das obras — eu sei lá! –, está muito próximo de ter falado a verdade. Na verdade, a Missa em Si Menor, foi primeiramente aclamada como a “maior composição musical de todos os tempos e todas as culturas” por seu primeiro editor, Hans-Georg Nägeli, de Zurique em 1818. E é isso que vocês vão ouvir hoje.

Talvez algum desavisado espere um padre hoje na Ospa, então acho que mais do que natural explicar o que é uma Missa em música. Pode-se dizer que a Missa é uma obra musical religiosa cantada por solistas e/ou coral que, diferentemente da maioria dos Oratórios, Paixões — como o Messias de Handel — e Cantatas, não possui recitativos. O que é o recitativo? Trata-se de gênero de canto declamado, surgido no final do século XVI, que passou a integrar óperas, cantatas e oratórios. Servem de conexão entre as árias cantadas. OK, e o que é uma ária? Ária é qualquer composição musical escrita para um cantor solista, tendo quase o mesmo significado de canção. Podem ser duetos, tercetos, etc. tb. E o que é um coral? É uma composição escrita para coro ou coro e orquestra. Geralmente (mas não necessariamente) usa-se o termo “ária” quando está contida dentro de uma obra maior, como uma ópera, cantata ou oratório e “canção” quando é uma peça avulsa. Existe canção em música erudita? Certamente. Purcell, Richard Strauss e principalmente Schubert praticaram o gênero com resultados magníficos. A Missa em si menor é formada de magníficas árias e corais.

Mas a Missa possui outra característica: ela, teoricamente, tem uma estrutura e texto padrão em latim. A estrutura básica compõe-se do Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. E quem compôs Missas? Quase todos os grandes compositores: Palestrina, Bach, Haydn, Rossini, Beethoven, Schubert, Bruckner, Janáček, etc.

I. Missa (Kyrie & Gloria)

Intervalo

II. Symbolum Nicenum (Credo)
III. Sanctus
IV. Osanna, Benedictus, Agnus Dei et Dona nobis pacem

Outra espécie de Missa é o Réquiem. Todos nós conhecemos os famosos Réquiens de Mozart, o de Verdi, o Réquiem Alemão, de Brahms e o War Requiem, de Britten, etc. Além disso, há obras sobre partes da missa ou outros textos litúrgicos, como o Gloria (Vivaldi e Poulenc), o Magnificat (Bach), o Te Deum (Purcell, Haydn, Mozart, Bruckner), o Stabat Mater (Vivaldi, Pergolesi), o Exsultate, jubilate (Mozart), entre outros.

Agora, vamos a Bach. É verdadeiramente notável o porte e o grau de influência de Bach, assim como sua colocação como pedra fundamental de toda a nossa cultura musical. O mundo criado por Bach foi desenvolvido numa época em que não havia plena noção de obra; ou seja, Bach não se colecionava para servir à posteridade como os autores passaram a fazer logo depois. Ele escrevia para si, para seus alunos e contemporâneos. Sabe-se pouco a seu respeito como pessoa. Sabe-se que estava sempre procurando cargos mais bem reminerados, que era brigão, que bebia (e produzia) muita cerveja, que teve muitos filhos. Muitos mesmo.

Teve 7 com a primeira esposa Maria Barbara que viveu e trabalhou com ele de 1707 e 1720 (13 anos). Três caíram na alta mortalidade infantil da época. E teve 13 com Anna Magdalena, com quem ficou casado entre 1721 e 1750 (29 anos), dos quais sete faleceram prematuramente. Quatro dos filhos tornaram-se compositores (Wilhelm Friedemann, Carl Philipp Emanuel, Johann Christian e Johann Christoph Friedrich), um filho tinha problemas mentais e havia quatro meninas que chegaram à idade adulta.

Com tantos filhos, era natural que Bach procurasse sempre melhores empregos. À época, fazer isso poderia ser um grande problema. Os empregadores consideravam traidores quem fazia isso. Por exemplo, quando Bach recebeu uma oferta do Príncipe Leopold, de Köthen, Bach pediu permissão para deixar Weimar, onde trabalhava. Mas o Duque de Weimar não quis perder os serviços de seu brilhante músico e recusou o pedido. Como Bach insistisse, o Duque não teve dúvidas em colocá-lo na prisão, isso sem nenhum processo. Bach passou trinta dias preso. Porém, ao sair da prisão, em dezembro de 1717, partiu imediatamente para Köthen com sua família já de quatro filhos, sendo nomeado mestre de capela da corte do Príncipe Leopold.

Mesmo com os filhos e os alunos, a perfeição e o número de obras que Bach criava e que era rápida e desatentamente fruída pelos habitantes das cidades onde viveu, era inacreditável. Tentaremos dar dois exemplos:

(1) Suas obras completas, presentes na coleção Bach 2000, estão gravadas em 153 CDs. Grosso modo, 153 CDs são 153 horas ou 6 dias e nove horas ininterruptas de música… original,

(2) como se não bastasse, ele parecia divertir-se criando dificuldades adicionais em seus trabalhos. Muitas vezes o número de compassos de uma ária de Cantata ou Paixão, corresponde ao capítulo da Bíblia onde está o texto daquilo que está sendo cantado. Em seus temas também aparecem palavras — pois a notação alemã (não apenas a alemã) é feita com letras. Ou seja, pode-se dizer que ele sobrava…

E imaginem que durante boa parte de sua vida Bach escrevia uma Cantata por semana. Em média, cada uma tem 20 minutos de música. Tal cota, estabelecida por contrato, tornava impossível qualquer “bloqueio criativo”. Pensem que ele tinha que escrever a música, copiar as partes e ainda ensaiar para apresentar domingo, todo domingo.

Mas se ele era tão ocupado, por que escreveu uma Missa de grandes proporções? Há duas teses:

  1. Bach escreveu-a em 1733 (revisou-a em 1749) com a intenção de que ela fosse uma obra ecumênica. Seria a coroação de sua carreira de compositor sacro. Quando a Bach, roubou de si mesmo ou fez retornar alguns de seus melhores trabalhos de sua longa obra. Imaginem que ele trouxe para a Missa uma ária que compusera em 1714! Naquele momento ele fazia uma revisão de si mesmo e, por isso, a Missa também é um sumário de sua obra sacra. Para completar, o trechos compostos especialmente foram criados por um compositor no auge de sua capacidade. O que apoia esta tese do ecumenismo, da unidade cristã é o fato da Missa ter sido escrita em latim, contrariamente às Cantatas e Paixões, sempre escritas em alemão. Tal fato deixaria a Missa mais próxima dos católicos.
  2. Mas hoje a tese mais aceita é muito outra. Na verdade, pleiteava um emprego junto ao Rei “católico” em Dresden, Augusto III) em 1733. Isso explica a linguagem católica. Ele cobiçava um cargo em Dresden, loucamente. Era a melhor corte musical da Europa, repleta de Vivaldi, dinheiro, bons amigos… Bach correu a vida toda atrás de melhores postos, e ficou sempre, infelizmente, aquém. Assim, ao apresentar da Missa em Dresden, fez uma aposta alta e reuniu seus melhores materiais, reciclando muito de seus arquivos, o que sempre fez com perícia. O Kyrie e o Gloria foram compostos naquele ano, o primeiro como um lamento pela doença de Augustus, o Forte, que veio a falecer em 1 de fevereiro de 1733, e o segundo para celebrar a ascensão de seu sucessor, o Eleitor da Saxônia e mais tarde rei da Polônia, o Rei Augusto III, que, para assumir o trono da Polônia, se converteu ao catolicismo. Estas duas seções foram apresentadas por Bach a Augustus III, junto com uma nota datada de 27 de julho de 1733, como uma Missa com as partes Kyrie e Gloria, na esperança de obter o título de Compositor da Corte da Saxônia, lamentando-se de que havia sofrido imerecidamente, uma injúria após outra em Leipzig. Provavelmente, estas partes da Missa foram executadas em 1733, na Sophienkirche, em Dresden, onde Wilhelm Friedemann Bach trabalhava como organista desde junho, sem a presença daqueles a quem eram dedicados.
Johann Sebastian Bach – carta na qual o compositor alemão dedica o Kyrie e o Gloria de sua ‘Missa em Si Menor’ a Frederico Augusto, Eleitor da Saxônia. Datada de 19 de agosto de 1733.

— O Sanctus foi composto em 1724
— O Credo pode ter sido escrito em 1732.
— Em 1747 ou 1749, Bach copiou toda a partitura.

A Missa em Si menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach, é uma obra monumental que merece ser ouvida por várias razões:

  1. Síntese do Gênio de Bach: Esta obra é frequentemente vista como o ápice da carreira de Bach, sintetizando suas habilidades como compositor de música sacra. Ela combina estilos e técnicas que Bach desenvolveu ao longo de sua vida, unindo elementos de música coral, orquestral e solos vocais em uma obra magistral.
  2. Diversidade Estilística: A Missa em Si menor abrange uma impressionante variedade de estilos musicais. Desde o uso do contraponto renascentista até elementos do barroco tardio, Bach demonstra sua capacidade de fundir e elevar diferentes tradições musicais. Isso faz da Missa uma verdadeira enciclopédia de técnicas musicais da época.
  3. Profundidade Espiritual: Embora Bach tenha sido um luterano devoto, a Missa em Si menor é uma obra universal em seu alcance. Ela transcende divisões confessionais, oferecendo uma expressão profunda da espiritualidade cristã. A música é emocionalmente poderosa, capturando desde a solenidade do “Kyrie” até a exultação do “Gloria”.
  4. Complexidade Técnica e Beleza Harmônica: A complexidade técnica da Missa é extraordinária. As fugas, as sobreposições harmônicas, e a interação entre vozes e instrumentos são de uma sofisticação raramente igualada na música. No entanto, apesar dessa complexidade, a obra nunca perde sua beleza melódica e harmônica, sendo ao mesmo tempo acessível e profundamente rica.
  5. Legado Histórico: A Missa em Si menor é uma das obras mais influentes da música ocidental. Ela foi redescoberta e valorizada no século XIX, e desde então, tem sido um pilar do repertório coral e orquestral. Sua importância histórica e musical a coloca entre as maiores composições já escritas.
  6. Experiência Emocional: Ouvir a Missa em Si menor é uma experiência emocional poderosa. A combinação de vozes, orquestra e a arquitetura musical de Bach cria um impacto que vai além das palavras. Cada seção da Missa evoca uma gama diferente de emoções, desde a penitência até a glória, fazendo dela uma obra completa e emocionalmente envolvente.

Esses aspectos fazem da Missa em Si menor uma obra que não só deve ser ouvida, mas também estudada e apreciada como uma das maiores realizações da música clássica.

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E aqui está a palestra para o Notas de Concerto:

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O homem que via o trem passar, de Georges Simenon

O homem que via o trem passar, de Georges Simenon

Este livro é um torpedo, uma obra-prima. Simenon era um mestre da análise psicológica. Em O homem que via o trem passar, acompanhamos Kees Popinga, um sujeito de lógica nada normal. Normal, Popinga assim parece nas primeiras páginas. Em sua bela vila em Groningen, na Holanda, ele leva uma vida pacífica e previsível com sua esposa, a quem chama de “mãe” — exceto na cama, espero — e seus dois filhos, Frida e Carl. Popinga exerce uma importante posição na melhor casa de importação e exportação da região, a de Julius de Coster en Zoon. Em suma, está tudo certo, tudo está bem planejado e certinho nesta vidinha enfadonha. Kees proíbe-se de entrar em certos bares que são taxados de inadequados. Quanto ao bordel local, onde, durante anos, estivera Pamela, a mulher que ele considerava a mais atraente que existia, Popinga nunca colocaria seu pé. Por nada no mundo. Pamela era uma das amantes de de Coster.

Sem spoilers. Tudo que contarei agora está no início do livro. Um dia, ocorre um problema na firma e Popinga precisa falar com o chefe à noite.  Não o encontra, mas, finalmente, por acaso, ao passar por um bar, Popinga o vê pacificamente instalado numa mesa de bar. O chefe também o vê e gesticula mui gentilmente para que Popinga entre. Com total tranquilidade e cinismo, Julius anuncia ao seu encarregado de negócios que a Companhia será declarada em liquidação muito em breve porque, entre outras coisas, ele, Julius, contrabandeia e contrabandeia há vinte anos. Então, Julius conta-lhe que decidiu desaparecer discretamente, naquela mesma noite, para se refugiar na Inglaterra, onde uma poupança o espera. E aconselha Popinga a fazer algo semelhante. Ali mesmo, de Coster lhe entrega uma graninha e faz uma vaga promessa de retomar futuramente seus negócios com Popinga.

E o mundo de Kees cai. Em primeiro lugar, com o dinheiro que lhe foi dado por de Coster, Popinga compra uma passagem para Amsterdam. Acontece que de Coster abandonou ali, no Carlton Hotel, a famosa Pamela, que ali mantinha há algum tempo. Popinga se apresenta a ela e, sem preâmbulos, por achar natural seu pedido (“afinal, era o trabalho dela, não era?”), exige passar uma hora de sexo com ela. A jovem cai na gargalhada na cara dele. Azar dela.

Depois, ele vai para Paris. Embora os personagens que o rodeiam — principalmente Jeanne Rozier, seu amante Louis e um bando de bandidos — pertençam à realidade, existe, para Popinga, apenas uma realidade: a sua. Kees Popinga reina supremo, está nas manchetes, escreve aos diretores de certos jornais para corrigir o que, segundo ele, é falso nas matérias a seu respeito. Ele até se dá ao luxo de escrever ao Comissário que o persegue. Aos poucos, ele se deleita com a fama, mas sobretudo com a habilidade excepcional com que escapa de seus perseguidores, pessoas que vivem dentro das normas. Ele acaricia, lisonjeia e constantemente insiste no valor de sua inteligência. Kees Popinga escapa de todos porque é o mais esperto.

O livro é enormemente envolvente. Kees é de enorme verossimilhança. Simenon explora seu personagem em profundidade, lá de dentro de seu cérebro de psicopata. O resultado é espetacular. Não pensem em um livro sangrento, nada disso. Sangue não é com Simenon, seu negócio são seres humanos. E, apesar do desvio e da perversão e da megalomania, é a impressão de um ser humano que o leitor leva de Kees Popinga, O homem que via o trem passar.

Georges Simenon (1903-1989)

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Na praia, de Ian McEwan

Na praia, de Ian McEwan

Este é um dos melhores McEwan que já li. O livro localiza-se num ponto muito curioso dos costumes do século XX, pouco antes da liberação sexual dos anos 60, bem no final da repressão na Inglaterra, coisa que seguiu aqui no Brasil por mais alguns anos, conforme meu corpo pode testemunhar com certa tristeza.

Edward Mayhew e Florence Ponting acabaram de casar. Ele é um historiador de uma família mais pobre, ela é uma talentosa violinista principal de um quarteto de cordas com aspirações a Wigmore Hall — diga-se de passagem, o melhor lugar do mundo. Ambos tem 22 anos. Sua história de amor cresce muito a partir da primeira frase do livro, que antecipa o que leitor lerá depois: “Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite, sua noite de núpcias, e viviam num tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era completamente  impossível”.

A lua de mel acontece na praia Chesil, em um hotel. Eles comem a ceia nupcial sob a guarda de dois garçons, como intrusos. Logo eles irão embora, deixando-os com os problemas de uma retidão moral que só os atrapalha. Florence parece preferir nunca ter ninguém a tocando, nem mesmo esse homem que ela verdadeiramente ama. Ela ficou muito preocupada após a leitura de um manual de casamento que só falava em mucosas, glande e penetração, jamais em prazer. Enquanto isso, Edward sonha silenciosamente com o deleite sem fim que será possuir Florence. Esses dois mundos já colidiram (ou colidem) várias vezes, e não costuma dar certo. Poderia dar uma bela comédia, mas o momento é grave e o tratamento de McEwan também, além de poético e compreensivo.

Como já disse, os dois se amam, mas a inexperiência de Edward e aquilo que Florence sente como um ataque à sua virtude, serão um drama verdadeiro. McEwan acha o tom perfeito para lidar com esse relacionamento, transformando-o em algo muito perturbador. Tanto Edward quanto Florence temem que ela seja “frígida”, essa palavra antiga, e veem esse estado como espécie de maldição para todo o sempre.

McEwan interrompe a narrativa com dois capítulos longos e maravilhosos que detalham seus passados e o encontro de Florence e Edward, junto às pequenas mitologias que eles estabelecem um com o outro. O idílio na aldeia da infância de Edward é perturbado por um acidente sofrido por sua mãe quando a guerra termina. Florence é sufocada em uma casa burguesa, por uma mãe filosófica e um pai rico. As implicações dessas diferentes educações reverberam neles. Nos romances de McEwan, sabemos, ninguém escapa de sua classe social.

O final, belo e triste, traz uma qualidade de conto de fadas à novela. Claro, seria horrível contá-lo aqui. McEwan é o malvado de sempre. O olhar de Florence pelo Wigmore Hall na cena final é puríssima (e boa) literatura.

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Anton Bruckner (1824-1896)

Anton Bruckner (1824-1896)

Hoje, 4 de setembro, é o dia dos 200 anos de nascimento de um dos compositores que mais amo: Anton Bruckner.

Ele nasceu em Linz, na Áustria, e foi uma figura estranhíssima. Este ano, li a biografia que Lauro Machado Coelho escreveu sobre ele. Muitas coisas começaram a fazer sentido.

Dizia a lenda que Bruckner era quase um idiota. Nada disso. Mas havia o ambiente rural e quase tacanho em que o compositor nasceu, a desgraça de ser um jeca, a sua insegurança neurótica, seu alto conhecimento e seus incríveis — de modo positivo — resultados como aluno. Porém, mesmo sendo um espetacular improvisador ao órgão, professor e compositor, Bruckner era um ingênuo que propunha casamento às moças mais inatingíveis, era hiper religioso, anotava tudo o que fazia, gastava e recebia, sabia quantas árvores existiam em todos os seus caminhos diários, pois as contava, além de outras esquisitices absolutamente originais. Quando transferiu-se de Linz para Viena, quis ter certeza de que seria aceito de volta caso fosse um insucesso em Viena. Insegurança total, sempre.

Também ficava agradecido a quem regia sua música, a ponto de se submeter a humilhações. Halb Genie, halb Trottel (metade gênio, metade pateta) era o que se dizia dele. Podem imaginar esse homem saído da pequena Linz (Sankt Florian) para a sofisticada Viena? Pois ele adquiriu o respeito de gente como, por exemplo, Gustav Mahler. Sua música foi adotada por Hitler como símbolo da força e da pureza arianas, mas logo os historiadores descobriram que, Bruckner, devoto de Richard Wagner, não era nem um pouco antissemita e o nazismo desgrudou dele assim que a guerra acabou. Quando os maestros judeus começaram a ser preteridos, Bruckner passou a convidá-los para estrear suas sinfonias, deixando de lado os “alemães”.

Compondo sinfonias imensas, realizou grandes esforços para ver sua obra aceita – inclusive revisando-a incessantemente… Não podia ouvir uma opinião contrária que já saía reescrevendo tudo. E criou imensa obra, cheia de diferentes versões. Um prato delicioso para os musicólogos.

Sou muito Bruckner e minhas sinfonias preferidas são a 3, 4, 5, 7 e 9. Ele tem 11, mas parou na nona. Ele tem uma Sinfonia de Estudo, que não era para ser publicada. Insegurança. Era tão boa que tornou-se a Sinfonia N° 0 (Nullte). Teve outra a qual ele também não deu número. Bruckner declarou que ela “gilt nicht” (não contava)… Hoje, é tocada, claro.

Sua música trazia a estranheza de parecer por vezes imitar o órgão, seu instrumento, sempre com muitas pausas significativas e entradas em fortíssimo para alegria dos metais da orquestra.

Bem, esta é minha pequena homenagem a este gênio. Abaixo, uma boa piada sobre suas incontáveis revisões.

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Memento Mori, de Muriel Spark

Memento Mori, de Muriel Spark

É inacreditável que Muriel Spark (1918-2006) tenha escrito o divertido Memento Mori em 1959, com apenas 41 anos. Seu conhecimento sobre as pessoas velhas já era enorme! A expressão Memento mori significa “lembre-se de que é mortal” ou “lembre-se de que vai morrer”. (Na antiguidade, era usada pelos filósofos estoicos como expressão de reflexão. Nos mosteiros católicos, é uma saudação utilizada pelos monges como um exercício diário de aceitação da morte.) E é isso que ouve um grupo de velhinhos ingleses  quase todos os dias de um anônimo que lhes telefona. Alguns estão em clínicas geriátricas, outros flanando por aí, alguns ricos, outros não. E chamam a polícia para descobrir o autor das mensagens, sempre ditas assim, sem mais. Este mote filosófico e brilhante é o estopim para um belo livro de Dame Muriel.

Eles suspeitam que quem telefona é um de seus inimigos ou parentes hostis. Quem estaria tentando assustá-los? Ou estariam interessados nas heranças? Mas o chamador fala com vozes e sotaques diferentes para pessoas diferentes e tem um conhecimento inexplicável de seus movimentos. Várias explicações sobre a origem das ligações são propostas, mas nenhuma se encaixa em todas as evidências. A polícia fica perplexa, e o inspetor aposentado Mortimer, ele mesmo um suspeito aos olhos de alguns, conclui: “na minha opinião, é a própria Morte”. Quem será?

Embora o assunto seja a inevitabilidade da morte e as várias aflições, físicas e mentais, da velhice, o romance está longe de ser mórbido ou deprimente. Pelo contrário, é maravilhosamente engraçado do começo ao fim.

Um romance sobre a morte pode ser engraçado? Sim, se ele for sobre como sobre a morte é percebida, temida, negada e antecipada de várias maneiras pelos idosos. À medida que o tratamento médico e a tecnologia continuam a melhorar, a morte é adiada cada vez mais para mais e mais pessoas, mas isso é uma bênção mista. Temos que viver mais com todas as indignidades e aflições da velhice, da incontinência ao Alzheimer, enquanto aguardamos o fim inevitável, sobre o qual só a fantasia das pessoas tem algo de reconfortante a dizer.

A ficção inglesa dos anos 50 é muito boa. Lembro agora apenas de Lucky Jim e de Sábado à noite, domingo de manhã, duas obras-primasDeve ser o Alzheimer. Ops, o telefone está tocando. Já volto.

Muriel Spark

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Onze anos de Elena e Milton

Onze anos de Elena e Milton

Onze anos de Elena e Milton. Quando digo que, descontando uns outros, és meu primeiro amor, brinco apenas parcialmente. De certa forma é mesmo. Explico. Todo relacionamento de qualidade assim mais ou menos, um dia chega a seu topo e começa a descer. O quão íngrime é a descida depende de muitas coisas, às vezes o ângulo é tão severo que a gente desce como um carro sem freios matando um monte de coisas pelo caminho: respeito, vontade de se aproximar, tudo. Mas, onze anos depois, ainda me dá aquela súbita vontade de te abraçar mesmo quando estou longe e isto é impossível. Ou seja, devemos estar em terreno quase plano. E ontem, quando estava palestrando, eu sempre dava uma olhadinha pra ti em busca de alguma inspiração. Parece até que funcionou. Sou um bobalhão apaixonado. Eu não sei se faço bem pra ti, mas do contrário tenho convicção e quero mais onze.

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