Inveja

Inveja

Ah, os russos… A Elena Romanov está lendo um volume enorme — lindo, todo ilustrado — publicado em 1958 na URSS. Trata-se de O Precipício, de Gontcharóv, o mesmo autor da obra-prima Oblómov.

Ler Gontcharóv e Bulgákov agora, Tchékhov e Tolstói em todas as idades, Dostoiévski e Liêrmontov na juventude, mais Brodsky, Nabôkov, Turguêniev, é todo um mundo. Dentre todos, meu preferido é o melancólico e compassivo Tchékhov.

É difícil escapar dos russos. Das russas também.

Últimos pedidos, de Graham Swift

Últimos pedidos, de Graham Swift

Este livro, meu amigo, você apenas encontrará em sebos. Ele foi lançado em 1999 pela Cia. das Letras e, por ele, seu autor recebeu o Booker Prize de 1996. Merecido? Creio que sim. Mas é um livro bastante complicado, trabalhoso de ler. A história é semelhante a de Enquanto agonizo (As I lay dying), de Faulkner, mas, de resto, o livro de Swift é muito original.

Últimos pedidos (Last Orders) conta a viagem de quatro amigos londrinos que frequentemente se reuniam nos finais da tarde para beber e discutir as novidades num pub. Eles têm entre os 50 e os 60 anos — exceto o filho adotivo de um deles — e viajam até Margate para cumprir um último desejo de um ex-membro do grupo, recém falecido: o de espalhar suas cinzas no mar. É claro que todos conheciam as famílias de todos. E todos eles narram o romance, o que causa certa confusão no leitor mais desatento. Eu, por exemplo, li umas 150 páginas e estava adorando o livro, mas sabia que estava perdendo coisas por estar com a atenção meio vaga. Então, voltei ao início do livro com outra postura, a de me me dedicar seriamente a entender tudo, o que acabou sendo muito prazeroso.

Como curiosidade, digo que é um livro que não pode ser trasposto para a realidade brasileira. Um dos personagens é funcionário público, outro tem uma funerária e é muito bem sucedido, outro tem uma mecânica e também prospera, e ainda temos um feirante e um açougueiro (em cinzas). Não creio que os preconceitos de classe brasileiros pudessem juntar tal fauna. E são amigos de anos, todos conhecem quase todas as fofocas familiares uns dos outros. São como uma família, brigam e se ofendem, se acusam e se amam.

O livro é delicado, discretamente comovente e possui um belo erotismo em sua parte final. (Afinal, ficamos sabendo que o funcionário público tem educada e gentil fissura pela viúva). Tudo se dá durante a viagem — diálogos, risadas, brigas e lembranças individuais e coletivas. Por que fiz questão de relê-lo? Ora, porque me pareceu autêntico e parecido — em suas vidas confusas e emoções não expressas — com as histórias de amigos meus. Há pouca narração de fatos novos e muito fluxo de pensamento, o que torna o texto, como disse, difícil de seguir. A primeira pessoa do singular passa de um a outro alternadamente. Apesar de Swift colocar o nome do narrador como título de cada capítulo não é fácil de se achar. Então, fiz anotações de personagens e relacionamentos…

Na releitura, a história fluiu com suavidade, com cada um dos pontos de vista dos personagens principais girando, intercalados com a narração dos eventos atuais, feita por Ray (o funcionário público). E foi então que se revelou a enorme riqueza de Últimos Pedidos. Muitas referências e insinuações sutis se encaixaram como um quebra-cabeça. O estilo de Graham Swift é perfeito, esboçando imagens vívidas de personagens e ambientes sem descrições supérfluas. Os estratos da sociedade inglesa em que esses homens se enquadram são transmitidos sem esforço por meio do diálogo de seus pensamentos e conversas.

Um esplêndido livro sobre amizade e lealdade.

Graham Swift (1949)

O Leão da Calábria, de Nilson Luiz May

O Leão da Calábria, de Nilson Luiz May

É quase inacreditável, mas tudo o que é contado de forma romanceada em O Leão da Calábria aconteceu aqui, em Anta Gorda (RS) pertinho de nós, nos anos 20 do século passado. Não gostaria de entrar em polêmicas, só que… Será que os fatos narrados no livro explicam, alguma coisa de nosso estado e do Brasil? Falo dos dias atuais, claro. Bem, voltemos ao livro.

Nilson Luiz May narra a história do médico Michele De Patta, que há 100 anos emigrou da Calábria para chegar ao nosso estado. Recém formado e tendo trabalhado como médico na Primeira Guerra Mundial, Michele trouxe ao RS diversas técnicas desconhecidas ao povoado de Anta Gorda, atraindo a admiração dos clientes e o ódio dos curandeiros e de quem acreditava neles. A base da história é totalmente real — inclusive, no livro, há fotografias de De Patta, de sua família e de seu hospital. O autor romanceou a trama, claro, criando diálogos e alguns poucos personagens extras.

Imaginem que o médico italiano conseguiu erguer um hospital, a fim de ampliar e melhorar o atendimento à população local — afinal, muitos passavam por cirurgias e precisavam de tempo e de ambiente adequado para a recuperação. Porém, o ódio e a amizade do médico com um professor local, que era anarquista, complicou tudo. Aliados à ignorância, o poder público e o religioso — apesar do catolicismo da família De Patta — puseram tudo a perder.

Os fatos e a violência relatadas são quase uma antevisão do que ocorre em nossa época de negacionismos, alguns furiosos e de graves consequências. O livro é um thriller. May usa o suspense para contar sua desconcertante história. Logo no primeiro capítulo, sabemos que o hospital acabará incendiado. Durante a leitura, sabemos como e por quê. Sei que é um lugar comum dizer que a realidade supera a ficção e sou obrigado a repetir isso aqui.

Lemos o livro, levantamos os olhos e pensamos que aquilo só poderia ter sido inventado. Não foi. As certezas e a truculência da ignorância são, muitas vezes, imbatíveis. Não adiantou explicar, receitar, curar, operar e recuperar. A turba ficou ao lado dos negacionistas e do líder local, pouco preocupados com a ciência. E não me digam que 100 anos é muito tempo, não me digam. Afinal, a reação do governo brasileiro à gripezinha de 2020 estão bem próximos de nós.

May é médico e também um maestro seguro, controlando a narrativa de forma a que a gente leia tudo rapidamente. O livro gruda. Afinal, queremos saber até onde aqueles malucos vão.

Recomendo!

O autor Nilson Luiz May

4 livros

4 livros

A Boa Sorte, de Rosa Montero

A romancista e ensaísta Rosa Montero é, em âmbito mundial, uma das mais importantes escritoras em atividade. Há dezenas de livros e estudos acerca de sua obra. Autora dos excelentes A ridícula ideia de nunca mais te ver e Nós, Mulheres, teve seu A Boa Sorte lançado recentemente no Brasil. É seu primeiro romance onde o personagem principal não é uma mulher. Mas isso talvez seja falso, porque quem ilumina e altera as feições da história é uma personagem feminina. Dentro de uma narrativa fluida e misteriosa, conhecemos Pablo Hernando, um sujeito que some em uma pequena e decadente cidade espanhola. Assim que ele chega, à noite, de trem, compra um apartamento. O vendedor fica surpreso, pois o comprador quer fazer tudo imediatamente, em dinheiro, sem nem mesmo visitar o imóvel. Quem é Pablo Hernando? A polícia está atrás dele? Por que ele escolheu ficar em Pozonegro, onde não conhece ninguém? Então Raluca, funcionária do supermercado local, entra em cena. Ela é sua vizinha e tenta integrá-lo à comunidade. Até consegue um emprego para ele. A descida de Pablo aos infernos é muito bem descrita por Montero. Há medo, angústia, culpa, e também amor, generosidade e inocência. E a boa sorte.

A Boa Sorte é da Todavia, tem 256 páginas e custa R$ 74.90.

A tirania do mérito, de Michael Sandel

Neste livro, Sandel ataca um consenso que ainda reina em alguns meios, o da meritocracia. O livro defende que há um lado negro, um lado desmoralizante nela, ou seja, o de que se a pessoa não ascender socialmente, não terá ninguém para culpar além de si mesma. Inclusive, segundo Sandel, as elites de centro-esquerda teriam abandonado as velhas lealdades de classe para assumir um novo papel de moralizadores da vida. Isto seria particularmente cruel com quem não teve a melhor das formações, justamente as classes mais desfavorecidas. Porque os méritos são normalmente alcançados por quem estudou nas melhores escolas, não? Sandel reconhece o valor do mérito, mas trata de demonstrar como sua aplicação tornou-se tóxica. Segundo o autor, este seria o momento para iniciar um debate sobre a dignidade do trabalho e suas recompensas, tanto em termos de remuneração, como em termos de estima. Com a pandemia, percebemos como somos dependentes, não apenas de médicos e enfermeiras, mas também de entregadores e prestadores de quaisquer serviços, muitos deles transitando via de regra na economia informal. Esse livro traz o problema e sugere soluções para amenizá-lo. Ou seja, não é um livro de simples objeções.

A Tirania do Mérito é da Civilização Brasileira, tem 430 páginas e custa R$ 69,90.

Eu serei a última, de Nadia Murad

Este é o um relato autobiográfico do que Nadia Murad passou nos cárceres do Estado Islâmico e de sua fuga. Hoje, Nadia é ativista de direitos humanos e, em 2018, recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Ela faz parte da minoria étnico-religiosa Iazidi. Há cerca de 800 mil iazidis no mundo, a maior parte localizada na fronteira do Iraque com a Síria. Seu povo pratica uma religião sincrética, o iazidismo, que tem elementos do cristianismo e do islamismo, tudo o que o Estado Islâmico não aceita. Em Eu serei a última, ela conta sua brutal experiência – os dias do cerco a sua vila, a prisão, a fuga e, afinal, sua chegada na Alemanha. Dizer que a história é intensa é pouco. Nadia Murad é vendida, torna-se escrava sexual – chama-se a “jihad sexual” – e sua fuga não foi exatamente planejada. A impotência de uma minoria perante o EI, o tráfico humano, o genocídio, os estupros, a vivência em uma sociedade cruelmente patriarcal, a doutrinação dos extremistas islâmicos, a conversão forçada ao islamismo, tudo é violento, porém há trechos leves, como os das lembranças da vida antes da invasão. Em cada página, ficamos nos perguntando como tudo isso (ainda) acontece e até onde o ser humano pode chegar.

Eu serei a última é da Novo Século, tem 394 páginas e custa R$ 69,90.

O despertar de tudo, de David Wengrow e David Graeber

Este livro tornou-se rapidamente um clássico. Com bom humor e argúcia, O despertar de tudo revela que o passado não é aquilo que pensávamos e que a história da humanidade, tal como a conhecemos, traz um viés bastante equivocado. Dentre muitas fontes, os autores utilizam, por exemplo, textos indígenas para recontar a história. Graeber e Wengrow nos dão uma visão mais sofisticada de nossas origens, a partir de informações vindas da moderna arqueologia. O livro revela novidades a respeito da antiguidade, principalmente dos períodos “primitivos” anteriores à escrita. O que emerge é uma visão mais complexa e surpreendente, que é sintetizada de forma brilhante pelos autores. O livro também coloca em questão o mito explicativo que justificativa a desigualdade social entre seres humanos e a origem do ordenamento social hierárquico, corporificado no que chamamos de “Estado”. Acompanhado de vasto material bibliográfico, O despertar de tudo – nascido de uma longa troca de e-mails entre os autores – é coerente, convincente e provocativo, sublinhando a importância de nos mantermos sempre abertos para revisar nossos conceitos com base na ciência.

O Despertar de Tudo é da Cia. das Letras, tem 696 páginas e custa R$ 119,90.

Discurso de Chico Buarque – Prêmio Camões

Discurso de Chico Buarque – Prêmio Camões

Cerimônia de entrega – dia 24 de abril de 2023, Palácio Nacional de Queluz, às 16.00 horas.

Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária. Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.

O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de  tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.

Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde – sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.

Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.

Muito obrigado!

Roald Dahl reescrito: remoção de “linguagem considerada ofensiva” gera polêmica na Inglaterra

Roald Dahl reescrito: remoção de “linguagem considerada ofensiva” gera polêmica na Inglaterra

Salman Rushdie está entre os que ficaram irritados depois que algumas passagens relacionadas a peso, gênero, saúde mental e raça foram reescritas

Há um grande debate no meio cultural inglês. Críticos estão acusando a editora britânica dos clássicos livros infantis de Roald Dahl de censura depois que ela removeu a linguagem colorida de obras como A Fantástica Fábrica de Chocolate e Matilda para torná-las mais aceitáveis ​​para os leitores modernos.

Uma revisão das novas edições dos livros de Dahl estão agora disponíveis nas livrarias do país mostra que algumas passagens relacionadas a peso, saúde mental, gênero e raça foram alteradas. As mudanças feitas pela Puffin Books, uma divisão da Penguin Random House, foram relatadas primeiro pelo jornal britânico Daily Telegraph.

Augustus Gloop, o guloso antagonista de Charlie em A Fantástica Fábrica de Chocolate, publicado originalmente em 1964, não é mais “enormemente gordo”, apenas “enorme”. Na nova edição de As Bruxas, uma mulher sobrenatural se passando por uma mulher comum pode estar trabalhando como uma “cientista de ponta ou administrando um negócio”, mas não como “caixa em um supermercado ou digitando cartas para um empresário”.

A palavra “preto” foi removida da descrição dos terríveis tratores de O Fantástico Sr. Raposo. As máquinas agora são simplesmente “monstros assassinos e de aparência brutal”.

O autor vencedor do prêmio Booker, Salman Rushdie, está entre aqueles que reagiram com raiva à reescrita das palavras de Dahl. Rushdie viveu escondido por anos depois que o Aiatolá Khomeini do Irã, em 1989. emitiu uma fatwa pedindo sua morte por causa da suposta blasfêmia em seu romance Os Versos Satânicos. Ele foi atacado e gravemente ferido no ano passado em um evento no estado de Nova York.

“Roald Dahl não era um anjo, mas isso é uma censura absurda”, escreveu Rushdie no Twitter. “A Puffin Books e o espólio Dahl deveriam ter vergonha.”

As mudanças nos livros de Dahl marcam o mais recente conflito em um debate sobre a sensibilidade cultural, já que os ativistas buscam proteger os jovens dos estereótipos culturais, étnicos e de gênero na literatura e em outras mídias, e os críticos. Estes reclamam que as revisões para se adequar às sensibilidades do século 21 correm o risco de minar o gênio dos grandes artistas e impedir os leitores de confrontar o mundo como ele é.

A Roald Dahl Story Company, que controla os direitos dos livros, disse que trabalhou com Puffin para revisar os textos porque queria garantir que “as maravilhosas histórias e personagens de Dahl continuem sendo apreciados por todas as crianças hoje”.

A linguagem foi revisada em parceria com o Inclusive Minds, coletivo que trabalha para tornar a literatura infantil mais inclusiva e acessível. Quaisquer mudanças foram “pequenas e cuidadosamente consideradas”, disse a empresa.

Ele disse que a análise começou em 2020, antes de a Netflix comprar a Roald Dahl Story Company e embarcar em planos para produzir uma nova geração de filmes baseados nos livros do autor.

“Ao publicar novas tiragens de livros escritos anos atrás, não é incomum revisar a linguagem usada junto com a atualização de outros detalhes, incluindo a capa do livro e o layout da página”, disse a empresa. “Nosso princípio orientador tem sido manter as histórias, os personagens e a irreverência e o espírito afiado do texto original.”

A Puffin não quis se pronunciar.

Dahl morreu em 1990 aos 74 anos. Seus livros, que venderam mais de 300 milhões de cópias, foram traduzidos para 68 idiomas e continuam a ser lidos por crianças em todo o mundo.

Mas ele também é uma figura controversa por causa dos comentários antissemitas feitos ao longo de sua vida.

A família Dahl pediu desculpas em 2020, dizendo que reconhecia a “mágoa duradoura e compreensível causada pelas declarações antissemitas de Roald Dahl”.

Independentemente de suas falhas pessoais, os fãs dos livros de Dahl celebram seu uso de uma linguagem às vezes sombria que aborda os medos das crianças, bem como seu senso de humor.

A PEN America, uma comunidade de 7.500 escritores que defende a liberdade de expressão, disse estar “alarmada” com os relatos das mudanças nos livros de Dahl.

“Se começarmos a tentar corrigir os deslizes percebidos, em vez de permitir que os leitores recebam e reajam aos livros como estão escritos, corremos o risco de distorcer o trabalho de grandes autores e ofuscar as lentes essenciais que a literatura oferece à sociedade”, twittou Suzanne Nossel , o executivo-chefe da PEN America.

Laura Hackett, uma fã de infância de Dahl que agora é vice-editora literária do jornal londrino Sunday Times, teve uma reação mais pessoal à notícia.

“Os editores da Puffin deveriam ter vergonha da cirurgia malfeita que realizaram em algumas das melhores literaturas infantis da Grã-Bretanha”, escreveu ela. “Quanto a mim, guardarei cuidadosamente minhas antigas cópias originais das histórias de Dahl, para que um dia meus filhos possam apreciá-las em toda a sua glória colorida e desagradável.”

Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi

Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi

Este é o livro ideal para quem deseja saber como se forma e os efeitos deste monstro que é o negacionismo científico. Os autores têm texto enxuto, envolvente e objetivo, apesar dos muitos exemplos apresentados. Natalia Pasternak é a cientista, Carlos Orsi é o jornalista fascinado por ciência — e os dois funcionam muito bem juntos.

O livro trata do negacionismo em todos os tempos, vindo desde o clerical, que não acreditava no movimento e no “formato” da Terra, até o Covid, passando por Darwin e até pelo Holocausto, que também foi e ainda é negado por alguns. Deste modo, não é um livro apenas sobre o Covid, mas sobre vários gêneros de negacionismo.

Uma das coisas mais interessantes que são analisadas é como a indústria de cigarros negou que o tabagismo tinha ligação com o câncer nos pulmões. A história é terrível, pois as grandes empresas contratavam cientistas para colocarem tudo em dúvida. Ou seja, esses cientistas admitiam coisas aqui e ali, porém… E lançavam dúvidas no próprio meio científico. Também as negações da curvatura da Terra, das ideias de Darwin e das teorias evolucionistas são hilárias para nós, leitores, não fossem tão sérias.

Ficamos sabendo como as vacinas funcionam e que o movimento antivacina é bem antigo. Também ficam claras as motivações de quem nega o aquecimento global. E é aquilo mesmo que imaginamos e nos irrita: os negacionistas procuram gerar confusão no debate, paralisar a tomada de decisões, tomam atitudes irracionais que parecem razoáveis aos olhos dos desinformados e incentivam a consolidação de grupos ideologicamente solidários em torno de certas causas irreais.

Gostei muito das claras e bem fundamentadas argumentações dos autores de “Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências”. Aprendi bastante coisa e estive sempre atento ao livro.

Recomendo.

Natalia Pasternak e Carlos Orsi

O Rumor do Tempo (e Viagem à Armênia), de Óssip Mandelstam

O Rumor do Tempo (e Viagem à Armênia), de Óssip Mandelstam

Este é um livro de prosa escrito por um grande poeta. Ou, sendo mais claro, é um livro escrito por um poeta que não deixa de ser poeta, mesmo escrevendo prosa. São dois textos memorialísticos, ambos divididos em pequenos capítulos, o primeiro tratando de São Petersburgo e o segundo de uma viagem à Armênia. Tudo é muito pouco objetivo e tem altíssima voltagem lírica. É gostoso de ler mesmo sem compreender tudo — qual é o leitor experiente que vai desejar entender tudo de um escrito poético? Às vezes, parece que estamos lendo um surrealista ou um drogado…

Mandelstam (1891-1938) teve vida trágica. Era um poeta de tremendo talento, amaldiçoado por ter vivido nos dias de Stálin. Certa vez, escreveu um poema sobre o Todo Poderoso, lendo-o para seis amigos em um jantar. Dizia, entre outras coisas que o homem tinha bigode de barata. Um destes “amigos” era um informante. Preso em 1934, morreu por inanição. Depois, a KGB fez uma varredura cultural e apagou o nome de Mandelstam no país, apesar do tal poema já ter caído na boca do povo. Teoricamente, na URSS, ninguém podia saber sobre o escritor. Era terminantemente proibido. Mas você se engana se pensar que ele era engajado politicamente. Mandelstam era um poeta de formação e postura clássicas. Escreveu cerca de 600 poemas, mais ensaios autobiográficos e filosóficos, artigos de crítica literária e traduções poéticas de Mallarmé, Racine, Jules Romain, Petrarca, entre outros)”. Em posfácio, Paulo Bezerra conta que Mandelstam lia intensamente a poesia de Dante, François Villon e André Chénier. Era um artista à parte, autônomo, por isso é difícil filiá-lo a uma corrente. Mas escreveu sobre Stálin…

Fui lê-lo porque minha mulher, que é russa, tinha dito que os escritores que tinham o melhor russo eram Tolstói, Nabôkov e Mandelstam. Mas ela leu sua poesia, não traduzida no Brasil. Sei, é complicado traduzir poetas, mesmo que em prosa. Paulo Bezerra faz um belo trabalho, porém teve que apelar para mil notas de rodapé, a fim de que entendêssemos a teia das referências.

Bom e belo livro, contudo, alerto: a leitura é trabalhosa.

Mandelstam em 1938

Juca Chaves (1938-2023)

Juca Chaves (1938-2023)

Eu ria muito com Juca Chaves. Havia dois artistas naquele corpo adornado por enorme nariz — um lírico (Por quem sonha Ana Maria?) e um cômico (Dona Maria Tereza, Presidente Bossa Nova). Acho que, com o tempo, o cômico matou o lírico. Depois, a fonte secou para ambos. Isso há mais de 40 anos.

Mas lembro de minha família, nos anos 60, correndo para a frente da TV a fim de ouvi-lo cantar e destilar seu humor afiado. Ele se autodenominava O Menestrel Maldito. Só que, para mim, sumiu por décadas.

Soube hoje que, em 2015, ele foi favorável ao impeachment de Dilma. Já no ano passado, apoiou Lula.

Morreu ontem, aos 84 anos. Acho até que vou pegar um vinil dele e ouvir agora. O disco que tenho é uma coletânea de 1976, mas parece que o melhor Juca está quase todo ali.

A Promessa, de Damon Galgut

A Promessa, de Damon Galgut

Vou escrever sobre uma autêntica obra-prima. Este livro venceu o Booker Prize de 2021. No Brasil, para nossa sorte, A Promessa recebeu cuidadoso tratamento do tradutor, escritor e professor Caetano Galindo. Depois das primeiras dez páginas, ele se torna de fácil leitura, porém não é um livro simples de traduzir. Como Machado de Assis, o autor fala com o leitor, mas também fala ou faz perguntas aos personagens. Como Machado, o livro fala-nos de coisas trágicas e de assuntos profudamente graves, mas tem momentos hilariantes. Os diálogos não são sinalizados, só que a gente se acostuma logo.

Posso dizer qual é a tal promessa do título sem receio de dar spoilers — o primeiro capítulo já denuncia qual é a promessa. O romance de Galgut mostra o declínio de uma família branca durante a transição da África do Sul para o fim do apartheid. Tudo começa em 1986, com a morte de Rachel, uma judia de 40 anos e mãe de três filhos, em uma pequena propriedade nos arredores de Pretória. A história gira em torno de uma promessa que seu marido africâner, Manie, fez a Rachel antes de morrer, e que foi ouvida por sua filha mais nova, chamada Amor: a promessa era que Manie daria à empregada negra da família, Salomé, a propriedade do anexo que ela ocupava. Ou seja, daria a Salomé a casa aos pedaços onde ela morou toda sua vida. Agora que Rachel está morta, Manie aparentemente esqueceu do prometido. O resto da família considera ridícula a teimosa insistência de Amor de que Salomé deveria ser dona de sua casa. Seria aquele tipo de conversa que “agora parece ter infectado todo o país”?

O descumprimento da promessa parece cair como uma maldição enquanto seguimos os filhos e o pai ao longo das décadas. Cada um dos 4 capítulos narram episódios em intervalos de aproximadamente 10 anos e cada um tem o nome de um membro da família. A estrutura escolhida por Galgut sugere uma fábula — o nome dos capítulos, a frequência de 10 em 10 anos, as próprias ocorrências de cada capítulo. E Amor foi atingida por um raio quando criança! É uma abordagem arriscada, visto que o apartheid e suas consequências são cruéis o suficiente para que esse tipo de ficcionalização pareça condescendente. No entanto, a África do Sul — com escândalos absurdos, esperanças frustradas e corrupção constante — é uma tragédia pronta. Desprezando o realismo inabalável como veículo suficiente para transmitir o peso da história, A Promessa oferece uma narrativa que só é igualada no surrealismo pelos próprios fatos. Na África do Sul, sugere Galgut, a arte só pode esperar imitar a vida. Conheço outro país que… Bem, deixa pra lá. A decisão de abrir o romance com uma citação de Fellini é sensata.

Hoje cedo eu encontrei uma mulher de nariz dourado. Ela vinha num cadillac, abraçada em um macaco.  O motorista parou e ela me perguntou: “O senhor é Fellini?”. E prosseguiu com voz metálica. “Por que é que nos seus filmes ninguém é normal?”.

Federico Fellini

Galgut também é dramaturgo e intromete-se nos eventos para oferecer julgamentos. Para alguns fatos, ele nega o “isso tem dois lados”. Não tem. Ele nos envolve — e como! — com frequentes apartes. “Devemos dizer…”, “vamos fingir…”. O leitor nunca se sente confortável o suficiente para esquecer que esta é uma história. A recusa de Galgut em permitir que o normal das narrativas flua, sua insistência em desnudar as maquinações da ficção, revelando as pessoas como símbolos e o lugar como cenário, chama a atenção do leitor para o absurdo.

O tom variado e muito debochado de Galgut nos engana muito. Quando parece que fala sério, ele diz que tal coisa “é palpável como um peido secreto”. As cenas com o novo amante da irmã de Amor, Astrid, são engraçadíssimas. A desprogramada narração em terceira pessoa dispara entre os personagens. No meio do parágrafo ou mesmo no meio da frase, mergulhando na ação para detalhar os medos secretos de alguém, por exemplo, o autor pode nos informar de novos fatos. “Você entendeu”, diz o narrador, impaciente.

Do fantasma de Rachel às palavras de uma oração de luto, pouco está fora dos limites do narrador, que se dirige a um leitor africânder implícito cujos supostos preconceitos são citados como forma de desculpa pelas ênfases do livro — em um ponto ele nos diz que não ouvimos muito sobre Salomé porque não nos importamos em perguntar… Galgut emprega todos estes truques no livro, mas está  extremamente atento à complexidade emocional do que narra.

Sim, apesar de todas as suas tendências satíricas, este não é um livro que nos deixe confortável, até porque a má fé de Manie não é a única coisa que mina sua promessa. No momento em que o livro começa, a lei sul-africana diz que Salomé não pode ser proprietária da propriedade, mesmo que a família quisesse. As páginas finais, com Amor já madura, são espetaculares. A capa do livro nos diz que Galgut é “Um dos maiores escritores do mundo”. Olha, não deve estar longe disso.

Em resumo, A Promessa, de Damon Galgut, é um raro exemplo de romance que combina uma visão política e histórica com uma estrutura literária brilhante. Mostrando as mudanças dentro de uma família, o livro captura muito mais sobre uma realidade social deplorável do que quaisquer livros de história ou notícias de jornal que você tenha lido. Ele realmente arranha e mete suas garras na realidade.

Um tremendo livro. Recomendo muito.

Damon Galgut (1963)

Lendo Tristram Shandy em uma era de distração

Lendo Tristram Shandy em uma era de distração

Por Sarah Moorhouse na LitHub
Mal traduzido por mim

http://www.metmuseum.org/art/collection/search/399171

Tristram Shandy, de Laurence Sterne, publicado em nove volumes entre 1759 e 1767, tem uma reputação um tanto complicada. Junto com, talvez, Ulysses de James Joyce, é conhecido por ser um romance singularmente difícil, lido principalmente por estudantes ou entusiastas do século XVIII. Talvez o que afaste as pessoas sejam as “digressões” do romance, como o narrador do livro, Tristram, as chama. Ele se propõe a escrever uma autobiografia, mas acaba vagando, continuamente desviado por lembranças sobre seu pai Walter e tio Toby.

Sterne nega-nos a ordem narrativa em que geralmente nos baseamos para diferenciar a ficção da confusão do nosso pensamento cotidiano. Sua obra se recusa a se comportar: a história é, como diz Tristram, “digressiva e […] progressiva também, -e ao mesmo tempo”. O enredo de Tristram Shandy é o ato de construir o enredo e o excêntrico Tristram se deleita com sua criação inquieta, dizendo-nos que a obra é uma “máquina” que deve “ser mantida funcionando”. Examinando as muitas engrenagens de sua história, Tristram está confiante de que seu trabalho pode se sustentar indefinidamente, girando em torno de suas próprias possibilidades infinitas.

Desde sua primeira publicação, o romance gerou críticas e foi descrito por Edmund Burke, o grande antepassado dos românticos, como uma “série perpétua de decepções”. Essa avaliação pouco lisonjeira foi superada por Samuel Richardson, o romancista dos best-sellers do século XVIII, como Pamela e Clarissa: em uma carta ao bispo Mark Hildesley, Richardson declarou que não podia deixar de descrever os volumes de Sterne como “execráveis”. É um romance que sempre frustrou seus leitores.

Não podemos deixar de desejar, às vezes, que Tristram apenas continue com suas quebras narrativas “para lembrá-los de uma coisa – e informá-los de outra”. Tristram nos faz perceber o quanto, ao ler um romance, estamos no poder do escritor. Como seu filósofo favorito, John Locke, Tristram vê as mentes de seus leitores como “tábuas em branco” nas quais ele pode rabiscar ou escrever com precisão como quiser. Devemos concordar com as ruminações desorientadoras de nosso narrador se quisermos vivenciar sua história.

Minha própria leitura de Tristram Shandy foi um processo digressivo. Quando encontrei o romance de Sterne pela primeira vez aos dezesseis ou dezessete anos, fiquei encantado com os capítulos iniciais, nos quais Tristram nos conta, com humor irônico, como sua concepção foi interrompida quando sua mãe perguntou ao pai se ele havia se lembrado de dar corda no relógio. Fiquei perplexa, no entanto, quando a narrativa mudou de curso. Os cavalos de brinquedo abundam no romance: o tio de Tristram, Toby, é obcecado por eles. Enquanto eu lia os primeiros volumes, o enredo em si parecia um cavalo de balanço, brincando de avançar em vez de realmente chegar a algum lugar.

A experiência de tempo de Tristram está muito próxima de nossa própria realidade não estruturada; consumido por distrações, nosso narrador está à deriva em sua própria mente.

Não voltei ao romance até que ele apareceu em uma lista de leitura durante meu mestrado. Minha leitura do texto foi novamente fragmentada. Seções foram designadas para leitura por meus tutores com base, ao que parecia, apenas em seus próprios interesses e fiquei mais perplexa do que nunca. Que tipo de romance é melhor lido e discutido em pedaços? Devemos realmente lidar com os lapsos de atenção de Tristram cortando o texto e digerindo-o em partes?

Fui designado para o episódio “Le Fever”, uma sequência sobre as generosidades de Toby para com os pobres escrita no estilo sentimental que era popular na época de Sterne. Lidas separadamente, essas páginas parecem algo saído de The Man of Feeling, de Henry MacKenzie, um romance famoso quando foi lançado em 1771 por fazer seus leitores chorarem de simpatia por seu protagonista. Mas Tristram Shandy não é – como a leitura desta seção. Ao experimentar diferentes gêneros e estilos, nosso narrador está se apresentando para nós.

Tristram também está fazendo outra coisa: ele está procrastinando. Ele adia contar a história de sua vida porque está bloqueado pela seguinte preocupação: um tempo muito maior decorre enquanto ele escreve sua história de vida, leva mais tempo do que o decorrer de sua própria vida, então ele nunca poderá terminar sua autobiografia, jamais alcançara o dia de hoje. Ele lamenta o tanto tempo que leva para narrar um único dia de sua vida, “em vez de avançar […] estou apenas jogando tantos volumes para trás […] nesse ritmo, eu deveria escrever 364 vezes mais rápido. Do modo como faço, quanto mais eu escrevo, mais terei que escrever – e, consequentemente, quanto mais meus adoradores lerem, mais seus adoradores terão que ler”.

Tristram precisaria de um número infinito de dias para escrever sua autobiografia: ele precisaria, como o filósofo do século XX Bertrand Russell explicou no que chamou de “paradoxo de Tristram Shandy”, ser imortal. Além do mais, nós, leitores, estamos envolvidos no problema de Tristram: quanto mais ele escreve, mais temos para ler. Nós também somos limitados por nossa mortalidade.

Ao nos dizer que a história de sua vida está condenada desde o início, o narrador de Sterne nos nega a ilusão mais reconfortante da ficção: um caminho claro no tempo. Somos, como disse o formalista russo Viktor Shklovsky em 1929, “dominados por uma sensação de caos” quando lemos o romance. A experiência de tempo de Tristram está muito próxima de nossa própria realidade não estruturada; consumido por distrações, nosso narrador está à deriva em sua própria mente.

Peguei o romance pela terceira vez no final do verão passado, tendo me formado na universidade com apenas uma vaga ideia do que queria fazer a seguir. Com a remoção da estrutura da instituição de ensino, o tempo disparou de forma alarmante. As preocupações de Tristram sobre sua incapacidade de completar o que começou ofereciam um espelho do meu próprio estado de distração. Em minha busca por emprego, adiei a decisão sobre meus próximos passos, permitindo-me ser inundado por informações, principalmente on-line.

Percorrendo páginas aleatórias de mídia social, artigos da Wikipédia ou sites de empresas, percebi que a internet nos preparou para experimentar o tempo da mesma forma que Tristram faz. Seus algoritmos nos oferecem informações ilimitadas, alimentando-se de tudo o que chama nossa atenção para nos atrair para um labirinto personalizado. Sempre que usamos uma tela, essas tocas de coelho da Internet aguardam, permitindo-nos, clique a clique, fugir de nosso propósito original.

Minha geração, como somos constantemente lembrados, teve nosso foco arruinado pela tecnologia moderna, e o turbulento Tristram é um porta-voz de nosso estado de espírito. Seu projeto – escrever sua vida e, assim, contornar sua mortalidade – é sempre prejudicado por sua vulnerabilidade a distrações. Frustrado com a linguagem, ele recorre frequentemente a imagens, oferecendo linhas rabiscadas para representar seu progresso rebelde.

Com o objetivo de criar um enredo que seja uma “linha reta tolerável”, fortalecido por “uma dieta vegetal” e “algumas comidas frias”, Tristram resolve novamente arrumar sua narrativa. A questão, porém, é que nem Tristram nem seus leitores conseguem escapar do labirinto de pensamentos, e a melhor forma de ler este romance é não resistir às suas variadas correntes. Tristram articula a frustração de tentar se apoderar das coisas quando o chão abaixo de nós está constantemente cedendo.

Nossas vidas hoje existem em múltiplas dimensões: presente, passado e online. O romance de Sterne pode nos ajudar a entender esse emaranhado. Lendo Tristram Shandy pela terceira vez, percebi que minha frustração anterior não era uma falha em entender o livro. As digressões de Sterne são ricas e insatisfatórias em igual medida, como deve ser qualquer excesso de informação. Mas, embora vasculhar a Internet muitas vezes me deixe esgotada ou entorpecida pela variedade, o romance de Sterne revigora e oprime.

Como uma pintura com múltiplos pontos de vista, ou uma peça musical em estridente polifonia, ela atrai o leitor de volta, entrando novamente através de um novo ato de atenção. Tristram mantém sua história “em andamento” recusando-se a satisfazer seus leitores e, por isso, continua a me surpreender com sua vitalidade. Ao negar a estrutura organizada do tempo narrativo, o romance de Sterne combina com como o mundo parece para mim agora: indefinido, incerto, mas carregado de possibilidades.

‘Abra e Leia’ recebe o Troféu Simões Lopes Neto da Academia Rio-Grandense de Letras

‘Abra e Leia’ recebe o Troféu Simões Lopes Neto da Academia Rio-Grandense de Letras

E eu acabei recebendo o Troféu Simões Lopes Neto da Academia Rio-Grandense de Letras pelo meu livro de contos Abra e Leia. Ele seria o melhor do ano do RS na categoria. Uma absoluta surpresa para mim, que saí vencedor junto com gente como José Falero (crônicas) e Gustavo Melo Czekster (romance).

Também fiquei muito honrado por receber o prêmio num local que eu amo, a Biblioteca Pública de Porto Alegre, pelas mãos de sua diretora Morganah Marcon.

Para finalizar, digo que o homenageado desta edição do prêmio era Sergio Faraco, o maior contista brasileiro. Quando recebi o troféu, olhei pra ele e quase fugi como impostor.

Mas, bah, estou muito feliz.

‘Abra e Leia’ é finalista do Prêmio Academia Rio-grandense de Letras

‘Abra e Leia’ é finalista do Prêmio Academia Rio-grandense de Letras

Eu gosto do meu livro. Ele foi pouco, mas muito bem lido. O ‘Abra e Leia’ teve o mérito de interessar gente interessante que ainda sentou e escreveu a respeito. Sim, me orgulho. Fiquei feliz com o que disseram vários leitores e críticos e guardo com carinho seus textos no meu blog.

Agora, recebo a notícia de que ele é finalista do Prêmio Academia Rio-grandense de Letras, narrativa curta. Claro, sou tão favorito quanto Senegal depois de 4 expulsos num jogo contra a França na Copa, mas chegar à final já é legal, né?

Você entende de futebol?, de Carlos Guimarães

Você entende de futebol?, de Carlos Guimarães

Em casa, eu vejo futebol com o som da TV desligado. Não suporto os clichês vazios da maioria dos comentaristas do esporte. Na verdade, não há grandes conhecedores entre os analistas de táticas de futebol e quem se preocupa — ou enxerga — a parte tática, fica muito decepcionado com o papo, ainda mais que sua paixão está envolvida.

Então, o mediador (ou tradutor) entre o que se vê e o que é comentado é bastante insatisfatório.

Mas há uma nova geração de jornalistas-conhecedores ou estudiosos. Infelizmente, estes ainda não chegaram às grandes redes.

Um deles, na minha opinião o melhor dentre os gaúchos, acaba de lançar seu segundo livro: “Você entende de futebol?”, com o substítulo “E outros ensaios sobre o jogo e a mídia”.

Seu nome é Carlos Guimarães e seus textos jamais ofenderão sua inteligência. Sim, ele é o herdeiro de Ruy Carlos Ostermann e Lauro Quadros.

E estará autografando o livro na próxima quinta-feira aqui na Bamboletras. Apareça aqui para pegar seu exemplar autografado e levar um papo com o Carlos. Talvez ele saiba quem vai ganhar a Copa…

Carlos Guimarães

A ilusão de um instante, de Eduardo Rodrigues

A ilusão de um instante, de Eduardo Rodrigues

Comecei a ler “A ilusão de um instante”, de Eduardo Rodrigues, durante um almoço. Estava sozinho e abri o livro para dar uma rápida olhada. Claro que gosto de jazz e bossa nova, claro que sei de muitas histórias de seus principais artistas, mas a coisa me pegou de tal jeito que não consegui mais largar o volume de 184 páginas.

O livro é uma série de 60 artigos nada óbvios e muito significativos. Boas histórias, algumas engraçadas, outras nem tanto, tudo filtrado por um conhecedor do gênero e em texto sempre fluido. Pois é, não deu pra largar.

Depois de ler o livro, repassando suas páginas, pude constatar o enorme volume de informação que o Eduardo Rodrigues gentilmente divide conosco. Sem desejar ser pernóstico, digo que lembrei da frase de Shakespeare: “Onde não há prazer, não há proveito”. Aqui há ambos, prazer e proveito. E um profundo amor à música.

Iniciando por Mingus e Chet Baker, visitando outros deuses com os quais você certamente já manteve contato auditivo, o livro é uma delícia. Temos Miles Davis e suas roupas, Diana Krall saltitando de pés descalços pelo camarim, Billie Holiday mastigando palavras, discos como Kind of Blue e outros mais desconhecidos, assim como seus artistas.

Como se não bastasse, Eduardo complementa a obra nos mostrando onde podemos ouvir toda a sensacional playlist daquilo que é citado, pois, se é bom de ler, é ótimo ouvir e conhecer aquilo que é descrito com graça e elegância.

Recomendo!

Eduardo Rodrigues

SESSÃO DE AUTÓGRAFOS COM JAZZ E SOUL MUSIC !!!

SESSÃO DE AUTÓGRAFOS COM JAZZ E SOUL MUSIC !!!

Sabem aquele livro que é uma gostosura? Pois é. “A ilusão de um instante — Inventário de uma etnografia amorosa e musical”, sétimo livro de Eduardo Rodrigues, é uma leitura leve e cheia de casos altamente saborosos a respeito dos principais nomes do jazz.

O livro reúne 60 artigos ilustrados sobre cantores, instrumentistas, discos e filmes. Na última página, o leitor encontra como acessar a playlist da obra no Spotify. Um show!

O autor estará autografando o livro na Livraria Bamboletras e, entre uma dedicatória e outra, comandará a trilha sonora do evento, lembrando os velhos tempos em que trocava os discos de Billie Holiday, John Coltrane e Miles Davis no carrossel do Zelig Bar.

Música em volume baixo, é claro, para não atrapalhar a conversa, mas alta o suficiente para inspirar e tocar os corações. Haverá água e cerveja à venda durante o culto aos livros na pequena igreja onde está instalada a livraria.

Apareçam! O mundo não é só a Copa do Mundo.

Quando: 30/11
Horário: das 19h às 20h (mas pode chegar um pouco antes)
Onde: Livraria Bamboletras (Av. Venâncio Aires, 113, Cidade Baixa)
Autor: Eduardo Rodrigues
Livro: A ilusão de um instante — Inventário de uma etnografia amorosa e musical

Bamboletras recomenda dois excelentes romances e uma biografia

Bamboletras recomenda dois excelentes romances e uma biografia
Ian McEwan

Corre para garantir seu exemplar na Bamboletras!

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Índice médio de felicidade, de David Machado (Dublinense, 320 páginas, R$ 69,90)

Índice médio de felicidade é livro que gruda. Sua história é escrita de forma profundamente humana e nervosa. Garantimos que em nenhum momento você conseguirá um afastamento emocional do livro. Cobre depois da gente! Após décadas de crescimento, lá por 2012 Portugal soçobrou em uma profunda crise econômica e o desemprego cresceu. O romance é narrado por Daniel, um jovem na casa dos 30 anos que se vê sem ter o que fazer. Demitido de uma agência de viagens, ele passa a realizar pequenos trabalhos, vê sua esposa mudar-se para o interior com os filhos e fica em Lisboa, aguardando a sorte e ocupando-se com todo o tipo de coisas, muitas delas perfeitamente inúteis para tirá-lo do buraco. Otimista ao mais alto grau, Daniel vai resistindo de forma muito peculiar e humana: procura não encarar a dura realidade e a falta de perspectivas. Porém, à medida que lemos o romance, sentimos crescer um subtexto que caminha na direção contrária ao que diz o narrador. Suas boas intenções passam a ser claramente hostis a ele próprio. Um verdadeiro achado. A história é ótima, com um belo final. O bom humor do livro e a extraordinária capacidade narrativa de David Machado — um ex-economista que não escreve uma palavra em economês — garantem um livraço. Índice Médio de Felicidade recebeu o Prêmio da União Europeia para a Literatura.

Lições, de Ian McEwan (Cia. das Letras, 568 páginas, R$ 119,90)

Enquanto o mundo tentava curar as feridas da recém-terminada Segunda Guerra Mundial e a Cortina de Ferro se fechava cada vez mais, a vida de Roland Baines, um menino de onze anos, vira de cabeça para baixo. Em um internato a milhares de quilômetros de sua família, a vulnerabilidade infantil do garoto atrai a professora de piano, Miriam Cornell, deixando marcas profundas que nunca serão esquecidas. Contudo, já adulto, sua esposa desaparece, deixando-o sozinho com o filho ainda bebê. À medida que o medo da radiação de Tchernóbil se espalhava pela Europa, Roland parte em uma busca por respostas que o farão se embrenhar cada vez mais profundamente em seus próprios traumas. Trata-se de uma história épica de um homem comum e um retrato da Europa dos séculos XX e XXI, além de um debate sincero sobre família, Estado e, claro, amor. E há McEwan, um notável escritor que você tem que conhecer.

A odisseia: memórias e devaneios de Jupiter Apple, conversas com Julio Manzi (Psico BR, 212 páginas, R$ 130,00)

Não se assuste com o preço! A Bamboletras é quem está vendendo mais barato. É um livro lindo, de capa dura e edição muitíssimo caprichada para contar a história de um dos  mais originais e criativos músicos surgidos no Brasil das últimas décadas, Jupiter Apple. Considerado um ícone do rock gaúcho, lançou clássicos como “Um lugar do caralho”, “Miss Lexotan”, “Mademoiselle Marchand” e “Beatle George”. Durante os seus últimos meses de vida, Jupiter Apple se encontrou diversas vezes com o também músico Juli Manzi, para longas conversas que deveriam se tornar uma autobiografia oral. O resultado está neste belíssimo livro, que traz, na fala absolutamente única e delirante de Jupiter Apple, uma visão íntima de sua vida e obra.

A solidão do amanhã, de Henrique Schneider

A solidão do amanhã, de Henrique Schneider

Este livro é um notável thriller com os dois pés na realidade brasileira dos anos 70. É realmente um livro para ser lido em uma sentada — ou duas, meu caso…

Fernando participava do movimento estudantil de resistência à ditadura civil-militar brasileira. Um dia, sua casa é invadida por milicos, com aquela truculência típica dos que podem tudo. Ele vai para a prisão, mas é logo libertado. Sabendo que pode ser novamente preso, ele e seus companheiros decidem que Fernando deve emigrar para o Uruguai, destino igualmente perigoso. Ele consegue que o pai de um amigo de infância o leve até Aceguá, próximo de Bagé, na fronteira seca entre os dois países. Este pai, Jorge Augusto, é, digamos, um funcionário púbico acima de qualquer suspeita. A viagem, dentro de uma incerta Variant, é o thriller, provocando enorme expectativa no leitor.

Mas não é somente a tensão pela tensão. A solidão do amanhã demonstra que a política está misturada a tudo, mesmo que Jorge Augusto evite o tema. Os excelentes diálogos do livro, seus vários narradores — indicados no início da cada capítulo — e a sólida construção dos personagens mais do que arranham a realidade, mostram pessoas vivas e o que é a vida e o medo durante uma ditadura. Um medo que perpassa tudo, desde a viagem até o futuro no país vizinho. E mesmo que se acredite na luta que se trava.

É claro que as pessoas que hoje pedem o retorno da ditadura jamais lerão esta obra de Henrique Schneider, mas deveriam. Para os que estão na outra trincheira, A solidão do amanhã é uma grande história — excepcionamente bem narrada — sobre uma época que deveria estar apenas nos livros de história. E nas histórias.

Henrique Schneider | Foto: Literatura RS

O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksiévitch

O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksiévitch

Nestes dias, falar em homem — mesmo que em sentido geral — talvez seja inadequado para o título de um livro narrado em sua maioria por mulheres, mas OK. Aleksiévitch é uma jornalista que se dedica a compilar entrevistas de pessoas, formando romances-corais. Os depoimentos de sucedem, sendo maravilhosamente tratados como literatura pela autora. O resultado aqui é de uma cacofonia viva e profundamente comovente de vozes russas para quem a era soviética era tão essencial quanto sua natureza.

O fim do homem soviético é um mosaico de vozes de todas as regiões da antiga União Soviética que revelam, através de longos e tortuosos monólogos, como era realmente viver sob o comunismo. Para uma nova geração de russos nascidos após a Segunda Guerra Mundial, a era de Mikhail Gorbachev, perestroika e glasnost, a tentativa de golpe, o colapso da União Soviética e as subsequentes crises econômicas sob Boris Yeltsin anunciavam uma sensação de liberdade, mas muitos russos ficaram desiludidos e zangados. O que o socialismo agora deveria significar para o antigo Homo sovieticus, agora pejorativamente chamado de sovok? (“lata de lixo”)? Em segmentos que ela chama de “Sobre o ruído das ruas e as conversas na cozinha”, Aleksiévitch transcreve esses monólogos e conversas gravadas em uma prosa sinuosa de fluxo de consciência. Pessoas de todas as idades delineiam eventos com perplexidade e fúria, terminando em um novo mundo assustador onde o capitalismo de repente era bom com o “dinheiro tornando-se sinônimo de liberdade”. Os suicídios que Alexievich narra são de cortar o coração, assim como o sentimento reiterado de “ingenuidade” do povo diante da decepção, a resistência do anti-semitismo, a guerra nas ex-repúblicas soviéticas, a fome e as terríveis condições de vida. A autora captura essas vozes formando um documento de valor inestimável. É literatura profundamente significativa como história.

Você pode abrir O fim do homem soviético em qualquer lugar. As histórias vêm de uma enxurrada de vozes: médicos, escritores, trabalhadores, ex-funcionários, soldados, vêm de todos. Fazendo poucas intervenções, a autora dá espaço a essas pessoas. Quando ela insere um comentário, está entre colchetes e muitas vezes são muito comoventes. Uma carga de catarse está em exibição. As pessoa realmente falam para Aleksiévitch.

A maioria das histórias são sobre as promessas das eras Gorbachev e Yeltsin. Em vez de tolerância e oportunidades, as pessoas foram apresentadas a uma forma brutal de capitalismo, que dividia as pessoas em vencedoras e perdedoras. Em vez de paz, após o desmembramento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1991 em estados independentes, ressurgiram ódios raciais cruéis. Este livro está cheio de saudade dos velhos tempos, por mais terríveis que possam ter sido. Parte do anseio é pela antiga vida intelectual da Rússia. “Os livros eram a vida para nós. Eles eram todo o nosso mundo. Agora tudo é o dinheiro”.

Um homem comenta: “Saímos de nossas cozinhas e fomos para as ruas, onde logo descobrimos que, afinal, não tínhamos nada – o tempo todo estávamos apenas conversando. Pessoas completamente novas apareceram, esses jovens de anéis de ouro e blazers magenta. Havia novas regras: se você tem dinheiro, você conta — sem dinheiro, você não conta. Quem se importa se você leu tudo de Hegel? ‘Humanidades’ começou a soar como uma doença.”

Aleksiévitch nos leva a muitas cozinhas que já foram a alma da vida dissidente russa. “Para nós, a cozinha não é apenas onde cozinhamos, é a sala de jantar, o quarto de hóspedes, o escritório”, diz a autora. As cozinhas são onde “podíamos criticar o governo e, o mais importante, não ter medo, porque na cozinha estávamos sempre entre amigos”. Hoje, a cozinha russa são muitas vezes lugares sem alma, cheios apenas de imitações de aparelhos de última geração. Menos conversa acontece. Menos comida sai de lá também.

Na introdução a este livro, Aleksiévitch escreve sobre seu método. “Não pergunto às pessoas sobre socialismo”, diz ela, “quero saber sobre amor, ciúme, infância, velhice. Música, danças, penteados. A miríade de detalhes de um modo de vida desaparecido.”

Recomendo.

Svetlana Aleksiévitch (1948)