A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro

Estou terminando de ler a surpreendente novela do modernista português Mário de Sá-Carneiro “A Confissão de Lúcio”. Procurei no Google algum artigo que falasse sobre as questões de identidade sexual suscitadas pela obra, mas não encontrei quase nada, só algumas observações pudicas feitas por portugueses preocupados em negar ou esconder a homossexualidade – a meu ver inegável – do autor por trás de considerações oníricas… O simbolismo do livro é claro e não há problema algum em ser homossexual, o curioso é a forma com que os portugueses parecem querem proteger seu clássico das más-línguas. Para um clássico, o livro é muito descuidado. Foi escrito rapidamente em 27 dias.

Mário nasceu em 1890 e suicidou-se em 1916, em Paris, antes de completar 26 anos. “A Confissão de Lúcio” trata basicamente do triângulo amoroso formado pelo escritor Lúcio, o poeta Ricardo de Loureiro e a sua esposa Marta. Uma noite, em conversa com Lúcio e antes de conhecer sua esposa, Ricardo resolve revelar-lhe uma estranheza de sua personalidade. Deixemos a palavra a Sá-Carneiro:

Ricardo deteve-se um instante, e de súbito, em outro tom: – É isto só: – disse – não posso ser amigo de ninguém… Não proteste… Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afetos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! (…) Para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou homem ou mulher. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo, eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.

(As expressões grifadas são do original de Sá-Carneiro).

E Ricardo diz mais:

Entretanto estes desejos materiais (ainda não lhe disse tudo) não julgue que os sinto na minha carne; sinto-os na minha alma. Só com a minha alma po­deria matar as minhas ânsias enternecidas. Só com a minha alma eu lo­graria possuir as criaturas que adivinho estimar – e assim, satisfazer, isto é, retribuir sentindo as minhas amizades.

Depois, Ricardo casa-se com uma belíssima mulher, Marta. Lúcio a conhecerá e será seu amante, porém, mesmo com toda a intimidade adquirida, nunca saberá nada de seu passado ou de seus planos. Saberá apenas que ela também mantém casos amorosos com alguns outros amigos de seu marido. Depois, Lúcio, presa de loucos ciúmes dos outros e sem entender a aparente indiferença de Ricardo a tudo isto, resolve matá-lo e, matando-o, faz desaparecer Marta. É como se ela nunca houvesse existido.

Ainda Ricardo falando a Lúcio:

– Ai, como eu sofri… como eu sofri!… Dedicavas-me um grande afeto; eu queria vibrar esse teu afeto – isto é: retribuir-to; e era-me impossível!… Só se te beijasse, se te enlaçasse, se te possuísse… Ah! mas como possuir uma criatura do nosso sexo.

E ele volta à lenga-lenga:

… Marta é como se fora a minha própria alma… estreitando-te ela, era eu próprio quem te estreitava… Satisfiz minha ternura: venci! Chegou a hora de dissipar os fantasmas… Repito-te: foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se materializasse para te possuir…

Então ouve-se o tiro disparado por Ricardo contra sua esposa Marta, mas quem morre é Ricardo. No mesmo momento, Marta desaparece como que por encanto. É um suicídio, claro. Ricardo, dando um tiro em sua alma sexualizada e materializada, mata-se. Mas Lúcio é quem cumpre pena por ter matado o amigo.

Concordo com a portuguesa Maria Estela Guedes quando ela diz sobre Sá-Carneiro:

Ele, o Esfinge Gorda! Ora me parece a mim que o mistério maior da vida dele é não haver nela mistério nenhum. Lançar a dúvida na mente dos outros é a sua Grande Obra, rasgo francamente genial.

Genial? Nem tanto. O livro é muito curioso, simbólico e com prazo de validade vencido. Mas vale a pena lê-lo. Comprei-o por R$ 5,00, numa edição da Editora Moderna, 2001.