Mas voltemos a Brahms. Sei, há Beethoven, Mozart, Bruckner, Mahler e Shostakovich, mas, no meu sentir, esta sinfonia é a melhor que conheço. Brahms era visto como o sucessor de Beethoven e estava muito preocupado em ser digno da tradição sinfônica do mestre. Tão preocupado que preparou sua primeira sinfonia ao longo de mais de 20 anos. Sua composição iniciou-se em 1854 e sua finalização só ocorreu em 1876.
O maestro Hans von Bülow apelidou-a de “A Décima de Beethoven”, o que é apenas uma frase de efeito. Não pretendo desconsiderar que há uma citação da Nona de Beethoven no último movimento, porém os fatos obrigam-me a encarar isto como uma demonstração de gratidão a seu antecessor, ao qual tanto devia – ou, corrigindo, ao qual tanto devemos… Depois de anos e anos como ouvinte, afirmo tranquilamente que, até mais do Beethoven, o que há aqui é Schumann, principalmente na forma inteligente como foram desenvolvidos os elos entre os movimentos que parecem brotar logicamente um do outro. No mais, a Primeira de Brahms é uma derivação autêntica, exclusiva e original do estilo empregado por Brahms em sua música de câmara. Ademais, Brahms – que estreava sua sinfonia 49 anos após a morte de Beethoven – aborda o gênero de forma diversa, dando, por exemplo, extremo cuidado à orquestração e chegando a verdadeiros achados timbrísticos no segundo movimento e na introdução ao tema do último tema: aquele esplêndido solo de trompa, seguido da flauta e do arrepiante trio de trombones. Tais cuidados orquestrais evidentemente não revelam um compositor maior que Beethoven, apenas revelam que o tempo tinha passado, que Brahms já tivera contato com as orquestrações de Rimsky-Korsakov, Berlioz, Wagner, Liszt (os dois últimos eram seus inimigos), que Mahler tinha 16 anos de idade e que a Sinfonia Titan estaria pronta dali a 12 anos…
Em sua primeira sinfonia, Brahms resolveu apresentar todas as suas armas como compositor. A solidez da intrincada estrutura do primeiro movimento (Un poco sostenuto – Allegro) vem diretamente de alguns outros notáveis “primeiros movimentos” de sua música de câmara. Sua complicada estrutura rítmica e aparente rispidez causa certo desconforto a ouvintes mais acostumados a gentilezas. Sua estrutura não é nada beethoveniana, os temas são mostrados logo de cara, sem as lentas introduções nem os motivos curtos e afirmativos de nosso homem de Bonn. Afinal, estamos ouvindo nosso homem de Hamburgo! Se o primeiro movimento demonstra toda a maestria do compositor ao lidar com diversas vozes e linhas rítmicas, o próximo é um arrebatador andante (Andante sostenuto) que parece pretender mostrar “vejam bem: além daquilo que ouviram, eu também faço melodias sublimes”. A melodia levada pelo primeiro violino ao final do andante é belíssima e inesquecível. O terceiro movimento (Un poco Allegretto e grazioso) nos diz que “além daquilo que ouviram, eu também faço scherzi divertidíssimos, viram?”. Claro que não chegamos à alegria demonstrada nos scherzi de Bruckner, porém, para um sujeito contido como Brahms, a terceira parte da sinfonia chega a ser uma galinhagem.
O último movimento é um capítulo à parte. É a música perfeita. Há a já citada introdução de trompas e trombones, mas há principalmente um dos mais belos temas já compostos. No romance Doutor Fausto, de Thomas Mann, o personagem principal Adrian Leverkühn vende sua alma ao demônio em troca da glória e da imortalidade como compositor. Feito o negócio – num dos mais belos capítulos já escritos: o diálogo entre Adrian e o Demônio –, Adrian vai compor e… bem, sai-lhe uma peça muito parecida com o tema a que me refiro. Ele o abandona. Seria este um sinal de Mann, indicando que seu personagem partiria do ponto mais alto existente para a construção de uma obra estupefaciente? Creio que sim, creio que sim, meus queridos sete leitores. Mas, sabem?, não vou gastar meu latim descrevendo o tema que aparece aos 5 minutos do último movimento da sinfonia para ser transformado e retorcido até seu final.
Afinal, ele está aqui. A sinfonia completa está. Sim, neste maravilhoso blog. Trata-se da versão de Claudio Abbado.
Não é música para diletantes leigos como eu. Porém, como a ouço há anos, posso avaliar como deve ser difícil equilibrar a rigidez formal e a imaginação melódica de uma sinfonia que – inteiramente dentro da tradição de contrastes das sinfonias – parece pretender abarcar o mundo, mostrando-se ora imponente, ora delicada; ora jocosa, ora séria.