O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékhov / O irmão de Sergio

E então nós íamos conhecer o tal do monte da cidade mais plana que conheço, Montevidéo. Estávamos no carro de nossos amigos uruguaios Roberto Markarian e de sua mulher, Ana Ferrari. Foi quando eu disse que, na noite anterior, eu tinha assistido à peça que nos fora indicada por eles. Markarian virou-se, perguntando o que tínhamos achado. Estávamos entusiasmados com a montagem uruguaia e eu disse que lembrava de O Jardim das Cerejeiras como uma história de confronto aberto entre o ex-mujique — agora endinheirado — e a velha e decadente aristocracia. Roberto respondeu:

— Não, é tudo muito sutil, Milton. Porém, o conteúdo ideológico da peça é dos mais claros.

Ana concordou. Não havia muito a dizer sobre o grande texto de Tchékhov.

Conheço Roberto Markarian há mais de vinte anos. Ele morou na casa de um casal de amigos meus durante um bom período, nos anos 80, enquanto escrevia sua tese de doutorado na UFRGS. É um sujeito engraçado, inteligentíssimo e que parece conhecer tudo. Matemático conhecido no mundo inteiro (pelos matemáticos), teve sua carreira interrompida pela ditadura militar uruguaia, que preferiu vê-lo preso. Aos 36 anos, em 1983, ele apareceu em Porto Alegre a fim de recomeçar as atividades em sua área, após 10 anos de inatividade. É daquelas pessoas que qualquer um gostaria de ter como amiga. Sempre sorrindo e contando coisas com graça, Markarian é gentil até para discutir. Lembro que uma vez ele defendeu a tese, para mim indiscutível, da superioridade da literatura em língua espanhola sobre a de língua portuguesa. Contra bobos protestos nacionalistas, permaneceu tranqüilo, rebatendo facilmente os contra-ataques. Com a convivência soube também de sua família. Surpreendi-me com a profissão de seu irmão: técnico de futebol.

Sim, meu amigo Roberto (acima) é irmão de Sergio Markarian. Então aquele matemático que se vestia como um alguém muito pobre — sempre usando uma estranha combinação de chinelos de dedos, bermudas e camisas de manga curta, mesmo para sair à noite; aquela figura latinoamericana para quem os outros sempre faziam o movimento de pagar seu ingresso, seu restaurante, seu deslocamento, fato que, na verdade, nunca o vi permitir ocorrer (não por orgulho idiota, mas porque não precisava); aquele armênio hispano hablante que não se interessava de modo nenhum por esportes, era irmão de um técnico de futebol de sucesso? Estranho.

Pois é. Sergio Markarian (ou Sergio Apraham Markarian Abrahamian), assim como o hoje mundialmente famoso matemático Roberto -– não, repito, não é exagero –, sempre obteve sucesso como entrenador. Foi técnico do Olímpia entre 1983 e 1986, do Cerro Porteño entre 1990 e 1991, da Seleção Paraguaia na Copa de 1992 e novamente entre 1999 e 2002, do Panathinaikos que chegou às quartas de final da Liga dos Campeões em 2004 e da Copa da UEFA em 2003, esteve no Libertad eliminado pelo Inter na Libertadores de 2006 e agora está no Universidad do Chile, La U. Sem dúvida, uma tremenda carreira.

Lembro da figura do irmão de Roberto ao lado do campo enquanto sofríamos para vencer o Libertad de Guiñazu. Ele ficava tranqüilo enquanto Abel esbravejava. Eu pensava que, se Sergio fosse como o irmão — que estudava a Teoria do Caos –, poderia repentinamente fazer qualquer coisa para embolar nosso meio de campo como bolas de bilhar movimentando-se sem atrito. Mas quem realizou a mágica foi Alex, num tiro comprido e enganador. Sergio reagiu balançando a cabeça como quem diz tsc, tsc, tsc. É, Roberto é melhor.

Nunca falei com Sergio, mas cito sempre seu nome quando penso em substitutos para os técnicos do Inter. Seria uma questão de simetria receber outro Markarian.

Porém, quando comecei a divagar, estavávamos no carro indo para o monte que deu nome à cidade. Roberto já contava que, na noite anterior, eles tinham ficado até às 4 da manhã numa festa em que a atriz que fazia Duniacha na peça, a criada de quarto, chegara logo depois da montagem que víramos. Soubemos que o casal Markarian dançara bastante ou, como literalmente dissera Roberto, tentara movimentar seus corpos de acordo com o que ouviam.

Porém, antes eu falava de Tchékhov. Lembram que eu, na semana passada, lera e “resenhara” A Gaivota e que o livrinho português continha outra peça, exatamente O Jardim das Cerejeiras? Pois é, eu tive o privilégio de relê-la logo após a peça e digo a vocês que é perfeita e sutil, sutil e sutil. E ideológica, ideológica e ideológica. A cara de espanto dos nobres que se negam a acreditar que sua familiar e tradicional propriedade foi para as mãos de um mujique é a cara de um mundo que absolutamente não deseja compreender e aceitar o futuro. E o trabalho que ele dará.

Ah, Tchékhov. Tudo isso em apenas 44 anos?

P.S.- Ana e Roberto, obrigado pelos encontros, pelos vinhos, pela compra dos ingressos, por tudo. E desculpem nossa demora em telefonar. Somos assim imprevisíveis, como Chaotic Billiards.

Meio século de pretensão

Meus parabéns! E então chegas aos cinquenta anos e é apenas mais uma data. A Idade da Razão já está instalada há tantos anos que fica difícil encontrar coisas a comemorar que não sejam o novo cargo, o novo carro, a nova e sonhada situação adquirida sem refletir em los muertos de tu felicidad. Sempre buscaste o conforto e agora o tens sob várias formas, não obstante a antipatia dos circunstantes, dos filhos e o silêncio dos velhos amigos. Nunca demonstraste grande vontade de te sacrificares por alguém — mesmo tua participação política dava-se em bares, era anteação, talvez anteteórica –, mas a súbita adoção de um amor extremado pela privacidade, pela autoproteção, pela furiosa e agressiva resolução de teus problemas pessoais, surpreendeu a muitíssima gente. Sim, todos nós temos de nos adaptar aos fatos da vida mesmo sendo eles desagradáveis e avessos a nossos ideais, porém a coerência gera limites, principalmente para alguém que costumava expressar-se tanto.

Tua Idade da Razão é o medo do desconhecido e o sintoma mais aparente é teu desconforto por teres eliminado de tua vida uma das mais gloriosas e dignas necessidades humanas: a aventura da amizade. Sim, à exceção de velhos amigos, não aparece mais ninguém interessante, não acontece nada de novo. É curioso como conseguiste te encalacrar. Qual foi a última vez que alguém, digamos, na faixa dos 30 anos, te convidou para uma conversa? Quando ocorreu de um jovem repentinamente chegar à conclusão de que tinha absolutamente de conversar contigo e fez um convite para um café mais ou menos urgente? As viagens te dão autêntica satisfação, mas mesmo isso é um subproduto que roubas de teu trabalho. E os novos amigos que encontras nos congressos devem ser decepcionantes e iguais, pois quem não pode mais aquilo, fica com quem pode o mesmo isso. Achas hoje que a nova geração é feita de idiotas, que não vale a pena dar-lhes atenção, que tens perfeito bom senso e tratas de evitar os desvios daqueles que se encontram em tua zona de influência à base de berros e pressões, pois não podes conversar muito, há que ter tempo para coisas mais importantes, tais como cuidar das articulações políticas de teu trabalho, dos novos tratamentos de rejuvenescimento, da hora do médico e ainda ir ao shopping, único local que consideras seguro. Dia desses, ficaste feliz ao ver que os seguranças pediam educada e repetidamente a um senhor que, por favor, fizesse o obséquio de não correr nos corredores — um pediu aqui, outro mais adiante (este chegou a ir ao meio do corredor para cruzar com o homem, que respondeu “Estou atrasado para o cinema”, mas que obedeceu passando à marcha atlética porque temia ser detido por uma advertência mais longa. E tu pensaste “É verdade, quem corre é vagabundo, neste shopping pode-se vir”).

E, enfim, teu isolamento acabou te trazendo de volta a ti. E, olha, tu não és pessoa a ser deixada a sós sem maiores dores, coisas passam a acontecer, paranóias se criam de quase nada e melhor não pensar muito. Inventas enfermidades, te examinas com o olhar crítico de quem deveria viver para todo o sempre, ficas com receio das atitudes amalucadas dos filhos e, como não tens tempo para eles e trata-os isonomicamente, isto é, também aos gritos, eles aprenderam a te enganar com mentiras. “Vou aqui”, mas vão lá; “Estou fazendo isso”, quando na verdade farão aquilo. É a escola diária da mentira; eles sabem que, se forem francos, darão de cabeça na tua absoluta falta de negociação, na tua completa alienação de como eles vivem. Então para ti é mais fácil proibir. Pois gostas desta palavra: há coisas que devem ser proibidas e é uma sorte que teu novo amor fale tão pouco. Teus filhos não falam contigo nem quando encontram uma vestimenta íntima perdida na sala… É uma piada que fazem fora de casa. Não queres brigar com a vida que te dá conforto material, deste modo, preferes ouvir fatos concretos – mesmo que falsos. De invenção bastam as paranóias e as doenças, essas inevitabilidades.

50 anos. 50 anos e tu simplesmente te desarticulaste. Sim, não te faltam as qualidades de alguém centrado, autocentrado, em faixa própria, de ética, tolerância e solidariedade adaptáveis, que não pula de galho em galho, pois tens galho próprio e privativo, dissociado do ser fumante e usuário de drogas leves que foste, que apenas lembra de sua existência nos anos 70 e 80 quando Caetano cantava e que hoje vê sua posição pretensamente intelectual atacada quando o ser silencioso te constrange. A criatura pichadora e comunista hoje só quer vestir coisas chiques e muiiiito caras, prenhes de grifes, com o caimento que só uma grife dá. Ainda ouves Van der Graaf, aquele horror? Quanta pretensão. Parece que esta apenas faz crescer. Esse meio século de pretensão comprovam a terceira acepção da palavra: afã, ambição, anelo, apetite, aspiração, avidez, sofreguidão.

Hoje tua fala é afirmar que não estás do lado da classe dominante, mas “que nem todos à direita estão errados”; é asseverar que é preciso “ouvir as pessoas”, mas não que não se deve cair, em hipótese alguma, na liberalidade perigosa; é garantir que não és moralista, mas que julgas; é jurar que não escondes nada, mas que algumas intromissões e perguntas passam dos limites… Piadas. Por falar em piadas, vamos a uma.

Politicamente funcionas como um homem branco, machista, neoliberal, de retórica potente, autoritária e invasiva, que arranjou alguém que comporta-se como uma mulherzinha burra para te acompanhar. Tua grande Olenka (*) particular funciona adequadamente? Já sabe de todas as tuas preocupações? Angustia-se junto? Parabéns, Kukin-Pustovalov-Smirnin! E quando tua companhia leu aquele e-mail que comprovava irrefutavelmente o fato do homem não ter ido à Lua? Tu e Pustovalov não perderam tempo para fazer-lhe mudar rapidamente de idéia, não? “Nunca mais repita uma bobagem dessas!!!”. Engraçado, rimos muito.

Mas preciso finalizar, é tarde. Tua existência surpreende, repentinamente deixaste de pensar nas igualdades do mundo, deixando-as apenas para os discursos, tão considerados quanto os de José Dirceu. Se dizem que perder uma ilusão torna-nos mais sábios, o que dizer de alguém que perdeu todas? O desconcertante é que tal fato não te trouxe a serenidade que dizem ser uma das qualidades da sabedoria. Pobre de ti. Deixar tudo, arrepender-se não implicaria necessariamente nas ações de ímpeto e má consciência — que te comprazes em fazer — típicas de quem foi enganado e precisa vingar-se. Ou talvez faças isso para externar a felicidade de, finalmente, poderes agir autenticamente: sem te dares àquele trabalhão de teus anos jovens de ter de dissociar tudo o que pensavas do que dizias. Finalmente o autêntico está bem perto de ti, é só eliminar o que vem antes do mas. O resto é tu.

(*) Personagem de um conto de Anton Tchékhov que pode ser lido no link acima.