Gostei muito do filme argentino Paulina. É oportuníssimo, ainda mais após o estupro coletivo que ocorreu semanas atrás no RJ. Paulina é filha de um conceituado juiz. Advogada militante, com um suposto “futuro brilhante na carreira”, ela decide abandonar os estudos para dedicar-se a um trabalho como professora no interior da Argentina. Diz que a situação é temporária. Sabe que isto pode lhe custar alguns anos de carreira, mas o idealismo a leva inevitavelmente em direção ao projeto. Ela vai, mas logo nos primeiros dias é atacada e estuprada. O primeiro ponto polêmico são os velhos argumentos machistas levantados durante a investigação policial, e apontados de forma clara pelo excelente diretor Mitre, como o questionamento sobre que roupa Paulina estava vestindo… O segundo é que a advogada descobre que não sabe manejar seus alunos. Na verdade, é surpreendida pelo comportamento deles. O terceiro é que ela mantém suas convicções e vai em linha reta. “Quando os envolvidos são pessoas pobres o Judiciário não procura justiça, mas sim culpados.” Creio que o único problema do filme é a própria Dolores Fonzi, a atriz que faz Paulina e que tem belos olhos, mas que, a partir de determinado momento, não parece mais movida por seus ideais e sim pela birra. Ela é muito inexpressiva e calada para uma militante que vai a campo, acho eu. Mas tal fato torna o filme ainda mais desconcertante e digno de discussão. Mais uma joia argentina.
Paulina é um remake. Aqui está o filme de 1960. Também argentino, com o mesmo título original (La Patota) e igualmente um filmaço. Mirtha Legrand, a Paulina de 1960, parece fazer uma atuação “mais inteira” do que Fonzi. O trabalho do diretor Santiago Mitre é excelente, mas, afora este fato, é útil para sairmos discutindo a questão. É impossível não falar sobre o filme após a sessão.
Neste final de ano, por alguma razão 100% inédita, recebi alguns convites para falar sobre o espaço da crítica literária e musical em nosso estado, o RS. Há muito o que dizer e, quando dos convites, a primeira coisa que me veio à mente foram as caras. Escrever sobre os escritores e músicos de nossa província é ver caras feias, é fazer perigar amizades ou perdê-las. Há aqueles que reagem com elegância e merecem ser citados — casos do falecido escritor Moacyr Scliar, de Luiz Antonio Assis Brasil, de Sergio Faraco e do maestro Tobias Volkmann, entre outros — e os que jamais citaria neste texto, pois não gosto nem de caras viradas nem de cumprimentar o ar.
Domingo passado fui ao cinema. Estava sentado, aguardando o início de uma sessão e uma pessoa que entrou e procurava lugar me negou o cumprimento. Fiquei pensando no motivo e penso ter descoberto. O não cumprimento não se deveu a uma crítica negativa, mas à ausência de crítica após ter recebido seu livro. Ou seja, na província, as suscetibilidades e o ressentimento podem ser catalisados por coisas muito pequenas. Há toda uma cultura de compadrio que tem de ser respeitada. Eu elogio o teu livro, tu elogias o meu. Eu amo de paixão tua interpretação e tu dizes que sou um gênio.
É desagradável ser criticado negativamente, claro. Porém, quando alguém escreve um livro ou vai a um palco, passa do espaço privado ao público e pode, sim, receber críticas orais ou por escrito. Porém, no RS, quem quer ter um milhão de amigos deve silenciar a parte ruim, abrir um sorriso, suspirar embevecido e tratar de achar algo de bom para dizer. É o que o escritor ou músico esperam. E, nossa, como sofrem! O escritor normalmente ganha a vida em outra atividade, comete suas fantasias com o maior esforço e pensa que merece ser sempre elogiado por sua esforçada colaboração na construção do edifício da cultura. O músico não tem apoio, luta com dificuldades e depois vem um raio de um arrogante e destrói seu esforço e idealismo em dois parágrafos.
Tem também aquele curioso escritor que colaborava comigo, mas que apareceu na capa do Segundo Caderno da ZH e que passou a me descartar até no Facebook– coisa que a RBS não lhe pediu, obviamente.
Há uma função na atividade crítica. No mínimo, o crítico deve ser uma pessoa com grande vivência em sua área de atuação. É óbvio que deve gostar dela. Nunca vi, por exemplo, um crítico de cinema que odiasse os filmes ou que considerasse um sofrimento passar duas horas fechado numa sala escura. Nunca vi um que não se interessasse por roteiro, encenação, filmagem e montagem. Ou seja, o crítico deve ser minimamente qualificado de forma a poder orientar quem se interessa por lê-lo. Pelo conteúdo do que escreve, o público imediatamente nota se a crítica lhe serve ou não, se aquele cara tem algo a lhe dizer ou se é melhor deixar de lado.
Existe uma poética na crítica. O leitor leu um livro, sentiu o livro, gostou ou não gostou. Porém, é comum acontecer de ele não saber de seus motivos e o crítico o ajuda a dizer: olha, eu gostei (ou não) por causa disso. O livro pode crescer para o leitor. A critica é o desmonte parcial de uma máquina. Às vezes contextualiza a obra, às vezes dá uma explicação tão surpreendente que acaba abrindo portas jamais visitadas. A crítica também pode ser útil ao escritor, porque ele escreveu páginas e páginas em impulso artístico e pode ocorrer de ele desconhecer suas razões. O crítico, deste modo, iluminaria zonas das quais o autor não tem plena consciência.
Mas dá muita confusão exercer um espaço crítico numa província como a nossa. Incluo-me nela, é claro, faço parte da sociedade gaúcha, e não tenho a pretensão de ser um antídoto ao paroquialismo, ao bairrismo, ao regionalismo orgulhoso e tolo. Tudo o que faço é tristemente insuficiente. Quando escrevo uma resenha favorável, sou saudado exageradamente. Quando faço uma resenha simples e nada profunda, não li o livro como deveria. Porém, quando critico o livro pode acontecer qualquer coisa.
A moda é o autor colocar em seu perfil do Facebook algo mais ou menos assim. “Este cara (eu) disse isso do meu livro. Vocês concordam com ele?”. Bem, como resultado, seus amigos me dão uma saraivada de golpes, muitos abaixo da cintura. Já fui chamado de tudo. Acostumei-me com as ofensas, mas o que me fascina é quando me chamam de recalcado. Sei lá, gosto de palavras com vários significados. Só que, como dirá o Ernani Ssó num texto que sairá amanhã no Sul21, denominar-me assim não melhora nem piora uma crítica. O que piora ou melhora uma crítica é o nível dos argumentos – e chamar um crítico de recalcado nem é argumento, é só um ataque pessoal, uma tentativa óbvia de desacreditar o crítico. Veja, me chamar de recalcado é como me chamar de feio. Não faz a menor diferença na discussão, já que não estamos num concurso de beleza.
Houve um “artista” que me chamou de recalcado no título de um direito de resposta que concedi. O cara me chamou de “recalcado e formatado”. Explico o “formatado”: minhas opiniões não seriam minhas, mas sim de outros, pessoas maquiavélicas que já são inimigas do cara e que me assoprariam o que devo escrever. Pura paranoia. Com este artifício, o autor afirma ser impossível que aquela opinião seja minha… E ainda me acusou de usar imagens de divulgação sem permissão… Ah, tem outra ofensa que acho sensacional: “tu não tens trajetória”. Houve outro que passou a ameaçar minha namorada em função do que escrevo. É um show de horrores.
Idealmente, os assuntos da arte deveriam ser discutidos com serenidade, com a possibilidade de discordâncias. De cordiais discordâncias. A opção pelo ataque ao crítico revela insegurança — coisa que só admiramos em poucos autores –, narcisismo — coisa que só admiramos em Oscar Wilde — e infantilidade — coisas que só admiramos na literatura infantil… Sabem? Eu acho que temos que ser tolerantes com quem leu o livro até o fim. Mas pedir humildade a um autor provinciano é foda. Esse papo de exigir somente as criticas “construtivas” ou de estigmatizar o interlocutor me parece muito aparentado do período Médici, Brasil Ame-o ou Deixe-o. “Se tu não gostas, por que escreveste a respeito?”, ouvi de outro. Ah, outra coisa que me exigem é dar um tom solene à crítica. Nada de humor ou ironia!
Enquanto isso, a literatura e a música ficam lá, num canto, esperando que passe a briga de casal. E não passa.
Logo nas primeiras linhas de O Irmão Alemão, Chico Buarque nos revela o centro do seu mais novo romance, a história da busca, empreendida por Francisco de Hollander, pelo paradeiro de seu irmão, nascido na Alemanha. Diz ele: “Sei que meu pai ainda solteiro morou em Berlim entre 1929 e 1930, e não custa imaginar um caso dele com alguma Fräulein por lá. Na verdade, acho que já ouvi falar de algo mais sério, acho até que há tempos ouvi em casa mencionarem um filho seu na Alemanha. Não foi discussão de pai e mãe, que uma criança não esquece, foi como um sussurro atrás da parede, uma rápida troca de palavras que eu mal poderia ter escutado, ou posso ter escutado mal.” Ou seja, mesmo que não passasse de um segredo de polichinelo, o irmão alemão, cuja existência é revelada por uma carta encontrada dentro de O ramo de ouro, obra clássica de Sir James Frazer, é o estopim para uma busca que haveria de se estender por décadas.
No dia a dia dos Holanda, falava-se do tema com maior desenvoltura. A Sergio Buarque de Holanda, não se sabe ao certo se pelos traços físicos ou se pelo domínio da língua, com certa frequência se perguntava se era filho de alemães. O historiador que, entre outras coisas, ficou conhecido por sua fina ironia, respondia de bate-pronto: filho não, sou pai de alemão. A conhecida historieta, que suponho já deva ter sido contada muitas vezes, é relembrada no belo documentário de Nelson Pereira dos Santos, Raízes do Brasil, filme que faz com que partes do livro de Chico Buarque tenham sabor de déjà vu.
Fato é que tudo o que envolve o nome de Chico Buarque ganha enormes proporções, e com O Irmão Alemão não foi diferente. Na mesma medida que os seus mergulhos em praias cariocas, seus discos ou outros livros, é digno de nota o alarido criado em torno do livro, antes mesmo de ele chegar às livrarias. Dias após o seu lançamento, O Irmão Alemão já contava com pelo menos quatro resenhas, assinadas por críticos respeitados, e com o prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte).
Confesso que mesmo eu, que nem de longe seria lembrado como um apreciador da literatura de Chico Buarque, fui fisgado pelas iscas que foram lançadas. A promessa de contar a história do filho alemão de Sergio Buarque de Holanda, e de tecer uma trama que ligaria os horrores da escalada do nazismo na Alemanha e os anos de chumbo da Ditadura Militar no Brasil, foram o suficiente para me fazer comprar o livro assim que publicado e lê-lo em uma tacada.
Aqueles que se interessam pela trajetória de Sergio Buarque sabem que esse período foi importantíssimo em sua formação. Ele partiu como um jornalista boêmio, ligado aos modernistas de 1922 e editor de Estética, uma revista de vanguarda, efêmera como todas devem ser. Voltou determinado a se tornar um scholar, versado na sociologia de Max Weber e de Georg Simmel. Lembro aqui uma passagem do mestre Antonio Cândido, que evocou de modo preciso o transe germânico de Sergio Buarque:
Por isso a estada em Berlim foi uma oportunidade para abrir ao seu conhecimento um campo novo – o “Domínio alemão” (como diria Valéry Larbaud), que ele incorporou sofregamente aos seus territórios. Lá seguiu sem muita regularidade alguns cursos, inclusive de Meinecke. Leu Sombart, Toennies, Alfred e Max Weber; familiarizou-se com os historiadores da arte; mergulhou na obra de Rilke, de Stefan George e dos discípulos deste, como Gundolf e Bertram; pela vida afora continuou lendo Goethe nos 70 ou 80 volumes da obra completa. E no meio de tudo isso imaginou um livro de interpretação da sua terra. Tinha 28 anos e “Raízes do Brasil” começava a germinar.
Além do tour de force intelectual descrito por Antonio Candido, o que se sabe da temporada berlinense de Sergio Buarque permite acrescentar visitas aos cafés e cabarés da capital alemã. O tempo foi suficiente, ainda, para um relacionamento mais sério, com uma jovem chamada Anne Ernst ou Annemarie Ernst, namorada alemã que permanece em Berlim quando Sergio volta, às pressas, ao Brasil. Ela estava grávida de Sergio Ernst, o irmão alemão de Chico Buarque. Sergio Buarque, até onde se sabe, desconhecia o fato.
Não se trata aqui, bem sabido, de comparar o romance aos fatos. Mas esse tema será perseguido ao longo da obra, a busca de Francisco de Hollander, filho do professor Sergio de Hollander, pelo paradeiro de seu irmão alemão, que, nascido na Alemanha da década de 1930, teria visto a ascensão do nazismo ao poder. A descoberta da carta, que desencadeará todos os movimentos de Francisco para descobrir o paradeiro de seu irmão, estica um fio que liga o Brasil à Alemanha, o nazismo e a ditadura militar que já estava roçando os calcanhares do protagonista. Duas vidas marcadas pela violência.
Um tema como esse, carregado de historicidade, nas mãos de um escritor que domina as regras do ofício, nos faz pensar que seria difícil errar. Ou, se quisermos ser mais reticentes, diríamos que as chances de acerto seriam altíssimas. Finda a leitura, no entanto, a sensação é de incompletude. Ora, se é escusado dizer que Chico Buarque escreve muito bem, oferece um texto burilado, bem trabalhado, com frases bem construídas, é preciso que se diga que não foi capaz de se colocar à altura da história que escolheu contar. Não se trata, de modo algum, de um trabalho mal-acabado por imperícia. Mas, seu eu precisasse definir o livro em uma palavra, diria que ele é morno.
Gostaria de sublinhar aspectos que me parecem enfraquecer o livro. O primeiro deles é a construção dos personagens. Ao longo do livro, quando fala de Sergio de Hollander, Chico Buarque não deixa dúvidas de que fala de seu pai. Quem assistiu o já mencionado documentário sobre ele não terá qualquer dificuldade de identificá-lo nas inúmeras marcas sobre as quais o autor insiste: o cigarro entre os dedos, o hábito de ler com os óculos pendurados na testa, o escritório no segundo andar da casa. Ainda assim, o esquematismo com o qual ele apresenta a rotina de um intelectual chega a ser surpreendente. O “intelectual” descrito por Chico Buarque é, bem pesadas as palavras, caricato.
Outras personagens não têm melhor sorte. Natércia, a colega-superior-amante; o pianista que tinha informações sobre Anne Ernst; o filho do pianista… A voz do narrador, igualmente, está longe de ser empolgante. Ele se dá a ver, quase sempre, por uma lente autodepreciativa. Não é ouvido pelo pai, não é O cara da turma, inveja o irmão bonito e burro que “come todas as meninas”. Em tempo: Chico, lembrado como o poeta que cantou a alma feminina, tem passagens constrangedoras sobre as mulheres com quem o seu narrador convive.
O segundo aspecto que me incomodou com relação ao livro vem da forma mediante a qual ele tratou os dois traumas históricos que servem de baliza para a narrativa, a saber, a ascensão do nazismo, evento de consequências gigantescas, e a Ditadura Militar no Brasil, período no qual transcorre boa parte da trama. A escolha por situar e relacionar a narrativa a esses dois momentos históricos, ligados à vida do autor, não recomenda o andamento, em vários momentos frívolo, a eles imposto. Uma história de amor e de segredos que tenha como eixo traumas históricos do século XX não pode se dar ao luxo de ser amena, quase superficial, sob o risco de fazer com que nossa entrega ao olhar desse narrador sobre a época simplesmente não ocorra.
Ainda que seja sabidamente uma tolice recriminar uma laranjeira por não dar pitangas, acredito que um tema como esse mereceria uma narrativa mais intensa, que fizesse jus às tragédias que, de certo modo, atravessam a vida dos seus protagonistas. Uma vez mais, retorna a questão: por que são tão raras, entre nós brasileiros, as obras artísticas que sejam capazes de traduzir a barbárie que nos cerca? Ok, ok, Chico Buarque não é Thomas Bernhard…
(*) Éder da Silveira é professor da UFCSPA, Doutor em História pela UFRGS e Pós-doutor em História pela USP
Eu simplesmente adorei Tabu (Portugal, 2012). O filme se passa no sope do fictício Monte Tabu. Minha companhia acrescentou que é um monte e é um tabu, e eu acrescento que Tabu também é uma homenagem à obra de Murnau de 1931 e o 28 de dezembro, primeira data que aparece no filme, é o dia da fundação do próprio cinema pelos irmãos Lumière. Mas essas referências — propositais ou não — ficam opacas frente à qualidade da narrativa e do tema.
Tabu é, aparentemente, uma história de amor. Um ou dois pensamentos depois já é um filme sobre as coisas que, sob a passagem do tempo, passam a existir como memória, como quase ficção. Dividido em três partes (uma curta introdução, Paraíso Perdido e Paraíso, em ordem cronológica inversa), Tabu joga informações nas duas primeiras partes e as explica na terceira, uma curiosa e longa seção onde nenhum personagem é ouvido. Há apenas o som ambiente e a narração, em off, do próprio diretor Gomes. As pessoas falam umas com as outras, mas não as ouvimos. Com este efeito simples, ele obtém uma mistura de fantasmagoria e realidade, criadas sobre ruídos e excelente música. Não, não pensem que é uma obra experimental. É um filme de sabor clássico, mas que utiliza brilhantes artifícios. Miguel Gomes explica que, na terceira parte, o Paraíso a que me refiro, atirou fora o roteiro e os atores não sabiam o que iam fazer. “Como tudo na vida, corremos o risco de nos vermos frustrados. Improvisamos muito. Como a vida, o cinema é um jogo”.
Não vou dar spoilers, tá? Pilar é vizinha de Aurora, uma anciã demenciada que vive sob os cuidados da uma empregada cabo-verdiana chamada de Santa. A filha de Aurora não quer saber da mãe e paga para ficar longe dela, enquanto a velha reclama de Santa e busca auxílio em Pilar. Então Aurora morre para que o filme receba um de seus amigos, aquele que vai narrar para Pilar a aventura de sua amiga na África de pouco antes do início da Guerra Colonial Portuguesa. E então tudo ganha sentido através de imagens.
A fotografia em preto e branco, no formato do cinema mudo, registrada em película da extinta Kodak, mostra os últimos dias de um período da história portuguesa e moçambicana. É extinção por todo lado. Como o Tabu de Murnau todos parecem assombrados por uma cultura que é incompreensível para o Ocidente, apesar de manterem-se cantando seus rocks, procurando ignorar a realidade.
Mas o mais importante de Tabu não é a nesga de painel africano que ele mostra, é a lenta reconstrução de um sonho (ou de um paraíso) para o qual não há ponte de acesso, a não ser algumas imagens na memória. Como último destaque desta resenha nada planejada, sublinho a alta qualidade poética do texto narrado em off em Paraíso.
Comprei o romance A Vida Financeira dos Poetas (Benvirá, 352 páginas) em razão do bom título. Bem, foi uma tentativa… A história sem spoilers: Matt larga seu emprego no minguante jornalismo impresso norte-americano para investir num negócio próprio na internet: um portal de notícias econômicas escritas em forma de poesia. Não dá nada certo, claro. Agora, desempregado, sem grana, corre o risco de perder a casa e a mulher, cada vez mais irritada com as dificuldades financeiras em casa e interessada em flertar com um ex-namorado.
O livro tem inegáveis bons momentos, como nos trechos em que Matt procura entrar no negócio das drogas, mas sua trama acaba esbarrando em atitudes que adocicam a situação final. É como se o autor Jess Walter estivesse dando uma volta para tornar seu livro palatável para o cinema dos EUA.
A escolha da linguagem é perfeita e podemos dar boas risadas com o livro, mas Walter acaba por destruir os bem armados conflitos do livro através do uso de soluções convencionais. Uma pena.
Noites no Belvedere é um soco no estômago do espectador, uma voadora no senso comum e um tiro na testa da alienação. O roteiro deste filme é um coice no conformismo. Esporeando a fantasia, a obra estrangula com cuidado e minúcia o romantismo, deixando em pandarecos a consciência do público. Tudo causa desconforto nesta obra de arte que expõe, de forma sufocante, as entranhas de cada um de nós, que se vê refletido monstruosamente neste espelho de Dorian Gray. Assistir Noites no Belverere é perturbador como a TPM e dolorido como receber chutes no saco.
Insultuosa e intempestiva, a pancadaria regida pelo diretor Lazlo Schwarzenbeck é um verdadeiro estupro que toma de assalto a cabeça de cada um de nós. É um choque de lógica que deixa transidos e injuriados os amantes do politicamente correto, pois afronta impetuosamente as motivações mais recalcadas de nossa alma. Autêntica tirania artística, Noites no Belvedere é um espetáculo que você não deve perder.
Eu gosto dos filmes de Salles e costumo defendê-lo em rodas de amigos, mas creio que Na Estrada — adaptação do célebre On the road ,de Jack Kerouac — , tenha tantos defeitos que… Olha, amigo Salles, desta vez vou ter que atacar. Antes gostaria de citar algo curioso: a produção, de fria recepção no Festival de Cannes, foi coberta por um estranho silêncio, os comentadores davam pistas de sua decepção, mas negavam-se a falar mal dela. Agora os compreendo. O filme não é ruim nem bom, tem antes o efeito de uma ducha de água fria, de uma mulher que nos alega estar com dor de cabeça, de um homem que alega cansaço — o filme promete e não cumpre. Após a sessão, eu olhei para minha filha Bárbara. Ela me fazia uma careta interrogativa e a mais terrível das acusações (que repasso a Salles):
— Tu não tinhas me avisado que o filme tinha 3 horas.
— Não dura 3 horas, dura 137 minutos. É que é chato mesmo.
Chato. Exatamente. Os atores realizam boas atuações, o filme é muito bonito e aí temos o primeiro problema. Salles não se afastou de seu elegante cinema de belas imagens, mesmo contando uma história onde as amizades, amores e parcerias são submetidos a alongamentos que rompem quaisquer fibras. E eram um bando de drogados, alguns com objetivos, outros não. Então, o drama deveria ser contado sob som e fúria e, quando há fúria, a fotografia não precisa ser de propaganda de cigarro. Salles cometeu o pecado mortal de não conseguir ser visceral como Kerouac exige e contou uma história fora do tom, tornando a música incompreensível e deixando os personagens meio bobos em meio daquilo que deveria ser — e é no livro — um decisivo drama existencial. Como se não bastasse, há o tamanho da história: o romance de Kerouac é uma verdadeira avalanche narrativa com fatos e opiniões e, bem, não cabe no filme.
Ou seja, o principal ingrediente do On the Road original era sua forma narrativa e esta não recebeu resposta. Como os encontros entre os personagens são espaçados por meses e nunca há um conflito latente para precipitar-se no próximo, depois de 90 minutos a gente pensa que o filme acabará a qualquer momento numa daquelas interrupções. Quando achamos e até desejamos que a cena do estacionamento seja a final, Dean resolve ir para o México e o filme segue por mais mais meia hora… A gente fica meio desesperado. Isto é, estrutura do filme faz com que pensemos “agora acaba, agora acaba”. Sai daí a sensação de “três horas” da Bárbara.
A única ilha de perfeição do filme tem nome e cena. O nome é Kirsten Dunst, que faz uma papel menor em Na Estrada, e a cena é aquela em que ela rompe com Dean Moriarty após mais uma bebedeira com Sal Paradise. Sozinhos num quarto, com um bebê no berço e outro na barriga, Dunst quase salva o filme. É mesmo uma excelente atriz, mas que só pode exercer seu papel num quarto, sem paisagens e em enorme conflito. A cena está tão fora do padrão do filme que não encontrei fotos dela no mar de fotografias de divulgação. Mas é a coisa mais Kerouac de Na Estrada.
Vinte e seis anos após Eu sei que vou te amar, Arnaldo Jabor volta às lides cinematográficas com o nostálgico e autobiográfico A Suprema Felicidade. Neste ínterim, Jabor trabalhou como colunista de O Globo e como comentarista do Jornal Nacional, Jornal da Globo, Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Fantástico e da Rádio CBN. Escreveu também dois best-sellers: Amor é prosa, sexo é poesia (Editora Objetiva, 2004) e Pornopolítica (Editora Objetiva, 2006). Se seus textos e suas intervenções na televisão renderam-lhe admiração e críticas, seus antigos filmes sempre foram respeitados.
Porém o mesmo certamente não ocorrerá com A Suprema Felicidade. Chamá-lo de ruim é insuficiente, seria apenas colocá-lo na vala comum dos projetos fracassados. Para caracterizar o filme com maior exatidão, talvez o melhor seja utilizar a palavra pavoroso. Na partida, a ideia não é má: a trama ocorreria no Rio de Janeiro do pós-guerra, buscando fazer uma crônica nostálgica dos anos de formação de um menino – certamente o próprio Jabor. O filme iria desde a infância até a adolescência de Paulo, da guerra ao amor, de Deus ao sexo, das convenções à família, só que o roteiro e seu cantor revelaram-se muito inferiores aos temas.
Em poucos minutos, toda a ideia inicial torna-se rarefeita e Jabor passa a dar atenção apenas ao sexo, realizando uma paródia involuntária de A Primeira Noite de um Homem. O adolescente Paulo perde-se em cenas de gosto duvidoso sob a orientação de um avô boêmio e de um pai cheio de repressão e concupiscência, respectivamente dentro e fora de casa. Aqui, Jabor consegue o impossível: fazer Marco Nanini, o avô materno, realizar uma atuação forçada, fora do tom. Aliás, tudo é acompanhado pelo avô, que despeja boemia pelos poros e pérolas de sabedoria em suas falas. Nada mais clichê. A única personagem que se salva do naufrágio geral é a da mãe (Mariana Lima). Melhor seria tornar o avô narrador do filme — ele funcionaria como elemento unificador, meu caro Jabor.
Os problemas do filme começam pelo roteiro interminável, repetitivo e verborrágico, e seguem pela direção de arte tosca, pela falta de estrutura, pelas alegorias deselegantes, pela má direção de atores e, para terminar, pela pieguice e inverossimilhança – por exemplo, o personagem do protagonista é dividido entre três garotos de idades diferentes e nada em comum, inclusive a cor dos olhos varia!
O filme começa com o anúncio do final da Segunda Guerra Mundial e passa a acompanhar a em flash-backs a história dos pais de Paulo (Dan Stulbach e Mariana Lima), mostrando como se apaixonaram e passaram a se detestar. As cenas da infância de Paulo num colégio católico são ainda boas, apesar da onipresente e lastimável direção de arte.
O estilo também não se decide. Em alguns momentos é uma história adolescente, noutros é a crônica da crise de um casal, noutros é uma chanchada dos anos 70, noutros o único humor são os trocadilhos chulos, ainda noutros é um musical e tudo isso sem um elemento unificador que justifique as alterações de estilo.
Saudades de um Rio antigo? Saudades de um (mau) cinema? Saudades de um avô querido? Da mãe? Nostalgia de si mesmo? Impossível responder qual foi a intenção de Jabor à beira de seus 70 anos.
O melhor do filme é a epígrafe de mineiro-carioca Drummond:
As coisas findas Muito mais que lindas Essas ficarão
Não vogando já na doce ilusão de uma sociedade sem classes, concordei em viver numa sociedade sem classe.
Do extinto blog português BOMBYX MORI
O cinema é, atualmente, nosso único bem cultural comum, aquele que pode mais facilmente tornar-se assunto de conversa. Se você, por exemplo, desejar discutir um livro, só conseguirá fazê-lo se for um daqueles bem clássicos e olhe lá; se for um livro novo ou um que poucos leram, esqueça, você terá de “discutir” com um crítico ou procurar uma alma gêmea, como o Charlles Campos. Porém, é muito mais fácil trocar idéias sobre cinema, já que quase todos vêem os principais filmes. Por isso, tenho a opinião de que a crítica cinematográfica profissional é a atividade que hoje requer a maior das competências, pois é certamente a mais contestada. E temos excelentes críticos de cinema, seja em blogs, seja em jornais, mas há outros autenticamente ridículos.
Conheci um desses na última sexta-feira à noite. O autor, bastante lido, me assustou. É análogo a certa casta de meninos que era obrigado a suportar na minha infância e adolescência: os que adoravam jogar futebol, não obstante serem irremediáveis pernas-de-pau. O pior é que, tal como o citado (ou não citado) blogueiro, aqueles meninos eram realmente fanáticos pelo jogo, eram os primeiros a chegar à nossa pracinha e muitas vezes eram os donos das melhores bolas. Estratégia.
Esse perna-de-pau — cujo nome não vou revelar e que não é o único — simplesmente não compreende o que vê na tela, possivelmente por falta de conhecimento e de bordel. Para escrever a respeito de determinados filmes são necessárias algumas interpretações e para tanto é imprescindível o conhecimento e/ou vivências e/ou referências e/ou esperteza; ou seja, cultura e algo mais.
Chutando para todo lado e pontificando sobre conceitos fundamentais suspeitos, usa uma arma que costuma ser sedutora aos crédulos: a arrogância sem justificativa. Este novo candidato a representante da ignorântzia escreve frases curtas e definitivas sobre todos filmes e é capaz de emitir involuntariamente os juízos mais cômicos. Patético. O único mérito que vejo neste blog de casa nova é o fato do homem realmente gostar de cinema; ele vê quase todos os filmes, dedica-se comovedoramente a correr de sala em sala, bem como fazia o menino perna-de-pau de minha infância — aquele que nos esperava para correr atrás da bola, raramente logrando tocá-la… Outro mérito, este mais duvidoso, é que ele parece ter o sério compromisso de resenhar todos os filmes. Aliás, é instado a isso por seus leitores nos comentários. Ou seja, há toda uma leva de jovens prontos para serem “orientados”.
Gostaria MESMO de explicitar algumas pérolas que andei lendo lá, mas tenho certeza que não devo fazer isso. O Google funciona muito bem e chega de confusões. Mas digo-lhes ao pé do ouvido que há coisas engraçadíssimas, se não fossem antes tristes. O que me deixa desconcertado é que um sujeito desses possa ter muitos leitores e que auxilie, sob aplausos, a confundir. Mas por que estou tão preocupado com isso quando há a Veja fazendo coisas piores em todas as áreas? Puff!
(*) Título copiado de outro título: o do filme de Alexander Kluge.
O que poderia haver de errado, nesse começo de século pouco promissor para a literatura — no qual Norman Mailer lamentou que tudo pelo qual sua geração de intelectuais lutara tenha fracassado, e onde as mesmas formas eternamente combatidas de dominação tenham obtido uma vitória incontestável sobre qualquer resistência contrária — , com o fato de Roberto Bolaño ter sido escolhido como objeto de acirrada adoração pela mídia cultural mundial? Nessa época desencantada dos ilimitados milagres da eletrônica, onde Philip Roth vaticinou que a próxima geração a surgir trará incutida no gene o fim do interesse pela leitura, não é espantoso que o romance de mil páginas “2666” já tenha vendido mais de 23.000 exemplares em Portugal? E que “Detetives Selvagens” tenha movimentado o competidíssimo mercado editorial norte-americano; e que os outros livros de Bolaño já sejam por lá tidos como potenciais clássicos de um escritor genial? E o que poderia ser mais esperançoso do que vermos Bolaño ocupando o centro de vários debates culturais pelo mundo, seus livros aparecendo mesmo em locais exórdinos como na mala de viagem do apresentador da Globo Zéca Camargo ( que levou “A Pista de Gelo” para o acompanhar nas filmagens pela Tailândia, demonstrando os critérios práticos da simplificação de sua escolha)?
Mas essa iconização, por outro lado, é o reflexo de outros aspectos não tão festivos do atual momento cultural por que passa a América Latina. À exceção de Bolaño, de qual outro escritor latinoamericano se ouve falar com a mesma persistência? O cenário mostra-se desconcertantemente desértico, ainda mais em comparação à profusão de nomes de valor que existiam há cinquenta ou quarenta anos. A acreditarmos na tendência — o emprego de tal palavra talvez seja o mais maneirista dos eufemismos — do definhamento da escrita, essa espera pelo desaparecimento dos últimos grandes escritores sem que se veja o natural surgimento de uma geração que os substitua, é uma realidade não só das Américas, mas universal. Não que os escritores apareçam obedecendo a u ma determinada sistemática providencial, ou são produzidos em série para, no momento devido, virem com a resolução para os conflitos da pobre humanidade desgovernada. Mas o que ocorre é que o prognóstico lançado por Mailer, Roth, Vargas Llosa e uma dezena de outros escritores, sobre o futuro inglório que eles não verão , parece se encaixar com perfeição nos estágios velozes da técnica que já nos pegam pela frente, onde a escrita se torna irrelevante e descartada, e, com isso, o pensamento crítico, as nuances lingüísticas, a contestação às doutrinas dominantes, o reconhecimento de uma dimensão mental independente, a lentidão necessária para inteirar-se da constituição espiritual morta por fora pela extenuante falta de tempo da escravidão dedicada às empresas, ao Estado e ao modus operandi de consumidores infinitos.
Se a efervescência intelectual é expressão produzida pela intolerância alcançada aos conflitos históricos, como vemos os poderosos escritores surgidos na Rússia czarista, nos memorialistas do extermínio da Segunda Guerra mundial, nos inconformados contrários ao bezerro de ouro do capitalismo norte-americano, nos refugiados hispano-americanos que acusam as ditaduras assassinas em seus países, não há momento mais legítimo para a imposição da voz do que o que vivemos hoje. Se a desgraça crônica explode no desenvolvimento de pessoas comuns em contestadores que escrevem grandes livros, o estágio atual de desgraças seria mais que justificável para a descavernização desses anônimos, a fim de instigarem aos demais míopes silenciados as possibilid ades de um mundo lá fora.
E é aqui que a carga relegada a Bolaño demonstra-se demasiado pesada. Bolaño, em decorrência da degradação de sua saúde e da conseqüente falta de tempo para amadurecer sua escrita, aceitou resignadamente o trabalho que tinha e, como o albatroz com as asas quebradas, desmoronou-se em desistência para o interior de sua imensa depressão. E ficou com toda a soberba constituição de pássaro majestoso, mas incapaz de disfarçar para si mesmo o pouco tempo que lhe restava, e o quanto isto lhe destruiu a capacidade de ver com abrangência. Não venham me dizer que a proximidade da morte cause essas coisas; quase pela mesma época, Edward Said compunha sua biografia e um volume de ensaios onde se negava a afastar uma revificação solar de todas as idéias humanistas de seus outros livros, ele que também via o fim irrevogável se aproximando.
Bolaño não estava apto a continuar a resistência contra os antigos poderes de dominação vigentes e mais poderosos do que nunca na América Latina: a política patriarcal, a mídia a serviço desses poderosos, a grande alienação e o expansivo silêncio. (Não se mostrou apto a incorporar o intelectual que fala a verdade ao poder, na definição ativista de Said.) Resistência que se fazia com uma militância romântica (hoje tão anacrônica em suas singelas tentativas, que de imediato é taxada de ingênua e demagoga) pelos escritores do assim chamado boom da literatura hispano-americana: Miguel Àngel Astúrias, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Rômulo Galegos, Júlio Cortázar, Manuel Scorza, o jovem García Márquez.
Com seu nome valorizado nos mais altos índices de graduação pela crítica estrangeira como representante da atual intelectualidade latino americana, o seu quietismo raivoso, a sua falta de fé, o seu queixume derrotado, alinha-se ao pesado silêncio que mais uma vez assola nosso continente. E Bolaño é tanto mais decepcionante por sua desistência por não se poder dizer que os escritores atuantes em outras regiões do planeta perfaçam a mesma entrega de pontos e pacificação resignada; é só ver Ismail Kadaré, Amós Óz, Ohran Pamuk, Mia Couto, entre outros. J. M. Coetzee, por exemplo, continua insurgindo com uma revisão desafiadora contra o instituído ponto comum e politicamente correto em que coube calar a questão da guetização do negro e da miséria ainda reinante sob a edulcorada versão oficial de uma África redimida e liberta pós Nelson Mandela (como no magnífico romance-palestra “Margareth Costello”).
A crítica que cabe a Bolaño é a mesma que em outra época e sob óticas diferentes, D. H. Lawrence fez a Joseph Conrad, não perdoando por este ser um escritor tão inexoravelmente triste. Com todo esse potencial para o fantástico, e cedendo na primeira investida às formas aterrorizantes da falta de perspectivas do mundo real, era o que estava dizendo Lawrence, lamentando que a música bombástica da prosa exuberante de Conrad o engolisse antes que o arrebatasse para fora da cadeira. O que pode alimentar a interpretação de que os trópicos seja um cinturão global cujos atributos coincidentes são o desespero, a apequenização e o silêncio.
Bolaño, com seu estilo que parece ser independente de qualquer influência, sua profusão de histórias, seu talento em revirar a trama inúmeras vezes, seu humor surpreendente, suas frases que aparecem aqui e ali no relevo do coloquialismo como sentenças borgeanas, o que vemos é seu receio em mitificar, em ir além. Suas narrativas são todas sobre exilados que, mesmo professando a mais difícil e anti-moderna das artes — a poesia — , ainda assim são imediatamente descartados como poetas medíocres, mais uns versejadores outsiders que vão se silenciando e rendendo ao suicídio, à doença ou aos aspectos comezinhos da vida cotidiana. Em determinado momento de “Estrela Distante”, o narrador declara que o Chile ainda não está pronto para a poesia.
Os intelectuais que erram pelas páginas de seus livros não estão motivados a transformarem céu e terra, a bradarem seu canto selvagem sobre os telhados do mundo — mesmo que sempre quebrando a cara no final — , como os personagens de Saul Bellow; também não visam o sublime, como os desesperados que se apartam da mesquinharia mundana para seus territórios artísticos pessoais, como o dos livros de Thomas Bernhard. Seus personagens não tem o firme estoicismo intelectual dos de Philip Roth; ou o prosaísmo quixotesco dos de García Márquez; ou o provincianismo que conlui o submundo bairrista da infância com a experiência do militarismo regimentar dos livros de Vargas Llosa. Os seres de Bolaño não se encaixam nem ao mais niilista dos existencialismos; vivem apenas uma pobre e levianamente documentada aventura de passantes. Não existem dois personagens mais anêmicos e inexpressivos que Arturo Belano e Ulisses Lima.
Eu não perdoo que Bolaño seja tão triste. Quem lê “Putas Assassinas”, sai com a certeza de uns três ou quatro contos realmente muito bons, mas com uma sombra na alma que leva dias para desaparecer. Poderão me dizer que mexer com um material tão emocionalmente radioativo como a literatura é tarefa para quem tenha estoicismo suficiente para suportar doses cavalares de desencanto. Mas eu saio revitalizado depois de ler Bernhard, Beckett e Céline (para citar três escritores do desencanto). Ler “Extinção”, “Origem” e “Viagem ao Fim da Noite”, é percorrer uma indignação festiva, uma repugnância que recorda sempre a força de contestação juvenil, a desconstrução de toda certeza e gratidão imposta pela farsa da sociedade equânime; é literatura adrenérgica e viril, que, dependendo da época, deve ser naturalmente reprimida pelo sistema que estiver vigorando.
Já o Chile, Pinochet, as andanças sem rumo pelo México e pela Europa — até as cenas espetaculares numa guerrilha africana que aparece em “Detetives Selvagens” — , são incapazes de romper o isolamento de Bolaño; essa violência mundana não consegue suscitar nele nada mais que o aproveitamento, sob a devida distância, de matéria para sua prosa documental. Um conto de três páginas de Cortazar, “Grafite”, faz mais pela indignação, a denúncia e reação, do que “Amuleto” e aquelas últimas páginas de “Detetives Selvagens”. “Estrela Distante” vai mostrar mais uma vez isso, com um número inédito de aberrações e corpos mutilados, de que Bolaño renunciara à política, à filosofia e à poesia, e o resultado é um livro competentemente limpo de qualquer transcendência em qualquer sentido. O único símbolo sutil perceptivo é deixado à deriva, como se Bolaño, com seu cigarrinho entre os dedos, mandasse às favas o trabalho que daria dar escopo ao inteligente esquema do personagem central ser uma serial killer. Como em Detetives, em que ele não consegue mitificar a procura por 600 páginas pela Cesária Tinajero, ele também não passa ao leitor aquela indagação após fechar o livro de “o que diabos ele quis dizer com aquilo?” O poeta fascista assassino Carlos Wieder representa o que? Bolaño não constrói vínculos inteligíveis em que se possa dizer: “Ah! É a desumanização que a rendição à ditadura causa!”, ou “Ah! Cesária Tinajero é o símbolo da liberdade perdida!” A prosa de Bolaño é indevidamente rarefeita numa época em que a literatura precisa de mais para prosseguir.
Mas vale lê-lo? Vale! Cada centavo empregado! Não sei se Bolaño é um grande escritor. Estou propenso a pensar o contrário, o que seria uma contribuição à mesma mitificação que favorece ao setor das compras antes do deleite da leitura. Um dos melhores livros que li foi escrito por um autor menor, “Pergunte ao Pó”, do John Fante, e pouca coisa há de mais singela que Arturo Bandini (que coincidência!) atirando seu livro publicado em direção às areias do deserto da Califórnia. Não estou dizendo que Bolaño seja medíocre. Mas contra a comercialização desarroada de sua imagem (que só imponho reação quanto às possibilidades críticas, e não contra o quanto se consiga vender de seus livros — é um aspecto de raríssimo otimismo ver Bolaño ocupar algumas listas de mais vendidos), eu creio que o Bolaño verdadeiro é aquele da foto e m que aparece sentado atrás de uma mesa atulhada de papéis, com o olhar perdido para dentro de si mesmo, frágil, solitário, equilibrado com seu cigarrinho eterno na fina linha de sua vida, com a cabeça cheia da música mais angustiante.
Eu mesmo começo este texto pensando se não seria demasiadamente absurdo comparar o argentino Saer (1937-2005) e o dinamarquês Jacobsen (1847-1885).
Quem me convenceu a ler Saer foi a crítica argentina Beatriz Sarlo, que falou sobre ele com imenso entusiasmo na Flip de 2005. Como se já não bastasse, a Rascunho do mês de agosto fez nova reverência ao escritor que morreu em Paris, há 3 anos. Comprei seu romance A Ocasião (Cia. das Letras, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman) e estou absolutamente encantado com “a transformação de cenas banais em verdadeiras apoteoses descritivas”, para usar a expressão do crítico Moacyr Godoy Moreira, da Rascunho. É um romance de frases longas, cujo tema principal é a ausência e que, em seu ritmo e pela qualidade das descrições, realiza curioso diálogo dentro de mim com o notável Niels Lyhne de Jacobsen (Cosac & Naify, tradução de José Paulo Paes), o lírico fundador da escola naturalista na literatura escandinava, morto em Thisted, na Dinamarca, há 123 anos.
Os temas de um e outro livro tocam-se levemente. Se aqui há a ausência, ali há a despedida. E é só. Seus pontos comuns estão nas descrições de precisão microscópica que fazem com que cada atitude ou objeto nos chegue de forma distinta de qualquer outro. As diferenças entre atos de mesmo gênero vêm esmiuçadas até o ponto de serem únicas. Ambos donos de impecável precisão vocabular e de arrebatador virtuosismo, Saer e Jacobsen tornam seus dois romances lentos, mas nunca pesados. Não são leituras trabalhosas ou difíceis e minha experiência com Saer demonstra que só preciso retornar algumas linhas quando o pensamento foge, pois todos os detalhes significam, completam e “empurram” a narrativa. Ricardo Piglia tem toda a razão quando declara que “dizer que Saer é o melhor escritor argentino atual é uma maneira de desmerecê-lo. Para ser mais exato, é preciso dizer que é é um dos melhores escritores atuais em qualquer língua”. Já Otto Maria Carpeaux dizia que o Niels Lyhne de Jacobsen não era um romance, seria algo que dissolvia-se em quadros maravilhosos, como uma obra episódica de altíssimo nível. O mesmo se pode dizer de A Ocasião e o crítico Moacyr Godoy Moreira escreve “que há passagens que poderiam ser contos independentes, mas que, aos poucos colam-se como retalhos, servindo de arremate ao entendimento de alguns pontos obscuros da história”. Certamente o Lyhne deixa muitos mais pontos em aberto, porém deixo que um crítico dialogue com o outro até para me certificar de que minha comparação não é tão absurda quanto me parecia no começo.