Estava na cara que o concerto de ontem à noite na Ufrgs seria um dos melhores da Ospa este ano. Apenas uma obra seria tocada, a Sinfonia Nº 2, “Lobgesang”, de Mendessohn. Música de alto nível, com a presença do coral, costuma ser mortal (rimou). A interpretação da obra foi excelente com a presença luminosa de cantores solistas como a soprano Elisa Machado, que arrasou. Também elogiáveis o trabalho da orquestra, do coral e o senso de estilo do maestro Manfredo Schmiedt. Aquilo que ouvimos foi efetivamente um Mendelssohn. Ontem, antes do Concerto, publiquei no Guia21 um artigo a respeito da obra. Para efeito de registro, reproduzo-o aqui com umas poucas alterações sugeridas pelo Ricardo Branco.
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Iniciemos por um depoimento pessoal. Em 2014, eu estava em Lisboa visitando a Fundação Calouste Gulbenkian quando soube que a excelente Orquestra Gulbenkian tocaria naquela noite a Sinfonia Nº 2, “Lobgesang” (Hino de Louvor), de Mendelssohn, sob a regência de Paul McCreesh. Não conhecia a obra, apenas a excelente fama da orquestra e a competência de McCreesh, comprovada em muitos CDs que ouvira.
A música me surpreendeu em vários aspectos:
(a) foram quase 70 minutos de uma sinfonia arrebatadora, de enorme qualidade;
(b) foi escrita em homenagem aos 400 anos da invenção da imprensa, que…
(c) teve enorme influência na Reforma Luterana com a edição da Bíblia de Gutenberg, pois até então a Bíblia era lida em latim e sua circulação não era a mesma que passaria a ter a partir da invenção da imprensa;
(d) utilizava textos da Bíblia Luterana e, finalmente,
(e) era uma Sinfonia Coral como a 9ª de Beethoven.
Porém…
Por algum motivo desconhecido, esta sinfonia é uma das menos conhecidas de Felix Mendelssohn (1809-1847). É, na definição do próprio compositor, uma “Sinfonia-Cantata, baseada em textos da Bíblia, para solistas, coro e Orquestra”. Foi composta por ocasião das comemorações dos 400 anos de aniversário da grande invenção de Gutenberg. Era uma obra inusual: três andamentos orquestrais seguidos de outros onze para coro, solistas e orquestra. O próprio compositor escolheu os textos bíblicos, procurando sublinhar o triunfo da luz sobre a escuridão. A obra enquadra-se na tradição do coral protestante aperfeiçoado por J. S. Bach, compositor que Mendelssohn admirou ao ponto de ter sido responsável pelo ressurgimento da sua música na primeira metade do séc. XIX.
Estranhamente, Mendelssohn, desde a segunda metade do século XIX e ao longo de boa parte do século XX, tem sido classificado com um compositor judeu. É como se ocupasse uma faixa especial, paralela ao desenvolvimento musical europeu. Tal fato originou-se nos escritos discriminadores de Richard Wagner. De forma inacreditável, Wagner tentou inventar uma tradição sinfônica alemã cujo romantismo excluísse Mendelssohn, dando maior importância a Schumann, Liszt ou até mesmo a Weber. Curiosamente, nos anos 30 do século passado, por um pequeno período Hitler incentivou que os judeus tivessem casas de espetáculos onde fossem apresentadas exclusivamente peças e obras de judeus. Lembram das clássicas cenas de filmes onde os nazistas invadem teatros lotados de judeus, quebrando tudo? Pois é, naquelas casas, Mendelssohn era muito interpretado.
No entanto, é extremamente complicado entender a música romântica alemã sem Mendelssohn, um compositor extraordinário e muito culto em todos os aspectos artísticos, humanísticos e socioeconômicos, bem como poliglota e cosmopolita. (Ele é hoje detestado por alguns grupos feministas por ter prejudicado a carreira de sua irmã Fanny como compositora, como se ele pudesse escapar de ter sido um homem de sua época). Um bom exemplo de sua cultura e sensibilidade é a bem sucedida colocação de Johann Sebastian Bach (1685-1750) como o ícone central da cultura musical alemã. Tal fato só foi possível de ser realizado a partir do próprio patrimônio da família Mendelssohn, que teve, entre seus empregados em Berlim e Postdam, Wilhelm Friedemann (1710-1784) e Carl Philip Emmanuel Bach (1714-1788). Quando da morte destes filhos de Bach, a rica família Mendelssohn comprou as coleções de partituras de ambos para suas bibliotecas.
Filho do banqueiro Abraham Mendelssohn e de Lea Salomon, neto do filósofo judaico-alemão Moses Mendelssohn, Felix foi membro de uma família judia notável, mais tarde convertida ao cristianismo. Começou a compor aos nove anos, tendo crescido num ambiente de efervescência intelectual. Dentre os frequentadores da cada dos Mendelssohn, estavam Goethe, Wilhelm von Humboldt e Alexander von Humboldt. Pressionado, Abraham renunciou à religião judaica. A Felix, a seu irmão Paul, e às suas irmãs Fanny e Rebeca, foi dada a melhor educação possível. Sua irmã Fanny Mendelssohn (mais tarde, Fanny Hensel), se tornou conhecida como pianista e compositora, apesar das dificuldades impostas pela oposição de Felix e da família. Afinal, compor não seria “coisa de mulher”.
Mendelssohn foi a maior das crianças prodígio. Enquanto criança e adolescente, nenhum outro compositor escreveu obras da mesma qualidadeu, nem Mozart. Ele começou a ter lições de piano com sua mãe aos seis anos. A partir de 1817, com 8 anos, estudou composição com Carl Friedrich Zelter em Berlim. E publicou o seu primeiro trabalho, um quarteto com piano, aos treze anos.
É uma injustiça histórica visitar Leipzig e descobrir que a casa-museu de Mendelssohn foi fundada há apenas 15 anos — assim como o monumento erguido em homenagem aos dois irmãos Mendelssohn, Fanny e Felix. Leipzig é claramente uma cidade bachiana também por influência de Mendelssohn.
Mesmo com a oposição de Wagner, sua música de câmara e peças para piano nunca deixaram de ser interpretadas, apenas as sinfonias e oratórios eram vistas com certo desprezo. Já a Inglaterra foi sempre fiel a Mendelssohn: a Inglaterra vitoriana o tinha como seu compositor favorito. A Segunda Sinfonia, “Lobgesang”, conhecida como Hino de Louvor foi uma obra que influenciou claramente a música coral sinfônica da Inglaterra antes da Primeira Guerra Mundial.
É redundante lembrar que Felix, filho de um importante banqueiro e membro de uma família de intelectuais e bibliófilos, soube combinar suas qualidades pessoais com todas as vantagens de uma educação refinada que os melhores professores lhe forneceram desde a infância. Em 1823, uma carta de seu professor Zelter para Goethe informava que “ele está melhorando em tudo, adquirindo mais força e poder. Imagine nossa felicidade, se sobrevivermos, para ver o jovem Felix viver a plenitude de tudo que sua infância prometeu”. No ano seguinte, 1824, tudo isso parecia estar ainda mais claro: aos 15 anos, em alguns meses, Felix Mendelssohn compôs sua 1ª Sinfonia, um Sexteto para piano e cordas, o Rondó Caprichoso para piano e vários trabalhos menores, além de estrear sua ópera Der Onkel aus Boston.
Em honra a Gutenberg
A Sinfonia Nº 2, “Lobgesang”, foi composta ao longo de 1840, publicada em 1841 e estreada na Igreja de São Tomás, em Leipzig, em 1842, dentro de um festival em homenagem a Gutenberg. Quando Mendelssohn fez a revisão definitiva de seu trabalho em dezembro para a edição da partitura, a sinfonia já era um trabalho popular na Alemanha e na Inglaterra. Na verdade, “Lobgesang” ocupa o quarto lugar na ordem cronológica das sinfonias de Mendelssohn, embora tenha sido numerada como uma segunda sinfonia por seus editores, já que naquela época apenas a Sinfonia Nº 1, Op. 11 (1824) tinha sido publicada. Na verdade, a Sinfonia Nº 5, “A Reforma”, Op. 107 (1830) foi a segunda a ser escrita e a terceira foi a Sinfonia nº 4 “Italiana”, Op. 90 (1833). A última composta por Mendelssohn foi a Sinfonia Nº 3 “Escocesa”, op. 56 (1842).
Mendelssohn deu o subtítulo de “Sinfonia Cantata” para o Lobgesang. O plano formal de escrever três movimentos instrumentais e um quarto longo movimento coral nos obriga a pensar na sinfonia coral de Beethoven. De fato, no primeiro movimento, há uma homenagem óbvia a Beethoven: o uso de um tema da Sonata para piano, Op. 22 do mestre de Bonn. Mas há diferenças notáveis no estilo usado: a introdução do primeiro movimento responde é muito pomposa quando comparada com a suave melodia do Allegretto de Beethoven, que se destaca pela naturalidade ingênua.
O movimento coral é monumental, manifestamente neobachiano. É dividido em nove partes:
1) Introdução (sobre o tema do primeiro movimento e terceiro figuração) e primeiro coral “Louvai ao Senhor tudo o que respira seguido pela ária soprano” Alaba minha alma ao Senhor “em um acompanhamento inquieto que nos lembra o sonho de uma noite de verão.
2) recitativo e único tenor: “Fale-te que foi redimido pelo Senhor”;
3) refrão de resposta;
4) a dupla de sopranos “Eu deposito minha esperança no Senhor”, que tem grandes semelhanças com uma das Canções Sem Palavras do sétimo livro;
5) o tenor canta “As cadeias da morte nos cercam”, um dos melhores momentos da Sinfonia, que termina com o anúncio da soprano de “A noite acabou”;
6) o coro em uma fuga esplêndida;
7) coro religioso “Deixe todos darem graças ao Senhor”;
8) fueto de soprano e tenor «Por isso minha música vai celebrar a sua glória»;
9) coro final da cidade aclamada.