Uma boa Ospa numa das últimas noites frias de 2016

Uma boa Ospa numa das últimas noites frias de 2016

Tão boa a noite de ontem. Aproveitamos bem uma das últimas noites frias de 2016. Lá vem o longo período de canícula. Fomos ao concerto da Ospa com Beatriz Gossweiler, ex-clarinetista da orquestra, hoje aposentada. Tiramos a moça de casa para que ela revisse seus colegas tocarem. O programa era o Concierto Levantino de Manuel Palau e o Concerto para Orquestra de Béla Bártok, obra que ela adora.

Sobre o concerto para violão de Palau. O Salão de Atos da Ufrgs não tem boa acústica e, no caso de concertos para instrumentos menos potentes, a coisa ainda piora. Se o violão de Fabio Zanon era audível, também estava claro que perdíamos muita coisa. Quando a orquestra entrava junto, era complicado de ouvir. E a peça era daquelas que só interessam aos violonistas. Durante a música, sentado na nossa tradicional fila P, olhei para o lado esquerdo, duas pessoas dormiam; olhei para o direito, uma. Muito melhor foi o bis, quando Zanon tocou a Dança Espanhola nº 5 – “Andaluza”, de Granados. Aí sim, em versão solo, apareceu o grande e sofisticado solista que já conhecia. Quem não sabe que precisamos de uma Sala Sinfônica em nossa cidade? Aliás, no jantar após o concerto, lembramos daquelas pessoas que rejeitaram o atual Shopping Total como local para a Ospa. Lembramos que o democratismo de resultados nulos do então prefeito José Fogaça deu enorme espaço àqueles imbecis dos “Amigos da Rua Gonçalo de Carvalho” que gritavam que “resistir é preciso”. Resistir à Cultura é preciso.

Abaixo, coloco para vocês o que ouvimos no bis. Vale muito a pena clicar.

O Concerto para Orquestra foi composto num período difícil da vida de Bartók. Ele estava desde 1940 exilado nos EUA, após assumir corajosamente posições públicas de condenação à políticas nazistas. O húngaro experimentava sérias dificuldades econômicas, de adaptação e também de saúde — sofria com a leucemia que o levaria à morte em 1945. Doente e muito pobre, sobrevivia graças à ajuda de amigos, que lhe faziam encomendas. E ele só respondia com obras-primas. Uma destas encomendas foi do regente russo Serge Koussevitzky, que dirigiu a Sinfônica de Boston por 25 anos. Este encomendou uma obra para orquestra, “do jeito que você quiser”.

Bartók compôs a peça em um curto período de trabalho intensivo, de agosto a outubro de 1943. Fazia dois anos que não escrevia nada. Estreada no ano seguinte – em 1º de Dezembro de 1944, no Carnegie Hall de Nova Iorque, com Serge Koussevitzki regendo a Orquestra Sinfônica de Boston –, a obra foi um enorme sucesso de público. Calculando bem para evitar um confronto com Mahler e com a Sagração, Koussevitzki descreveu o Concerto para Orquestra como a melhor obra orquestral dos últimos 30 anos.

“O surpreendente título deste trabalho — Concerto para Orquestra — indica a intenção de tratar os instrumentos individualmente ou em grupos de forma concertante ou solista. O tratamento “virtuose” aparece em vários momentos”, escreveu Bartók, que esteve presente à estreia. Bartók utilizava a proporção áurea em suas composições, na forma da Sequência de Fibonacci. Como leigo, não sei localizá-la, mas é fato que ouço em suas obras extrema lógica e proporção. A estrutura do Concerto para orquestra é semelhante à da 7ª Sinfonia de Mahler. Ambas têm cinco movimentos simétricos. Em Bartók, o movimento central é lento (Elegia), em Mahler é um scherzo. Em Bartók, o segundo e o quarto movimentos são scherzi, em Mahler são “músicas da noite”. E ambos iniciam suas obras com movimentos lentos e as finalizam na maior festa.

Os dois scherzi de Bartók são dignos do nome. São brincadeiras de verdade. No primeiro, Giuoco delle coppie (Jogo das Duplas), os instrumentos entram em duplas, claro. Se ouvir é ótimo, ver ao vivo é muito melhor. A música passa de uma dupla à outra de modo muito cênico. E como estiveram bem a dupla de oboístas — Javier Balbinder e Rômulo Chimeli — e de flautistas — Artur Elias Carneiro e Ana Carolina Bueno!  No outro scherzo, há uma curiosidade. Bartók tinha ouvido a 7ª Sinfonia, “Leningrado”, de Shostakovich no rádio, quando estava no hospital. Esta é uma sinfonia sobre a guerra que tanto estava fazendo sofrer Bartók. Pois sabem que ele roubou o tema da Marcha de Shosta, transformando-o em algo quase irreconhecível é cômico? Pois é.

Animado com o resultado de seu Concerto, Bartók reviveu, voltando a compor. Apressou-se para completar sua Sonata para Violino Solo — outra obra-prima — encomendada por Yehudi Menuhin e o último dos seus notáveis três Concertos para Piano, além de aceitar uma nova encomenda para escrever um Concerto para Viola para William Primrose, o qual ficou incompleto em poucos compassos. A leucemia venceu-o em 1945.

A imensa repercussão do Concerto para Orquestra levou o público a ser menos, digamos, hostil para com os trabalhos anteriores de Bartók. E eles passaram a integrar o repertório das salas de concerto. Lembro que quando li Solo de Clarineta — revejo de memória a fonte do livro e penso que talvez tivesse sido em O Senhor Embaixador — , de Erico Verissimo, ele citava os Quartetos de Bartók como as maiores obras musicais do século XX. Não sei, mas podem ser sim.

Falarei pouco sobre a execução de ontem. O resultado seria melhor se o excelente maestro Nicolas Rauss tivesse recebido mais tempo para trabalhar. É impossível preparar de quinta para terça uma peça difícil como o Concerto. Só que Rauss obteve um resultado excepcional, juntamente com a Ospa. Ainda que um pouco estropiada, a música e o espírito de Bartók estavam lá. Rauss é um mestre. Putz, deve ter se esforçado muito,

Depois do concerto, rimos muito durante o jantar — não, não rimos do concerto –, mas esta é outra história.

Bartók: grande música e uma saudação para Shostakovich
Bartók: grande música e um alô para Shostakovich

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Ospa, Shosta e as grandes Nonas (não confundir com as vovós italianas)

Ospa, Shosta e as grandes Nonas (não confundir com as vovós italianas)
Vamos falar de outro assunto, Milton?
Hum… Prefiro falar sobre o Plano Quinquenal.

Escreveria um texto muito longo sobre o concerto de ontem à noite do teatro Dante Barone, porém, como o tempo é curto, vou tentar organizar o pensamento em itens e dar uma geral depois.

1. A acústica do Dante Barone não pode ser culpada de todos os males do mundo, mas que é uma porcaria, é.

2. Se a acústica é de má qualidade, esta é brilhantemente complementada por um palco pequeno. Então, o pessoal da cozinha — sopros, metais, percussão, etc. — tem que ficar na mesma “horizontalidade” do restante da orquestra, pois não há lugar para os praticáveis.

3. O programa de ontem à noite era esplêndido, talvez por isso merecesse mais dias de ensaio. Dois Shostakovich, um Lutosławski e dois Camargo Guarnieri juntos são complicados. Um programa desses requereria mais trabalho artístico antes de ir para o palco.

4. O concerto foi bom, as notas estavam lá. Mas Shostakovich e seu sarcasmo não compareceram.

Programa

Camargo Guarnieri: Abertura Festiva
Witold Lutosławski: Pequena Suíte
Camargo Guarnieri: Três Danças Brasileiras
Dmitri Shostakovich: Abertura Festiva
Dmitri Shostakovich: Sinfonia nº 9, Op. 70
Regente: Tobias Volkmann

Escreverei acerca do concerto sem fazer críticas ao maestro — que creio ser muito bom — ou aos músicos, que algumas vezes bateram na trave. Mas elogiarei alguns que realmente se destacaram na interpretação de peças nada triviais. Por exemplo, na Dança Negra, segunda das excelentes Três Danças Brasileiras de Guarnieri, tivemos momentos extraordinários proporcionados pelos solos de Paulo Calloni (corne inglês) e de Javier Balbinder (oboé), assim como de Diego Grendene de Souza (clarinete). Aliás, as Três Danças me pareceram a parte mais bem interpretada de ontem à noite.

Na Abertura Festiva de Shostakovich houve uma verdadeira celebração ao Partido Comunista, ao cumprimento do Plano Quinquenal em um ano, às futuras vitórias da classe trabalhadora e à safra recorde de trigo. Tudo devido ao socialismo. Ou seja, a coisa foi bem tocada. A Abertura Festiva (1971) de Camargo Guarnieri trouxe-nos nossa ditadura militar, o Milagre Brasileiro e as maravilhas dos anos Médici. Tudo devido aos milicos. Ou seja, a coisa foi bem tocada.

E vou direto ao ponto. A Sinfonia nº 9, Op. 70, de Shostakovich é puro deboche, sarcasmo, escárnio. Desde Schubert, com sua Sinfonia Nº 9 “A Grande”, passando pela Nona de Beethoven e pelas Nonas de Dvorak, Bruckner e Mahler, espera-se muito das Nonas. Há até uma maldição que diz que o compositor morre após a Nona sinfonia, o que, casualmente ou não, ocorreu com todos os citados menos Shostakovitch. Esta sinfonia – por ser a “Nona” – foi muito aguardada.  Em 1945, a Segunda Guerra mundial tinha recém acabado, com a União Soviética vitoriosa. Era de se esperar que Shostakovich compusesse uma Nona sinfonia imponente, grandiosa, cheia de heroísmo e nacionalismo. Ademais, desde a Quarta Sinfonia o compositor vinha enfileirando enormidades musicais que continham profundas observações pessoais ou sociais. Na verdade, esperava-se mais uma Sinfonia que se referisse de forma dramática à Guerra, desta vez saudando a vitória. Para piorar, Shosta declarou que faria uma música que espelharia “a luta contra a barbárie e a grandeza dos combatentes soviéticos”… Bem, enquanto isso, ele preparava uma sátira.

Leonard Bernstein ria desta partitura. Os severos críticos soviéticos, adeptos do realismo socialista, não acharam graça e apontaram que a obra seria debochada, irônica e — pecado mortal — de influência stravinskiana. Eu, dono de um humor anárquico, ouço-a como uma das composições mais agradáveis que conheço. O material temático pode ser bizarro e bem humorado (primeiro e terceiro movimentos), mas é também terno e melancólico (segundo e largo introdutório do quarto), terminando por explodir numa engraçadíssima coda. Stálin foi assistir a estreia de uma Nona grandiosa… Não foi o que viu e ouviu. Teve inteira razão ao ver escoteiros marchando marchas bizarras com temas curtos e ridículos. Teve provavelmente razão ao ver o tema inicial como uma variação da marcha dos nazistas da Sétima, só que dançada por soldadinhos de brinquedo, ao estilo Forte Apache de minha infância.

A inesperada sinfonia possui cerca de 25 minutos e foi ouvida como um protesto tanto contra os terrores de Stálin quanto contra a necessidade dos compositores ao criarem Nonas tão boas quanto as de Beethoven, Mahler, Bruckner, Schubert, Dvorak… Como era de se esperar, Shostakovich foi censurado pelo Partido Comunista — cadê o Realismo Socialista? — e Stálin chegou a dizer que “a peça não passava de mero capricho burguês”. Como resultado, Shostakovich apenas lançou a Décima após a morte do líder, dedicando-se à música de câmara e a um miraculoso retorno à Bach, com a composição de Quartetos de Cordas e dos 24 Prelúdios e Fugas.

Destaques. Leonardo Winter (flautim) foi extraordinário em toda a sinfonia. Ele e o fagotista Adolfo Almeida Jr. mostraram total compreensão da música e estavam se divertindo. O mesmo vale para Klaus Volkmann (flauta). Adolfo Almeida Jr., repito, foi espantoso no Largo e na passagem para a seção final. José Milton Vieira (trombone) e Elieser Ribeiro (trompete), assim como os clarinetes estiveram maravilhosos, mas houve várias bolas na trave disparadas de outros pontos da orquestra. Não sou contra estas, acho naturais os erros — meus sete leitores sabem o quanto erro –, o problema é que a concepção da Sinfonia não estava madura. O sarcasmo e a profundidade expressiva de Shosta estiveram ausentes e isto matou a interpretação. Saí contrariado — grande coisa, né? — e conversei com amigos sobre o número insuficiente de ensaios, sobre a vida, as doenças e de como Shostakovich sofreu e buscou mais sofrimento ao manter sua integridade como artista  e ser humano em troca da integridade partidária.

No fim do concerto, meu amigo Vinícius Flores, que AMA E CONHECE Shostakovich como poucos, disse-me: “Lição do dia: se você gosta muito de uma obra, pense duas vezes antes de ir ao concerto”.

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Ospa em noite de trocadilhos fáceis e de um flute hero

Ospa em noite de trocadilhos fáceis e de um flute hero
Após o concerto de ontem, a Ospa mereceria este sorriso e charuto do mestre.
Após o concerto de ontem, a Ospa mereceria este sorriso e charuto do mestre.

Não terei tempo para escrever com maiores cuidados a resenha do concerto de ontem à noite no Salão de Atos da UFRGS. Então, vou iniciar pelo final: foi muito bom. O maestro Carlos Prazeres entregou-se à música e o resultado foi bom para mim e para todos. Mas poderia ter sido ainda mais satisfatório… O público cometeu um grande erro. O excelente pianista georgiano Guigla Katsarava daria seu bis se voltasse pela terceira vez ao palco, puxado pelos aplausos. É a praxe, gente! E falamos com ele! Como o pessoal cessou de aplaudir logo após a segunda entrada, ficamos chupando o dedo. Ele tocou maravilhosamente o Concerto para piano nº 1, Op. 23, de Pyotr Ilyich Tchaikovsky.

Este concerto abriu a função. Foi composto entre novembro 1874 e fevereiro de 1875 e revisto no verão de 1879 e novamente em dezembro de 1888. É uma das mais populares composições de Tchaikovsky e está entre os mais conhecidos concertos para piano. Embora a estreia tivesse sido um sucesso de público, os críticos não ficaram nada felizes. Um deles escreveu que “não estava destinado a se tornar famoso”. Errou feio.

A execução da obra foi magnífica. Katsarava  trouxe um sotaque autenticamente russo a Tchaikovsky. A orquestra esteve muito bem e, logo após o segundo movimento, anotei apressadamente no programa: “Klaus Volkmann, que bonito, que delicadeza! Javier tb mto bem!”.

O feito de Klaus é digno de nota, ainda mais que eu soube depois, através de fontes ligadas à orquestra, que ele tinha deixado cair no chão o estojo de sua flauta, avariando o instrumento. Imaginem que ele tocou num INSTRUMENTO EMPRESTADO do segundo flautista! Com todos os solos que fez — era uma noite em que Klaus seria especialmente exigido — e com a extraordinária qualidade deles, dá para se ter uma ideia da magnitude do feito. Poucos conseguiriam. É como se ele tivesse saído do banco de reservas, após longa lesão, para virar o jogo. Porra, Klaus, foi demais!

Depois veio Batuque, de Alberto Nepomuceno (1864-1920), espécie de micro-Bolero de Ravel. O cearense Nepomuceno tem o mérito de ter sido um dos precursores do nacionalismo musical, que explodiu mesmo com o talento de Heitor Villa-Lobos

Por falar nele… E veio a melhor peça da noite, o Choros N° 6, de Villa-Lobos. Escrita para orquestra em 1926, a peça só foi estreada no Rio em 1942. É irresistível. Meus sete leitores sabem, tenho o coração duro e o derramamento de mel promovido por Tchaikovsky apenas me agradou parcialmente. Gostei mesmo foi do Choros, espécie de passeio musical — de trem, como Villa gostava de trens! — por bairros e cidades da periferia do Rio de Janeiro. É uma obra de primeira linha, com episódios muito belos, seresteiros, carnavalescos, chorados e contrastantes. O que anotei apressadamente no meu programa? “Klaus de novo, abrindo maravilhosamente os trabalhos. Não esquecer do Calloni (corne-inglês), do Tiago (trompete), o belo sax soprano do Carlos Gontijo e o clarinete do Samuel de Oliveira.”. Porra, Klaus!

Grande concerto.

Ao centro da foto, Elena Romanov, com Klaus logo atrás.
Ao centro da foto, Elena Romanov, com Klaus logo atrás, à direita | Foto: Olga Markelova Medeiros

Programa:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Concerto para piano nº 1, Op. 23
Alberto Nepomuceno: Batuque
Heitor Villa-Lobos: Choros n° 6

Regente: Carlos Prazeres
Solista: Guigla Katsarava (piano)

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Ospa nas igrejas ou Nada é o que parece ou Concerto de Gatinhos

Ospa nas igrejas ou Nada é o que parece ou Concerto de Gatinhos
Clarke: revirando-se no túmulo
Clarke: revirando-se no túmulo

Nossa, que chuvarada a de ontem à noite! E que acústica horrível e gritona a da Igreja dos Navegantes! Quando o excelente oboísta Javier Balbinder começou a ensaiar sozinho no palco já deu para concluir que o final da Abertura Egmont soaria como uma manada de elefantes na ponte do Guaíba. E soou mesmo.

Quando o concerto iniciou, os sismógrafos londrinos tremeram, indicando movimentos no solo abaixo da Catedral de St. Paul. É que Jeremiah Clarke revirava-se e dava socos para todo lado dentro de seu túmulo. O concerto começou com Trumpet Voluntary

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Miau!
Miau!

Desde 1940, é sabido que a obra conhecida por Trumpet Voluntary foi escrita por Jeremiah Clarke e não por Henry Purcell, como anunciou o programa da Ospa. Quando a peça foi escrita, Purcell já estava morto havia cinco anos. A peça foi escrita originalmente para cravo e chama-se Prince of Denmark’s March. De 1878 até 1940, a peça foi atribuída a Henry Purcell e chamada de Trumpet Voluntary. Tudo porque, naquele ano do século XIX, um certo William Sparkes publicou um volume chamado Pequenas Peças para o Órgão, Livro VII, No. 1 (Londres, editado por Ashdown & Parry), incluindo erroneamente a peça de Clarke como se fosse de Purcell. Esta versão chamou a atenção de Sir Henry J. Wood, que fez duas transcrições orquestrais do mesma. Aí é que apareceu o trompete e o novo nome. Antigas gravações do início do século XX cimentaram o erro. Mantido o título dado por Wood, a peça tornou-se popular em casamentos reais, mas sabe-se desde 1940 que seu autor é Jeremiah Clarke, não Purcell. Não acho muito legal errar o autor de uma obra.

Volo 1
Estou mortinho!

O pobre Clarke não foi sacaneado somente pela Ospa. Dizem os livros que “uma paixão violenta e sem esperança por uma bela senhora de uma classificação superior a sua levou-o a cometer suicídio”. Antes de se matar, ele ficou na dúvida: enforcamento ou afogamento? Como forma de decidir seu destino, ele jogou uma moeda para o alto, mas esta caiu em pé na lama. Gente, não brinco, falo sério. Em vez de considerar o fato como um sinal de que deveria desistir de seu intento, ele escolheu um terceiro método, matando-se com um tiro na cabeça nos jardins da Catedral de St. Paul, em Londres. Suicidas não têm muita chance com igrejas, mas foi feita uma exceção para Clarke, que foi enterrado na cripta da Catedral.

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Óin!
Óin! Olha o adágio de Albinoni aí, gente!

Por outro lado, com toda a razão, estava escrito no programa da Ospa: Albinoni (Remo Giazzoto) – Adagio.

Albinoni foi um compositor barroco veneziano relativamente obscuro. Então, em 1958, surgiu este “Adagio” que tem sido usado por companhias de balé, patinadores, filmes — lembram de Gallipoli, um filme de 1981 sobre a Primeira Guerra Mundial? — e, com letras, por uma série de vocalistas como Sarah Brightman, por exemplo. Esta peça é, no entanto, uma composição moderna, como salientou o maestro Tiago Flores após regê-la. Conto o caso a seguir.

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Gato mau. Será por causa de Wagner?

Manuscritos de Albinoni, incluindo uma série de partituras que nunca tinha sido publicada, estavam há muitos anos na Alemanha. Mas a biblioteca onde se encontravam foi destruída no bombardeio de Dresden, em fevereiro de 1945. Os papéis de Albinoni foram perdidos no incêndio. Porém, algumas obras do compositor tinham sido antes catalogadas por um musicólogo italiano chamado Remo Giazotto, autor de uma biografia de Albinoni. Em 1958, Giazotto introduziu esta peça como obra de seu biografado. Ele a teria reconstruído a partir de fragmentos de uma sonata.

Mas outros musicólogos tinham realizado as mesmas pesquisas e acharam tudo muito estranho. Denunciaram. Diante disso, como bom italiano enrolão, a história de Giazotto mudou um pouco. Ele passou a dizer que tinha se baseado em alguns fragmentos de uma linha de baixo que estavam num manuscrito de Albinoni. Mais: ele alegou que tinha os fragmentos. E mais: disse que eles tinham sido enviados a ele por questões de segurança, quando a biblioteca em Dresden dispersou muitos de seus tesouros… Um cidadão imaginativo, sem dúvida. É fundamental saber que os direitos autorais da peça têm apenas o nome de Remo Giazotto. E que ele, é claro, jamais mostrou os tais manuscritos.

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Bunitinho!
Soninho.

Abertura Egmont. Aqui não há erro nem má intenção, apenas curiosidades. A música incidental para a peça Egmont, de Goethe, foi composta no final de 1809 para o Court Theater de Viena. A obra de Goethe é de 1786 e refere-se à acontecimentos não contemporâneos dos autores. No século XVI, o conde Egmont, de Flandres, lidera o povo flamengo em sua revolta contra a tirania espanhola. Depois de sua captura e prisão pelos espanhóis, sua amante Clärchen tenta resgatá-lo, mas fracassa em sua tentativa e ela se suicida, ingerindo veneno. Em sua cela, Egmont tem visões da imagem da liberdade e esta é uma mulher que se parece com sua amada. Ela coloca uma coroa de louros em sua cabeça enquanto uma música militar é ouvida. Então Egmont é executado, mas leva consigo a certeza de que a liberdade irá prevalecer.

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Meus
Bunitinho…

Este foi um Concerto de Gatinhos. Lembram aquelas seleções de clássicos dos anos 70 e 80 que tinham gatinhos na capa? Ali, o Aleluia de Handel podia vir antes de Rhapsody in Blue, a qual era seguida da Abertura 1812, por exemplo. Salada semelhante foi-nos servida  na noite de ontem. A Ospa estava cheia de gatinhos, óin… Olha, eu acho que isso não cria público, acredito que este gênero de programa seja válido apenas em séries de concertos para escolas ou como eram os velhos “Concertos para a Juventude”, mas enfim. O apelido “Disco de Gatinhos” ou “Concerto de Gatinhos” é de autoria do Júlio e da D. Cristina lá da King`s Discos, esplêndida loja que ficava na Galeria Chaves. Eles não gostavam muito daquelas seleções…

Não vou avaliar o lado artístico do concerto de ontem. Era quase impossível tocar alguma coisa sem desafinar no meio daquela reverberação. Os membros da orquestra devem ter saído meio surdos de lá.

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O programa:

Com aquela chuva, queriam que não estivesse amassado?
Com aquela chuva, queriam que não estivesse amassado?

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All that mythology

Pertenço àquele grupo de pessoas que adoram de música e gravações ao vivo. Claro que uma gravação de estúdio deve ser tão perfeita quanto o possível, mas é ao vivo que o artista faz contato direto com seu público; é ao vivo e no entusiasmo causado por esta interação física que temos a expressão mais sincera e direta; é sem a mediação de engenheiros de som, produtores e outros que tais que o verdadeiro artista criará a expressão só passível de ser inventada na presença do receptor. É apenas numa apresentação ao vivo que a música pode ser maior do que quem a executa. Nesses momentos, o artista pode escolher sentimento à técnica e mandar a perfeição às favas em nome da celebração. Mas me entusiasmo e tergiverso…

Acho que nunca Porto Alegre assistiu ao Orfeu de Claudio Monteverdi (pronuncia-se montevêrdi). Por isso e pela beleza da música, foi oportuno o Concerto do StudioClio da última sexta-feira, dedicado a seleções do Orfeu entremeados com explicações de Francisco Marshall a respeito de all that mythology. Num ambiente muito tranquilo e de bom humor, a Confraria Música Antiga apresentou, na primeira parte do programa, algumas peças instrumentais e árias do primeiro grande gênio da música ocidental.

Monteverdi causou sensação com Orfeu, a primeira ópera de todos os tempos. Até aquele momento, em 1607, apenas a poesia lírica fora musicada. Os madrigais duravam de dois a quatro minutos. Então Monteverdi compôs um poema pastoral — uma fábula, como ele próprio a batizou — de uma hora e meia de duração. A tarefa não era nada simples. Ele tinha apenas que descobrir como dar coerência a uma peça com elementos e situações muito diversas por meio de uma nova forma. O que ele tinha na mão? Ora, o madrigal, o recitativo (espécie de canto falado) e sua imaginação. O que ele conseguiu em termos de dramaticidade é espetacular, apesar de utilizar estruturas muito simples e lineares. A história começa alegre e termina em tragédia — com Eurídice (diz-se, em italiano, Euridítche) no quentinho do inferno. Só um gênio com o talento dramático de Monteverdi conseguiria inventar uma nova linguagem que pudesse auxiliar a contar uma história tão cheia de variações de espírito em seu personagem principal. Há um momento especialmente complicado: aquele quando Orfeu pensa que salvará Eurídice e já está prévia e equivocadamente feliz.

A Confraria Música Antiga esteve impecável com Fernando Cordella (cravo). Cíntia de Los Santos (soprano) e Nikolaj De Fine Lichts (flautas) cometeram pecadilhos que só um IMBECIL não relevaria. Pensemos: estamos em Porto Alegre, assistindo a uma peça inédita, preparada para apenas uma noite, pois não há público para mais; ademais, sabemos que a segunda apresentação, aquela para a qual nossa triste cidade não tem público para assistir, é sempre melhor; como se não bastasse, temos uma orquestra sinfônica que só percorre o repertório mais básico, nauseante e batido. Considerando-se tudo isso, eu seria ridículo se perdesse meu tempo apontando os pequenos (mesmo) e DESCONSIDERÁVEIS erros cometidos por quem FAZ CULTURA na cidade. Ainda mais que o conjunto, o ambiente e as explicações nos colocaram perfeitamente no contexto de Monteverdi e de sua ópera.

A segunda parte de all that mythology contou com uma surpreendente e ótima peça de Francisco Marshall e Dimitri Cervo. Solis invictus foi solarmente interpretada por Cíntia de Los Santos, César Rodrigues Pereira (tenor), Dimitri Cervo (piano) e Javier Balbinder (oboé, excelente). Deixou aquele gostinho de ECM New Series no ar. Quem conhece a ECM e seus novos trabalhos sabe que este é um elogio que raros merecem, pois estamos falando ao mesmo tempo de absoluta qualidade e contemporaneidade.

Amanhã à noite (segunda-feira, 21/12), tem mais. O soprano Luísa Kurtz e o pianista Carlos Morejano vão dar um recital certamente superior à foto que acompanha o programa… Conheço o pianista Morejano — é excelente. Luísa Kurtz é colecionadora de boas críticas e pode ser ouvida na gravação abaixo, de som não muito bom, mas onde ficam claras sua potência e belos agudos. O duo está indo para a Itália e o concerto tem nome dramático: Concerto d’addio. Para que não pensemos que se trata de intenção ou ato falho, não seria melhor já deixar agendado um Concerto di ritorno? Hã? Hã?

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