Uma boa Ospa numa das últimas noites frias de 2016

Uma boa Ospa numa das últimas noites frias de 2016

Tão boa a noite de ontem. Aproveitamos bem uma das últimas noites frias de 2016. Lá vem o longo período de canícula. Fomos ao concerto da Ospa com Beatriz Gossweiler, ex-clarinetista da orquestra, hoje aposentada. Tiramos a moça de casa para que ela revisse seus colegas tocarem. O programa era o Concierto Levantino de Manuel Palau e o Concerto para Orquestra de Béla Bártok, obra que ela adora.

Sobre o concerto para violão de Palau. O Salão de Atos da Ufrgs não tem boa acústica e, no caso de concertos para instrumentos menos potentes, a coisa ainda piora. Se o violão de Fabio Zanon era audível, também estava claro que perdíamos muita coisa. Quando a orquestra entrava junto, era complicado de ouvir. E a peça era daquelas que só interessam aos violonistas. Durante a música, sentado na nossa tradicional fila P, olhei para o lado esquerdo, duas pessoas dormiam; olhei para o direito, uma. Muito melhor foi o bis, quando Zanon tocou a Dança Espanhola nº 5 – “Andaluza”, de Granados. Aí sim, em versão solo, apareceu o grande e sofisticado solista que já conhecia. Quem não sabe que precisamos de uma Sala Sinfônica em nossa cidade? Aliás, no jantar após o concerto, lembramos daquelas pessoas que rejeitaram o atual Shopping Total como local para a Ospa. Lembramos que o democratismo de resultados nulos do então prefeito José Fogaça deu enorme espaço àqueles imbecis dos “Amigos da Rua Gonçalo de Carvalho” que gritavam que “resistir é preciso”. Resistir à Cultura é preciso.

Abaixo, coloco para vocês o que ouvimos no bis. Vale muito a pena clicar.

O Concerto para Orquestra foi composto num período difícil da vida de Bartók. Ele estava desde 1940 exilado nos EUA, após assumir corajosamente posições públicas de condenação à políticas nazistas. O húngaro experimentava sérias dificuldades econômicas, de adaptação e também de saúde — sofria com a leucemia que o levaria à morte em 1945. Doente e muito pobre, sobrevivia graças à ajuda de amigos, que lhe faziam encomendas. E ele só respondia com obras-primas. Uma destas encomendas foi do regente russo Serge Koussevitzky, que dirigiu a Sinfônica de Boston por 25 anos. Este encomendou uma obra para orquestra, “do jeito que você quiser”.

Bartók compôs a peça em um curto período de trabalho intensivo, de agosto a outubro de 1943. Fazia dois anos que não escrevia nada. Estreada no ano seguinte – em 1º de Dezembro de 1944, no Carnegie Hall de Nova Iorque, com Serge Koussevitzki regendo a Orquestra Sinfônica de Boston –, a obra foi um enorme sucesso de público. Calculando bem para evitar um confronto com Mahler e com a Sagração, Koussevitzki descreveu o Concerto para Orquestra como a melhor obra orquestral dos últimos 30 anos.

“O surpreendente título deste trabalho — Concerto para Orquestra — indica a intenção de tratar os instrumentos individualmente ou em grupos de forma concertante ou solista. O tratamento “virtuose” aparece em vários momentos”, escreveu Bartók, que esteve presente à estreia. Bartók utilizava a proporção áurea em suas composições, na forma da Sequência de Fibonacci. Como leigo, não sei localizá-la, mas é fato que ouço em suas obras extrema lógica e proporção. A estrutura do Concerto para orquestra é semelhante à da 7ª Sinfonia de Mahler. Ambas têm cinco movimentos simétricos. Em Bartók, o movimento central é lento (Elegia), em Mahler é um scherzo. Em Bartók, o segundo e o quarto movimentos são scherzi, em Mahler são “músicas da noite”. E ambos iniciam suas obras com movimentos lentos e as finalizam na maior festa.

Os dois scherzi de Bartók são dignos do nome. São brincadeiras de verdade. No primeiro, Giuoco delle coppie (Jogo das Duplas), os instrumentos entram em duplas, claro. Se ouvir é ótimo, ver ao vivo é muito melhor. A música passa de uma dupla à outra de modo muito cênico. E como estiveram bem a dupla de oboístas — Javier Balbinder e Rômulo Chimeli — e de flautistas — Artur Elias Carneiro e Ana Carolina Bueno!  No outro scherzo, há uma curiosidade. Bartók tinha ouvido a 7ª Sinfonia, “Leningrado”, de Shostakovich no rádio, quando estava no hospital. Esta é uma sinfonia sobre a guerra que tanto estava fazendo sofrer Bartók. Pois sabem que ele roubou o tema da Marcha de Shosta, transformando-o em algo quase irreconhecível é cômico? Pois é.

Animado com o resultado de seu Concerto, Bartók reviveu, voltando a compor. Apressou-se para completar sua Sonata para Violino Solo — outra obra-prima — encomendada por Yehudi Menuhin e o último dos seus notáveis três Concertos para Piano, além de aceitar uma nova encomenda para escrever um Concerto para Viola para William Primrose, o qual ficou incompleto em poucos compassos. A leucemia venceu-o em 1945.

A imensa repercussão do Concerto para Orquestra levou o público a ser menos, digamos, hostil para com os trabalhos anteriores de Bartók. E eles passaram a integrar o repertório das salas de concerto. Lembro que quando li Solo de Clarineta — revejo de memória a fonte do livro e penso que talvez tivesse sido em O Senhor Embaixador — , de Erico Verissimo, ele citava os Quartetos de Bartók como as maiores obras musicais do século XX. Não sei, mas podem ser sim.

Falarei pouco sobre a execução de ontem. O resultado seria melhor se o excelente maestro Nicolas Rauss tivesse recebido mais tempo para trabalhar. É impossível preparar de quinta para terça uma peça difícil como o Concerto. Só que Rauss obteve um resultado excepcional, juntamente com a Ospa. Ainda que um pouco estropiada, a música e o espírito de Bartók estavam lá. Rauss é um mestre. Putz, deve ter se esforçado muito,

Depois do concerto, rimos muito durante o jantar — não, não rimos do concerto –, mas esta é outra história.

Bartók: grande música e uma saudação para Shostakovich
Bartók: grande música e um alô para Shostakovich

Um excelente concerto bachiano que acontecerá novamente amanhã

Um excelente concerto bachiano que acontecerá novamente amanhã

Eu não tinha muita fé na coisa. Domingo passado, no início da noite, fui ao Concerto de Aniversário de 80 anos de uma comunidade luterana ali na João Obino. Tudo porque estavam tocando um Bach que eu adoro – a Cantata BWV 137 – , mais a Glória de Vivaldi, um Telemann e uma pequena e expressiva obra coral de Mendelssohn. Também tinha um interesse extra e nada secundário que devo declinar ao longo do texto, mas, enfim, lá fui eu, apesar de estar perdendo mais um jogo do time de giovanni luigi Calvário.

A primeira surpresa é que, apesar de ter chegado quinze minutos antes do horário, a igreja estava lotada. Sentei numa cadeira extra, dessas brancas, de plástico, que parecem que podem cair a qualquer momento. A função iniciou pontualmente. A congregação – é assim que chamamos a plateia de uma igreja, os fiéis, não? – começou a cantar um hino onde reconheci a melodia-base da Cantata de Bach que viria logo a seguir, certamente uma tradicional melodia luterana. A surpresa é que a plateia cantava com entusiasmo e estranha afinação. Será que os alemães ou os luteranos já vêm com afinação e espírito bachiano pré-instalados? A verificar. Claro que eles cantam melhor que o comum dos mortais. A segunda surpresa é que a acústica da pequena igreja era boa, uma raridade em Porto Alegre.

Passados os primeiro e bons sustos, veio a Gloria, RV 589, de Vivaldi. A música é bonita, conhecidíssima e foi muito bem tocada. Mesmo com uma orquestra formada de improviso, o trabalho do regente Manfredo Schmiedt voltou a aparecer. A orquestra desempenhava bem seu papel e os cantores Elisa Machado, Rose Carvalho, Eduardo Bighelini e Ricardo Barpp mostravam suas habituais competências. Sobrava cantor.

Depois veio Jauchzet ihr Himmel, de Telemann, uma obrinha curiosa que não conhecia. E o filé estava logo ali, vindo.

Collegium-Aureum-C04-3a[Orbis-LP]E chegou. A Cantata BWV 137 Lobe den Herren, de J. S. Bach, recebeu minha admiração mais profunda desde que a conheci naquele vinil da Harmonia Mundi alemã com o Tölzer Knabenchor e a compreensiva regência de Franzjosef Maier. É daquelas pequenas joias que Bach deixou escondidas entre obras maiores. Não há nada que não seja absolutamente perfeito nela. Cioran não disse que foi Bach quem inventou Deus? Deve ter sido mesmo. O primeiro coral saiu belíssimo , mas estava me preparando para a ária para contralto, violino solo e contínuo que viria logo a seguir.

E aqui completo o motivo de minha ida ao concerto, de meu abandono do futebol e da leve indireção da qual sou refém aos finais das tardes de domingo. (Ah, o dia seguinte, a segunda-feira… Como voltar ao trabalho? De onde recomeçar e para quê? Por que não seguir desfrutando a vida e descansando como a mente e o corpo pedem de forma tão persuasiva?)

Mas tergiverso. A linda voz de contralto de Rose Carvalho foi acompanhada pelo solo de Elena Romanov. A Elena – spalla da orquestra e, para quem não sabe, minha namorada, o que me torna certamente suspeito – já tinha me dito: “Coube a mim acompanhar a Rose, que tem uma voz incrível, gosto muito”. A mim cabia apenas ouvi-las. A ária é realmente estupenda, com o solo de violino ornamentando a melodia cantada pelo contralto, que é uma variação do coral inicial e da melodia entoada pela congregação lá no início. Fechei os olhos e realmente fiquei feliz com o que ouvi. Foi maravilhoso e um ateu sabe a quem agradecer aqui na terra. Obrigado, Manfredo, Rose e Liênatchka – sim, este é o “diminutivo” de Elena em russo. Afinal, fui eu quem encheu o saco da Lienka – outro diminutivo, menos carinhoso – para que ela aceitasse o convite…

Sim, este foi o momento da ária a que me referi acima.
Este é um registro fotográfico da ária a que me referi acima. À esquerda do maestro, Elena; à direita, o baixo contínuo acompanhando Rose. (Clique na foto para ampliar)

Depois veio a ária para soprano e baixo acompanhados pelos oboés de Rômulo Chimelli e Anelise Kindel e a ária para tenor com o Bighelini, os violoncelos e os comentários do Elieser Ribeiro no trompete. Tudo foi muito bonito até o coral que fecha a Cantata.

No final, o coral envolveu a congregação e cantou o Verleih uns Frieden gnädiglich, de Mendelssohn, que tem início soturno a cargo do operoso violoncelo de Fábio Chagas e do contrabaixo de Renate Kollarz até que o coral alivia o peso.

Na saída, eu esperava por Elena e via na cara das pessoas o sucesso do concerto. E tudo isso que aconteceu em Porto Alegre será repetido amanhã (sábado, 30/11) na Capela da Ulbra, em Canoas, às 20h. Vão lá! Quem for, não vai dizer que eu sou suspeito e menti, tenho certeza.

(A Elena detesta aparecer fora do ambiente musical– “Milton, tu não és nada discreto. Liênatchka, por exemplo, pra quê?” – e vai querer me matar por este merecido texto. Intimamente, desejo-me sorte nos momentos da pós-leitura dela…)