Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (IV): os cartazes das ruas

Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (IV): os cartazes das ruas

Hoje, os cartazes estão nas galerias e museus de arte do mundo inteiro, mas nos primeiros anos da Revolução, eles estavam nas ruas. Para se consolidar politicamente, a Revolução de Outubro precisava vencer também no âmbito das ideias, fazendo proselitismo diário. Os novos valores precisavam ser difundidos na cidade e no campo, assim como também o culto à personalidade de seus líderes. Operários, camponeses, estudantes, soldados, intelectuais e a sociedade em geral eram o alvo deles, que invariavelmente traziam imagens e linguagem diretas. Entre 1905 e 1955, houve uma verdadeira revolução visual. Após este período, já sem a força da novidade, os cartazes seguiram tentando demonstrar os acertos da Revolução e a necessidade de chegar ao encontro do Comunismo. Eles se tornaram onipresentes na União Soviética.

Desenhistas preparam os cartazes para o 1º de maio de 1929. Foto: Tate Modern

Enquanto o Ocidente vivia o expressionismo, o cubismo, o futurismo, o abstracionismo, o dadaísmo, o surrealismo, e a pop-art, entre outros, o Partido Comunista defendia o Realismo Socialista, tornado absoluto por Stálin nos anos 30 e por Jdanov no pós-guerra. Assim, a grande importância dada ao trabalho de propaganda criou uma nova estética. A célebre Tate Modern, de Londres, por exemplo, dedica uma grande sala à arte da propaganda russa.

Foto: Tate Modern, Londres

Claro que são milhares e milhares de cartazes dos quais escolhemos apenas 38. Veja amostra abaixo:

Leia mais:
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (II): Serguei Prokofiev
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (III): Mikhail Bulgákov, o homem que recebia ligações de Stálin

“Meu filho, vá salvar a pátria” (Cartaz do Exército Branco, contrário aos bolcheviques que venceram a Revolução)
“O Wrangel ainda está vivo, matem-no sem piedade” (o General Wrangel era um dos principais líderes do Exército Branco)
Cartaz de 1920, durante a Guerra Civil: “Você já se alistou voluntariamente no Exército Vermelho?”
Cartaz de 1920 do artista plástico Lebedev. É uma poesia com rima que diz: “Precisamos trabalhar com a arma sempre por perto” (Maiakovski)
“A glória da Grande Revolução Socialista de Outubro!”
“Glória à revolução de outubro! Abaixo o poder do capital!”
“Glória à Pátria de Outubro!”
“Glória à Revolução Socialista de Outubro!”
“Vivemos conforme as ordens de Outubro, o fogo da aurora está no nosso olhar”, Maiakóvski
“Glória aos heróis do povo do Glória aos heróis do povo do Potemkim!”
“Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo”, frase do Manifesto Comunista de Marx e Engels
“Viva a Revolução Socialista!”
“Esteja pronto para o trabalho e para a defesa do país!” (Com sugestões de exercícios e frase motivacional para praticar todos os dias)
“O fascismo é o pior inimigo da mulher. Todos na luta contra o fascismo!”
“Os soviéticos lutam contra os bandidos — quando não tem punição, a bandidagem cresce”
“Glória aos 5 anos da Grande Revolução do Proletariado — 4º Congresso Internacional Comunista”
“Glória Internacional Outubro Vermelho”
“Lênin viveu, Lênin vive, Lênin viverá!”, Maiakovski
“Camarada, venha juntar-se ao nosso kolkhoz!”
“Mulheres liberadas constroem o Socialismo”
“O que a Revolução de Outubro deu para trabalhadores e camponeses”
Montagem som o poeta Maiakóvski: “Proletários de todos os países, uni-vos”
Um cartão postal: “Glória à Outubro!”
“Revolução de Outubro”
“Glória à Revolução Socialista de Outubro!”
Glória aos grandes líderes de Outubro
Com poema de Maiakóvski: “Come ananás / mastiga perdiz. / Teu dia está prestes, / burguês
O Grande Timoneiro nos guia de uma vitória a outra
“7 de novembro de 1941, quando o Exército alemão estava próximo de Moscou, aconteceu a tradicional parada militar na Praça Vermelha e, naquele dia, não havia notícia mais importante no mundo: ‘Os russos estão marchando’”
“As mulheres dos kolkhozes são grande força — Não falar nelas é um crime”
“Mulheres, estudem todo o processo de produção para substituir os trabalhadores que foram para a guerra. Quanto mais forte a retaguarda, mais forte o front”
“Revolução de Outubro — Uma ponte para o futuro brilhante”

“Revolução de Outubro — Uma ponte para o futuro brilhante”
“Viva a Internacional Comunista”
“Vamos logo com isso!”
“Combata a embriaguez!” (em forma de porco, uma garrafa de vodka)
“Feliz Grande Outubro!”

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Dmitri Shostakovich (VIII – Final)

Na primeira parte do último texto, escreverei uma pequena introdução sobre meu diletantismo radical de escolher um compositor para passar centenas de horas a lê-lo e ouvi-lo. Há muita coisa boa e muita porcaria publicada. Já as gravações são quase todas boas. Ele não é compositor para músicos diletantes…

Os piores textos vêm daquelas alas que atribuem ou buscam descobrir alguma posição política no homem e na obra. Tais posturas, encontráveis tanto à direita quanto à esquerda, com predominância daquela, servem apenas para mostrar a ideologia de quem escreve, o que, convenhamos, pouco interessa neste caso. Depois de muito ler, fica clara a grande e falsa exposição que Shostakovich obteve durante da Guerra Fria, no Oriente e no Ocidente. Ambos os lados o utilizaram como exemplo de suas teses. Ele e outros intelectuais soviéticos foram espécies de caixas pretas nas quais se podia adesivar as mais diversas opiniões e posições. Não, Shostakovich nem representava o governo soviético, nem esteve ao lado dos dissidentes Soljenítsin e Sakharov. Se teve inúmeras oportunidades de permanecer no Ocidente e não o fez (argumento da esquerda), também sofreu horrores com Jdanov, Stálin e mesmo depois (argumento da direita); se escreveu ironias ao estado soviético (Cantata Rayok, argumento da direita), também cantou o heroísmo da revolução em obras não encomendadas. Shostakovich parece-me ter sido alguém cujo pensamento político possuía pouca relevância e que agia sempre como artista e ponto. Só isso? Não, em minha opinião, ele era um comunista muito crítico e reto, com uma complexa relação de amor e ódio ao poder da URSS. Apenas Stálin era cem por cento abominado. Era um artista, não um político; não seguia as linhas tortuosas, às vezes indefensáveis, que os partidos frequentemente defendem. Utilizou-se de temas de sua época, porém a perspectiva sob a qual via o mundo era, curiosamente, sempre foi a dos mortos. Dos mortos pelos nazistas, pelos anti-semitas, pelos soviéticos, por Stálin ou pelo passar do tempo, como em toda sua obra final. Como escreveu Fernando Monteiro, toda grande obra gira em torno de três temas: Amor, Deus e Morte. Acho que Shostakovich, teve muito a dizer sobre todos, principalmente sobre os dois últimos temas; o primeiro pela inexistência, o segundo pela onipresença.

Aliás, com o passar do tempo — o qual tem o bom costume de fazer aparecer a verdade e o pouco recomendável hábito de fazer desaparecer nossos pobres corpos –, a discussão sobre o pensamento político de Shostakovich tornar-se-á ociosa e ficará o que interessa: o homem e o compositor; e este era um sujeito brilhante e produtivo, deprimido e eufórico, que torcia interminavelmente os dedos, como mostram os filmes soviéticos, sentado num trem olhando a chuva bater na janela; que homenageava a pureza de alguns revolucionários e criticava ou expelia seu amargor e sarcasmo aos governantes; que permanecia parado por horas em silêncio com os amigos de que gostava — e só com eles.

Por falar em gostar, o que gosto em Shostakovich é sua música. Ela é produto de um artista apaixonado e inacreditavelmente produtivo. A forma com que ele se relacionou com seu tempo serviu à sua música e não o contrário. Escrevia para ser compreendido e para expressar-se, mas não tinha ilusões de mudar seu país e o mundo, que é como parece pensar quem só vê política na arte de Shostakovich. Sua música, antiquada para os modernos e moderna para os anacrônicos (sem ofensas, sem ofensas…), consegue ser visceral e cerebral, e concordo com este artigo quando seu autor fala no quanto a audição de Shostakovich demandou-lhe subjetivamente. Não é música para ser assimilada nas primeiras abordagens e nem esquecida facilmente. São experiências oferecidas por alguém disposto a buscar tudo o que estivesse à mão para expressar o que desejava e que produziu uma obra séria, sarcástica, deprimente, divertida, inteligente, lúdica e extraordinária: às vezes, tudo ao mesmo tempo.

A seguir, comento as três últimas grandes obras de Shostakovich.

Quarteto de Cordas Nº 14, Op. 142 (1972-73)

Este é quase um quarteto para violoncelo solo e trio de cordas, tal é a proeminência dada àquele instrumento. É um quarteto inspiradíssimo, escrito em três movimentos (Allegretto – Adagio – Allegretto), e que tem seu centro dramático em um dilacerante adagio de 9 minutos. Não consigo imaginar uma audição deste quarteto sem a audição em seqüência do Nº 15. Eles, que costumam aparecer juntos, seja em vinil ou em CD, formam, em minha imaginação, uma só música.

Quarteto de Cordas Nº 15, Op. 144 (1974)

Este trabalho, assim como a sonata a seguir, são tidas como obras-primas e seriam os dois principais “réquiens privados” de Shostakovich. Concordo.

O que dizer de um obra escrita em seis movimentos, em que quatro deles são adagio e os outros dois são adagio molto, sendo que, destes dois últimos, um é uma marcha funeral e outro um epílogo…? Ora, no mínimo que é lenta. Porém, como estamos falando do Shostakovich final, estamos falando de uma obra que tem como fundo a morte. Há três movimentos realmente notáveis nesta música: a Serenata: Adagio, a Marcha Fúnebre – Adagio Molto e o musicalmente espetacular Epílogo – Adagio Molto. O Epílogo recebeu vários arranjos sinfônicos e costuma aparecer — separadamente ou não do resto do quarteto — em gravações orquestrais.

Sonata para Viola e piano, Op. 147 (1975) – A Última Composição

Esta é a última composição de Shostakovich e uma de minhas preferidas. Ele começou a escrevê-la em 25 de junho de 1975 e, apesar de ter sido hospitalizado por problemas no coração e nos pulmões neste ínterim, terminou a primeira versão rapidamente, em 6 de julho. Para piorar, os problemas ortopédicos voltaram: “Eu tinha dificuldades para escrever com minha mão direita, foi muito complicado, mas consegui terminar a Sonata para Viola e Piano”. Depois, passou um mês revisando o trabalho em meio aos novos episódios de ordem médica que o levaram a falecer em 9 de agosto.

Sentindo a proximidade da morte, Shostakovich escreveu que procurava repetir a postura estóica de Mussorgsky, que teria enfrentado o inevitável sem auto-comiseração. E, ao ouvirmos esta Sonata, parece que temos mesmo de volta alguma luz dentro da tristeza das últimas obras. A intenção era a de que o primeiro movimento fosse uma espécie de conto, o segundo um scherzo e o terceiro um adágio em homenagem a Beethoven. O resultado é arrasadoramente belo com o som encorpado da viola dominando a sonata.

Os primeiros compassos da Sonata ao Luar, de Beethoven, uma obra que Shostakovich frequentemente executava quando jovem pianista, é citada repetidamente no terceiro movimento, sempre de forma levemente transformada e arrepiante, ao menos no meu caso… O scherzo possui uma marcha e vários motivos dançantes, retirados de uma outra ópera baseada em Gógol — seria sua segunda ópera composta sobre histórias do ucraniano, pois, na sua juventude ele já escrevera O Nariz (1929) — que tinha sido abandonada há mais de trinta anos. Outras alusões são feitas nesta sonata. Há pequenas citações da 9ª Sinfonia (de Shostakovich), da 4ª de Tchaikovski, da 5ª de Beethoven, da Sonata Op.110 de Beethoven, de Stravinsky, Mahler e Brahms. E a abertura da Sonata utiliza trecho do Concerto para Violino de Alban Berg, também conhecido pelo nome de “À memória de um anjo”, o qual é dedicado à filha de Alma Mahler, Manon, morta aos 18 anos, com poliomielite.

Creio não ser apenas invenção deste ouvinte- – há uma constante interferência do inexorável nesta música, talvez sugerida pela intromissão de temas de outros compositores na partitura, talvez sugerida pela atmosfera melancólica da sonata, talvez por meu conhecimento de que ouço um réquiem. O fato é que Shostakovich estava aguardando.

Shostakovich morreu sem ouvir a sonata, que foi estreada num concerto privado no dia 25 de setembro de 1975, data em que faria 69 anos.

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Dmitri Shostakovich (III)

Música (de Anna Akhmátova)

Dedicado a Dmitri Shostakovich

Algo de miraculoso arde nela,
e fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar,
depois que todos os outros ficaram com medo de se aproximar.
Depois que o último amigo tiver desviado o olhar,
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores tivessem começado a falar.

Seguimos nossa série iniciada aqui e continuada ali.

Quinteto para piano, Op. 57 (1940)

A música perfeita. Irresistível quinteto escrito em cinco movimentos intensamente contrastantes. Seu estilo é clássico, porém raramente todos os integrantes tocam juntos, a não ser no agitado scherzo central. O prelúdio inicial estabelece três estilos distintos que voltarão a ser explorados adiante: um dramático, outro neo-clássico e o terceiro lírico. Todos os temas que serão ouvidos nos movimentos seguintes apresentam-se no prelúdio em forma embrionária. Segue-se uma rigorosa fuga puxada pelo primeiro violino e demais cordas até chegar ao piano. Sua melodia belíssima e lírica que é seguida por um scherzo frenético. É um choque ouvir chegar o intermezzo que traz de volta a seriedade à música. Apesar do título, este intermezzo é o momento mais sombrio do quinteto. O Finale, cujo início parece uma improvisação pura do pianista, fará uma recapitulação condensada do prelúdio inicial.

O Quinteto para piano recebeu vários prêmios que não vale a pena referir aqui, mas o mais importante para Shostakovich foi a admiração que Béla Bartók dedicou a ele.

Sinfonia Nº 7, Op. 60, Leningrado (1941)

De história riquíssima, a Sinfonia Nº 7 – dedicada à resistência da cidade de Leningrado cercada pelos nazistas – deve sua celebridade a uma transmissão de rádio feita para a cidade devastada e sitiada. Ela auxiliou as autoridades soviéticas a elevar o moral em Leningrado e no país. Várias outras performances foram programadas com intenções patrióticas na União Soviética e na Europa. É música de primeira linha, sem dúvida, mas creio que a notável Sinfonia Nº 11, tão superior à sétima, é tão mais eficiente como musica programática de conteúdo histórico, que torna falso qualquer grande elogio. De qualquer maneira, é esplêndido o primeiro movimento que descreve a marcha nazista. Também é importante salientar o equívoco do grande público que vê resistência e patriotismo numa obra sobre a devastação e a morte. Mas, como diria Lênin, o que fazer?

Mais? Mais! Imaginem uma cidade cercada por alemães há 18 meses, uma orquestra improvisada vestida com suéteres e jaquetas de couro, todos magérrimos pela fome, a rádio transmitindo o concerto, várias cidades soviéticas estreando a obra ao mesmo tempo, Arturo Toscanini — anti-fascista de cabo a rabo — pedindo a partitura nos Estados Unidos (ela foi levada de avião até Teerã, de carro ao Cairo, de avião à Londres, de onde um outro avião da RAF levou a música ao maestro), Shostakovich na capa da Time. Ou seja, a Sétima é importante. Nos EUA, em poucos meses, foi interpretada por Kussevítki, Stokovski, Rodzinski, Mitropoulos, Ormandy, Monteaux, etc. Um espanto.

Numa das maiores homenagens recebidas por uma obra musical, Anna Akhmátova escreveu o seguinte poema ao ser posta à salvo das bombas alemãs pelas autoridades soviéticas:

Todos vocês teriam gostado de me admirar quando,
no ventre do peixe voador,
escapei da perseguição do mal e,
sobre as florestas cheias de inimigos,
voei como se possuída pelo demônio,
como aquela outra que,
no meio da noite,
voou para Brocken.
E atrás de mim,
brilhando com seu segredo,
vinha a que chama a si mesma de Sétima,
correndo para um festim sem precedentes.
Assumindo a forma de um caderno cheio de notas,
ela estava voltando para o éter onde nascera.

Pois é. Mas falemos a sério: não é a maior sinfonia de Shosta. Fica atrás da oitava, décima, décima-primeira, décima-terceira, décima-quarta e décima-quinta. Mas que é famosésima, é.

Sinfonia Nº 8, Op. 65 (1943)

Esta enormidade musical é também muito admirada, mas é música que, apesar de não ser nada má, perderá para suas irmãs gêmeas compostas depois, dentro do mesmo espírito. Gosto muito da beleza austera do quarto movimento em 12 variações – uma passacaglia – e também dos dois primeiros, com destaque para o divertido diálogo entre o piccolo, o clarinete e o fagote do scherzo. Apenas não suporto o terceiro movimento, de efeito fácil e heroico, cuja melodia entoada pelo trompete poderia ser suprimida. (Hoje, discordo de minha avaliação).

Quarteto de Cordas Nº 2, Op. 68 (1944)

Este trabalho em quatro movimentos foi escrito em menos de três semanas. A abertura é uma melodia de inspiração folclórica, tipicamente russa. O grande destaque é o originalíssimo segundo movimento, Recitativo e Romance: Adagio. O primeiro violino canta (ou fala) seu recitativo enquanto o trio restante o acompanha como se estivessem numa ópera ou música sacra barroca. O Romance parece música árabe, mas não suficientemente fundamentalista a ponto que a Al Qaeda comemore. Segue-se uma pequena valsa no mesmo estilo. O quarto movimento é um Tema com variações que fecha brilhantemente o quarteto.

É curioso que neste quarteto, talvez por ter sido composto rapidamente, há uma musicalidade simples, leve e nada forçada. Talvez nem seja uma grande obra como os Quartetos Nros. 8 e 12, mas é dos que mais ouço. Afinal, esta é uma lista pessoal e as excentricidades valem, por que não?

Sinfonia Nº 9, Op. 70 (1945)

Desde Schubert, com sua Sinfonia Nº 9 “A Grande”, passando pela Nona de Beethoven e pelas nonas de Bruckner e Mahler, que espera-se muito das sinfonias Nº 9. Há até uma maldição que fala que o compositor morre após a nona, o que, casualmente ou não, ocorreu com todos os citados menos Shostakovitch. Esta sinfonia — por ser a “Nona” — foi muito aguardada e, bem, digamos que não seria Shostakovitch se ele não tivesse feito algo inesperado. Stálin ficou muito decepcionado com ela.

Leonard Bernstein lia esta partitura dando gargalhadas desta piada músical, cujas muitas citações formam um todo no mínimo sarcástico. O compositor declarou que faria uma música que expressaria “a luta contra a barbárie e grandeza dos combatentes soviéticos”, mas os severos críticos soviéticos, adeptos do realismo socialista, foram mais exatos e apontaram que a obra seria debochada, irônica e de influência stravinskiana. Bingo! Na verdade é uma das composições mais agradáveis que conheço. O material temático pode ser bizarro e bem humorado (primeiro e terceiro movimentos), mas é também terno e melancólico (segundo e largo introdutório do quarto), terminando por explodir numa engraçadíssima coda.

Apesar dos cinco movimentos, é uma sinfonia curta, muito parecida em espírito com a primeira sinfonia “Clássica” de Prokofiev e com a Sinfonia “Renana” de Schumann, também em cinco movimentos.

Deixando de lado a geopolítica soviética e detendo-se na obra, podemos dizer que esta Nona é uma consciente destilação de experiências e, talvez uma reação, muito cuidadosamente considerada, contra as enormidades musicais oriundas da guerra das duas sinfonias anteriores.

Cá entre nós, é puro divertimento.

Concerto para Violino, Op. 77 (1947-48)

Como o Quinteto, outra obra-prima. É incrível que este concerto tenha recebido tão poucas gravações. Quando Maxim Vengerov e Mstislav Rostropovich o gravaram em 1994 para a Teldec, o resultado foi que o CD acabou sendo considerado o melhor do ano pela revista inglesa Gramophone e também, se não me engano, pela francesa Diapason. Dedicado a David Oistrakh, teve sua estréia realizada apenas em 1955, em razão dos problemas que o compositor arranjou com Stalin e com o Relatório Jdanov, já discutidos na primeira parte desta série.

Shostakovich o considerava uma sinfonia para violino solo e orquestra. A comparação é apropriada. Não apenas a estrutura em quatro movimentos, mas também sua longa duração (40 minutos), são exageradas para o comum dos concertos. Apesar de termos aqui a primeira e significativa aparição de melodias baseadas no motivo DSCH – o que será melhor explicado no comentário da Sinfonia Nº 10 -, apesar de tal tema aparecer no segundo movimento, esta obra tem seu coração no terceiro movimento Passacaglia – Andante. São nove variações sobre o mesmo tema em que somos lentamente levados do clímax para a calma e não ao contrário, o que é mais comum. A orquestra vai pouco a pouco deixando a voz individual do violino levar a música até uma longa cadenza, que alguns consideram um movimento a parte que se liga organicamente ao movimento final. Um espanto!

24 Prelúdios e Fugas, Op. 87 (1950-51)

A força simbólica da música de câmara deixada por Shostakovitch e a carga alegórica nela contida fazem uma pausa aqui. O fato de escolher o gênero do prelúdio e fuga, escrevendo precisamente 24 deles, vale como um magnífico juramento de lealdade a Bach, o pilar fundamental da música de todos os tempos, que fixou o mesmo número de peças em cada um dos dois cadernos do Cravo bem temperado.

A audição desta obra — escrita logo após o Relatório Jdanov — mostra-nos como o compositor concentrou-se em sua arte no momento em que sua obra não podia ser executada na União Soviética. O resultado é altamente pessoal, rigoroso e comovente. Não lembro de outro compositor que tenha feito homenagem maior a Bach. É um Shostakovitch contido e calmo, fazendo música absoluta da melhor qualidade. Quem conhece um pouco a história da música, ficará emocionado e feliz com a audição desses prelúdios e fugas que procuram aproximar-se, moderna e contemporaneamente, do maior de todos os compositores. O resultado é esplêndido, coisa de gênio.

Uma curiosidade: para executar esta obra completa, que dura, em média, 140 minutos, os pianistas normalmente utilizam duas noites. E sim, não é qualquer amador que pode enfrentá-la.

Bibliografia: quase tudo de memória, apoiado por algumas capas de CD.

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Dmitri Shostakovich (I)

Pois hoje é o Dia Mundial da Música! Então inicio uma série sobre Dmitri Shostakovich que publicarei a cada sexta-feira, OK?

A música pode ser amarga, jamais pode ser cínica.

DMITRI SHOSTAKOVICH


Muitíssimas vezes, quando ouvimos Shostakovich (1906-1975), sentimos certa estranheza, notamos intenções ou um torna-se palpável uma enorma revolta e desconforto. Percebe-se que o drama e os contrastes apresentados referem-se a acontecimentos externos, sejam de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas e da vida pessoal do compositor. Isto já pode ser notado desde a sua Sinfonia Nro. 1, composta antes dos vinte anos e que o deixou célebre internacionalmente antes mesmo de finalizar seus estudos.

Vamos começar esta série pela parte mais difícil: as relações do músico com o poder. Aqui há três pontos importantes para a compreensão de Shostakovich. O Ocidente costuma simplificar os fatos conferindo ao autor a condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais “enganos” datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje. Aqui, procurarei equilibrar as coisas através de leituras mais recentes que fiz. Procurarei expor os fatos políticos e tomarei partido apenas da obra do compositor, a qual amo apaixonadamente.

O Comunista: Shostakovich foi, certamente, um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda, ou a alegria e  o sarcasmo. A segunda de suas sinfonias (A Revolução de Outubro, de 1927), apesar de fraca, pertence às obras autênticas, já a décima-segunda (À Memória de Lênin, de 1961) parece ter sido obra de um autor amargo, sarcástico e que  estava mandando provisoriamente sua obra às favas.  No início de sua carreira de compositor, Shoatakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre, antes de renunciarem a suas esperanças, às vezes de forma trágica. Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não estava preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de fugir. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora do país, também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra … Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades que o compositor teve para emigrar – não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas nunca foi o dissidente típico. Seus problemas eram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país e não com aquilo que a imprensa ocidental desejava.

A Morte: Após a doença, Shostakovich era obcecado pela idéia da morte. Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Trio Nº. 2, Op. 67, de 1944, a Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e a melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão numa conta do geopolítico…

O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da União Soviética. Sob este aspecto, era ele quem enganava-se. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e… músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos depois da morte de Lênin.

Shostakovich sofreu gravemente três vezes os efeitos de restrições a seus trabalhos. 1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém, em minha opinião, os detalhes jocosos da primeira proibição superam em muito o que ela tem de funesto para sua carreira. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Lady Macbeth de Mtsensk — baseada na esplêndida novela de Nikolai Leskov e só encontrável em espanhol (recomendo a leitura) — conta como uma mulher se tornou assassina por amor e demonstra que, se ela foi levada a cometer crimes, a causa estava no comportamento odioso de suas vítimas, na realidade autênticos carrascos. Sim, uma distorção pero no mucho do Macbeth original. Stálin, que era um grande apreciador de óperas e ouvinte de música erudita, detestou-a. Mostrou-se chocado com o erotismo de certas cenas, com a complicada escrita vocal, com o uso brincalhão e extravagante dos instrumentos e o ritmo esbaforido da música. Chamou Lady Macbeth de “pornofonia” — termo surpreendente em qualquer época — e baniu-a de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo… É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras. Talvez Gógol imponha mais respeito que Leskov…

A segunda vez que Shostakovich entrou no index ocorreu independentemente de qualquer obra. Logo após a notoriedade internacional da Sinfonia Nº 7 — que descreve com pungência inalcançável o sofrimento passado pelo povo soviético durante o cerco de Leningrado — foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Isto ocorreu em 10 de fevereiro de 1948 e colocou no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram do repertório.

Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o ditador.

O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nro. 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar os crimes nazistas não seria problema, mas o poema de Ievtuchenko fala sobre como os soviéticos insistiam em considerar russos e ucranianos os mortos, em vez de judeus. É claro que o motivo de suas mortes era a etnia judaica e não outro. É claro, que aquele foi um episódio meio obscuro, onde há indícios de colaboração. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada.

Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram  um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.

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