Calma gente, o gato acaba bem. O novo Murakami, Abandonar um gato, é formado por cenas corriqueiras da infância e da juventude do autor. Ao longo da narrativa, Murakami também traz à tona traumas familiares e de guerra, além contar sobre sua relação com o pai, com quem passou anos sem contato. Um baita livro! Também recebemos vários CDs — saudades dos CDs, né, gente? — de Vitor Ramil e recomendamos Os Abismos, de Pilar Quintana.
Uma excelente semana com boas leituras!
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“Claro que tenho muitas lembranças do meu pai. É natural, considerando que vivemos sob o mesmo teto de nossa casa não exatamente espaçosa desde o momento em que nasci até sair de casa aos dezoito anos. E, como é o caso da maioria das crianças e pais, imagino, algumas das minhas lembranças do meu pai são felizes, outras nem tanto. Mas as memórias que permanecem mais vívidas em minha mente agora não se enquadram em nenhuma das categorias; envolvem eventos mais comuns. Quando morávamos em Shukugawa, um dia fomos à praia para nos livrar de um gato. Não um gatinho, mas uma gata mais velha. Por que precisávamos nos livrar disso, não me lembro. (…) Em casa, descemos da bicicleta – discutindo como sentimos pena do gato, mas o que poderíamos fazer? – e quando abrimos a porta da frente o gato que acabamos de abandonar estava lá, nos cumprimentando com um miado amigável.”
CDs de Vitor Ramil — Campos Neutrais / Avenida Angélica / Ramilonga – A Estética do Frio / Foi no mês que vem (coletânea)
Com preços variando entre R$ 39,90 a R$ 59,90, recebemos boa parte da obra de Vitor. Ele precisa de apresentação? Compositor, letrista, cantor e escritor brasileiro, nascido em Pelotas, Ramil é autor de doze álbuns, um melhor do que o outro. “Avenida Angélica” é seu último trabalho, onde ele coloca música em poemas de Angélica Freitas. “Foi no mês que vem” é uma coletânea de trabalhos anteriores regravadas por convidados especiais como Fito Páez, Jorge Drexler, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Pedro Aznar, os manos Kleiton e Kledir, a cantora Kátia B, o percussionista Marcos Suzano, o violonista argentino Carlos Moscardini e, entre outros, as revelações da nova geração porto-alegrense Bella Stone e seu filho Ian Ramil. Smos apaixonados por “A Estética do Frio”. Nossa que CD bom!!! Explora nossas rapizes de um modo muito especial. Para completar “Campos Neutrais” foi indicado ao Grammy Latino na categoria de “Melhor Álbum de Música Popular Brasileira”. É mole?
A menina Claudia mora com os pais em Cáli, na Colômbia, em um apartamento tomado por plantas. O ambiente, exuberante e bem cuidado, é um contraste, uma oposição à mãe indiferente que está em conflito com os caminhos de sua própria vida. Como muitas famílias, a de Claudia passa por uma crise, e basta o casamento de seus pais estremecer para que ela comece a entender a fragilidade dos limites que mantêm seu cotidiano. A partir da expectativa e de seu olhar atento e ao mesmo tempo inocente de criança, é a menina que narra os acontecimentos que abriram as fendas por onde entraram seus piores medos, aqueles que são irreversíveis e podem levar à beira dos abismos.
Leitores de todo o país estão recomendando livros, enquanto editores, escritores, livrarias e bibliotecas tentam manter a alegria na vida das pessoas
Massimo Carlotto — no The Guardian (tradução minha)
A neve cai nos telhados. O silêncio é sinistro. Apenas alguns dias atrás, este campo montanhoso na fronteira com a Áustria estava cheio de turistas. Agora está quase deserto. Suas estações de esqui, hotéis e restaurantes estão fechados. Geralmente atravessamos a fronteira para fazer compras e encher nossos tanques com gasolina que custa menos e é de melhor qualidade, mas agora a alfândega austríaca recebeu ordem de fechar. Não é mais possível passar. Não moro neste vale, mas tenho uma casa aqui para onde fujo quando preciso de paz para me concentrar na escrita — geralmente quando estou atrasada para o prazo de um romance e meu editor está começando a se preocupar. Mas agora eu prefiro ficar aqui. Não apenas porque o contato com outras pessoas é mínimo, mas porque eu quero assistir o que está acontecendo da distância certa. O coronavírus está mudando a imaginação coletiva dos italianos e nós, escritores, devemos estar em condições de registrá-lo. Eu assisto Pádua, minha cidade, via webcam. As belas praças estão desertas. Finalmente, as pessoas estão aceitando a gravidade da situação.
O bloqueio é absolutamente necessário: o sistema nacional de saúde não consegue acomodar o grande número de pacientes em terapia intensiva. A Itália está pagando o preço por cortes. Felizmente, porém, o governo teve a coragem de tomar medidas drásticas em um país que está culturalmente acostumado a interpretar regras com certa elasticidade. Parte da população, confinada em suas casas, está exalando sua ansiedade e frustração nas mídias sociais e houve incidentes como assaltos no supermercado. Mas celebridades e estrelas do esporte se uniram em uma campanha de divulgação chamada #IStayAtHome. A mensagem deles é insistente: não saia de casa.
O establishment cultural se mobilizou contra o medo: escritores, músicos, artistas, mas também editoras, livrarias e bibliotecas públicas. Todos se empenham em tornar este lar forçado menos triste e difícil.
O fechamento das livrarias foi um golpe para o mercado editorial, que está sendo mantido pelas vendas on-line, mas os leitores tomaram a iniciativa, desenvolvendo maravilhosas listas de leitura boca a boca, destacando clássicos esquecidos e autores de pequenas editoras. Houve uma ênfase em romances que se passam em momentos difíceis da história, de A Peste, de Albert Camus, e Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago.
O bloqueio deve se tornar uma ocasião para reflexão coletiva, não apenas sobre nossos próprios medos, mas também sobre grandes temas sociais, como a solidão — um dos grandes problemas, que o vírus tornou ainda mais doloroso. Solidão não faz diferença de idade ou classe social; aqueles que sofrem com isso precisam de apoio concreto e consistente, mantido ao longo do tempo. O tempo do vírus é uma página na história da Itália; está sendo escrito por muitos, com tragédias e uma miríade de exemplos práticos de solidariedade.
O hábito da leitura é transformador: melhora nosso entendimento sobre o mundo, exercita a mente e aumenta nossa capacidade criativa. Mas, uma nova pesquisa encomendada pela Amazon e conduzida pela Kelton Global Research mostrou que a leitura vai além: ela também aumenta a felicidade e ajuda a melhorar nossos relacionamentos.
O estudo foi realizado com 27.305 participantes maiores de 18 anos nos Estados Unidos, Canadá, México, Brasil, Alemanha, Reino Unido, Espanha, França, Austrália, Itália, Índia, China e Japão. A pesquisa foi online, com questionários aplicados em outubro de 2018 e janeiro de 2019. A margem de erro é de 0.6%.
Leitores frequentes são mais felizes
Nos 13 países onde a pesquisa foi realizada, 71% dos leitores que leem toda semana relataram que se sentem felizes. Entre os participantes que não leem com a mesma frequência, apenas 55% fizeram a mesma afirmação. A leitura também é vista como uma atividade de cuidado pessoal e mais de 70% dos leitores disseram que já adiaram ou cancelaram algum compromisso para ler.
Diante da crescente conectividade do mundo atual, pode ser difícil ler sem interrupções ou distrações. Mas, de acordo com a pesquisa, 45% dos participantes têm como meta deixar os smartphones e as redes sociais de lado para conseguirem ler um pouco mais. Em alguns países, as pessoas disseram que preferem ler em vez de dormir ou fazer exercícios.
Leitores usam livros para fazer novos amigos
O hábito da leitura também melhora nossos relacionamentos, pois estimula conversas significativas e conexões mais profundas entre as pessoas. Em todos os países pesquisados, 80% dos participantes concordam que a leitura ajuda a fazer amizades e 81% disseram que gostam de discutir pelo menos um aspecto do livro com outras pessoas.
Até as celebridades aproveitaram esse potencial social da leitura. As atrizes Emma Watson e Reese Witherspoon, fundaram, respectivamente, os clubes do livro “Our Shared Shelf” e “Hello Sunshine,” como uma forma de construir novas comunidades e estimular discussões importantes por meio da leitura. Essa cultura se disseminou e 60% dos participantes disseram que preferem conversar em um clube do livro a beber vinho. E cerca de 45% das pessoas sentem que a leitura lhes deu algo importante para discutir com os outros.
A leitura melhora relacionamentos amorosos
Por fim, a pesquisa concluiu que a leitura pode ser um ótimo estímulo para a paixão. Mais de 65% dos leitores concordaram que os livros são importantes num relacionamento e 41% dos casais afirmaram que discutir sobre livros foi um fator importante para que eles ficassem juntos.
Alguns participantes mostraram que realmente levam o hábito da leitura a sério: 30% questionariam a relação com base nas obras preferidas do(a) parceiro(a) e 29% pensariam em abandonar o relacionamento se o cônjuge não gostasse de ler. Entre os que já namoram ou são casados, 33% recorreram aos livros para resolver seus problemas de convivência e 40% disseram que os romances ajudaram a melhorar seus relacionamentos.
Uma palestra de Neil Gaiman explica que usar nossa imaginação e providenciar para que outros utilizem as suas é uma obrigação de todos os cidadãos.
— via The Guardian — texto completo, feito a partir da tradução do blog Indexadorae do original — dica de Elena Romanov que encontrou o texto aqui
É importante dizer de que lado estamos e o motivo, se somos ou não tendenciosos. Fazer um tipo de declaração de princípios frente à sociedade. Então, conversarei com vocês sobre leitura. Direi a vocês que as bibliotecas são importantes. Vou sugerir que ler ficção, que ler por prazer, é uma das coisas mais importantes que alguém pode fazer. Farei um apelo apaixonado para que as pessoas entendam o que as bibliotecas e os bibliotecários são e para que se preservem ambos.
E eu sou — óbvia e enormemente — tendencioso: sou um escritor, muitas vezes um autor de ficção. Escrevo para crianças e adultos. Há 30 anos me sustento através das palavras, principalmente por inventar coisas e escrevê-las. Obviamente, meu interesse é que as pessoas leiam, que elas leiam ficção, que bibliotecas e bibliotecários existam para nutrir o amor pela leitura, que haja lugares onde a leitura possa ocorrer.
Então sou tendencioso enquanto escritor. Mas eu sou muito, muito mais tendencioso como leitor. E ainda mais tendencioso como cidadão britânico.
E estou aqui dando esta palestra hoje à noite para a Reading Agency: uma instituição filantrópica cuja missão é dar a todos as mesmas oportunidades na vida, ajudando as pessoas a se tornarem leitoras entusiasmadas e confiantes. Uma instituição que apoia programas de literatura, bibliotecas e indivíduos, que abertamente incentiva o ato da leitura. Porque, eles nos dizem, tudo muda quando lemos.
E é sobre essa mudança e este ato de leitura que quero falar hoje à noite. Eu quero falar sobre o que a leitura faz. O motivo de ela ser boa.
Uma vez eu estava em Nova York e ouvi uma palestra sobre a construção de prisões particulares – uma indústria em amplo crescimento nos Estados Unidos. Tal indústria precisa planejar o seu futuro crescimento – quantas celas serão necessárias? Quantos prisioneiros teremos daqui a 15 anos? E eles descobriram que podem prever isso muito facilmente, usando um algoritmo bastante simples, baseado em descobrir a porcentagem de crianças entre 10 e 11 anos que não conseguem ler, que não conseguem ler por prazer.
Não é algo muito exato: você não pode dizer que uma sociedade alfabetizada não tenha criminalidade. Mas existem correlações bastante reais.
E eu acho que algumas destas correlações, a mais simples, vem de algo muito simples. Pessoas alfabetizadas leem ficção.
A ficção tem duas utilidades. Primeiramente, é a droga que abre a porta para a leitura. O desejo de saber o que acontece em seguida, de querer virar a página, a necessidade de continuar lendo, mesmo que seja difícil porque alguém está em perigo, mas você precisa saber como tudo vai acabar… Este é um desejo muito real. E te força a aprender novos mundos, a pensar novos pensamentos, a continuar. Descobrir que a leitura por si é prazerosa. Uma vez que você aprende isso, você está no caminho para ler tudo. A leitura é a chave. Houve um breve burburinho, há alguns anos, sobre a ideia de que estávamos vivendo em um mundo pós-alfabetizado, no qual a habilidade de fazer sentido através de palavras escritas estava de alguma forma redundante, mas esses dias acabaram. Bem, as palavras são mais importantes do que jamais foram, nós navegamos o mundo com palavras, e uma vez que o mundo desliza para a web, precisamos seguir, comunicar e compreender o que estamos lendo. Pessoas que não possam entender umas às outras não podem trocar ideias, não podem se comunicar.
A forma mais simples de ter certeza de que educamos crianças alfabetizadas é ensiná-las a ler e mostrarmos a elas que a leitura é uma atividade prazerosa. E isso significa, na sua forma mais simples, encontrar livros que eles gostem, dar a eles acesso a estes livros e deixar que eles os leiam.
Eu não acho que exista livros ruins para crianças. Vez ou outra se torna moda entre alguns adultos escolherem um subconjunto de livros para crianças, um gênero talvez, ou um autor e declará-los como ruins, livros que as crianças devem parar de ler. Eu já vi isso acontecer repetidamente. Enid Blyton foi declarado um autor ruim, R. L. Stine também, assim como dúzias de outros. Quadrinhos têm sido acusados de promover o analfabetismo funcional.
Isto é tosco, é arrogante e é burrice. Não existem autores ruins para crianças, porque cada criança é diferente. Elas podem encontrar as histórias que precisam, e levam a si mesmas para as histórias. Uma ideia banal e desgastada não é banal nem desgastada para elas, pois será a primeira vez que a criança a encontra. Não desencoraje uma criança a ler porque você acha que o que elas estão lendo é errado. A ficção que você não gosta é uma rota para outros livros que você pode gostar. E nem todo mundo tem o mesmo gosto que você.
Adultos bem intencionados podem facilmente destruir o amor de uma criança pela leitura: parar de ler o que elas gostam ou dar a elas livros “chatos mas que valem a pena”, os equivalentes “melhorados” da literatura vitoriana do século XXI… Assim você acabará com uma geração convencida de que ler não é legal e pior ainda, é desagradável.
Precisamos que nossas crianças entrem na escada da leitura: qualquer coisa que eles gostarem de ler irá movê-las, degrau por degrau, a tornarem-se leitoras. (Não faça o que fiz quando a minha filha de 11 anos estava gostando de ler R. L. Stine. Eu peguei um exemplar de Carrie, a Estranha, de Stephen King, e disse que se ela você gosta de Stine, adorará isto! Resultado: Holly não leu nada além de histórias seguras de colonos em pradarias pelo resto de sua adolescência e até hoje me dá olhares tortos quando o nome de Stephen King é mencionado).
A segunda coisa que a ficção faz é construir empatia. Quando você assiste TV ou vê um filme, você está olhando para coisas acontecendo a outras pessoas. Ficção de prosa é algo que você constrói a partir de 26 letras e um punhado de sinais de pontuação, e você, você sozinho, usando a sua imaginação, cria um mundo e o povoa e olha através dos olhos de outros. Você sente coisas, visita lugares e mundos que você jamais conheceria de outro modo. Você aprende que qualquer outra pessoa lá fora é um eu, também. Você está sendo outra pessoa e quando você volta ao seu próprio mundo, estará levemente transformado.
Empatia é uma ferramenta para tornar pessoas grupos, que nos permite que funcionemos como mais do que indivíduos obcecados consigo mesmos.
Você também está descobrindo algo enquanto lê que é de vital importância para fazer o seu caminho no mundo. E é isto:
O mundo não precisa ser assim. As coisas podem ser diferentes.
Eu estive na China em 2007 na primeira convenção de ficção científica e fantasia da história da China. E em dado momento eu perguntei a um alto oficial do Partido Comunista: “Por que a ficção científica foi reprovada por tanto tempo. Por que isso mudou?”. É simples, ele me disse. “Os chineses eram brilhantes em fazer coisas se outras pessoas lhes dessem instruções. Eles não inovavam e não inventavam. Não imaginavam. Então eles mandaram uma delegação para os Estados Unidos, para a Apple, para a Microsoft, para o Google e souberam que as pessoas de lá, que estavam inventando seu próprio futuro, leram ficção científica quando eram meninos e meninas”. A ficção pode te mostrar um outro mundo. Pode te levar para lugares onde você nunca esteve. E uma vez que você tenha visitado outros mundos, como aqueles que comeram a maçã da árvore do conhecimento, você pode ficar completamente insatisfeito com o mundo no qual você cresceu.
O descontentamento é uma coisa boa: pessoas descontentes podem modificar e melhorar o mundo, deixá-lo melhor, deixá-lo diferente. E, enquanto ainda estamos nesse tema, eu gostaria de dizer algumas palavras sobre escapismo. Eu ouço o termo utilizado por aí como se fosse uma coisa ruim. Como se ficção “escapista” fosse um ópio barato utilizado pelos confusos, pelos tolos e pelos desiludidos. Segundo eles, a única ficção válida, para adultos ou crianças seria a ficção mimética, espelhando o pior do mundo em que o leitor ou a leitora se encontra.
Se você estivesse preso em uma situação impossível, em um lugar desagradável, com pessoas que te quisessem mal e alguém te oferecesse um escape temporário, você não ia aceitar isso? A ficção escapista é apenas isso: ela abre uma porta, mostra o sol lá fora, te dá um lugar para ir onde você esteja no controle, com pessoas com quem você queira estar (e livros são lugares reais, não se enganem sobre isso); e, o mais importante, durante a fuga, os livros também podem te dar conhecimento sobre o mundo, te dar armas, te dar armaduras: coisas reais para serem levadas de volta para a prisão. Habilidades, conhecimento e ferramentas que você pode utilizar para escapar de verdade.
Como J. R. R. Tolkien nos lembrou, as únicas pessoas que não querem o escapismo são os guardas…
Outra forma de destruir o amor de uma criança pela leitura é se assegurar de que não existam livros por perto. E não dar a elas nenhum lugar para que leiam estes livros. Eu tive sorte. Eu tive uma biblioteca local excelente enquanto cresci. Eu tive o tipo de pais que me deixavam na biblioteca no caminho do trabalho deles, eu tive o tipo de bibliotecários que não se importavam que um menino pequeno e desacompanhado ficasse na biblioteca das crianças todas as manhãs remexendo no catálogo, procurando por livros sobre fantasmas ou mágica ou foguetes, procurando por vampiros ou detetives ou bruxas ou fantasias. E quando eu terminei de ler a biblioteca de crianças, eu comecei a de adultos.
Tive ótimos bibliotecários. Eles gostavam de livros e gostavam ainda mais dos livros que estavam sendo lidos. Eles me ensinaram como pedir livros de outras bibliotecas em empréstimos entre elas. Eles não eram arrogantes em relação a nada que eu lesse. Eles pareciam apenas gostar do fato de existir esse menininho de olhos arregalados que amava ler e conversavam comigo sobre os livros que eu estava lendo, encontravam outros livros para mim, eles me ajudaram. Eles me tratavam como outro leitor – nem mais, nem menos – o que significa que eles me tratavam com respeito. Eu não estava acostumado a ser tratado com respeito aos oito anos de idade.
Mas as bibliotecas também têm a ver com liberdade. A liberdade de ler, a liberdade de ideias, a liberdade de comunicação. Elas têm a ver com educação (que não é um processo que termina no dia que deixamos a escola ou a universidade), com entretenimento, têm a ver com criar espaços seguros e com o acesso à informação.
Eu me preocupo que no século XXI as pessoas venham a entender errado o que são bibliotecas. Se você perceber uma biblioteca como estantes com livros, pode parecer antiquado e datado em um mundo no qual a maioria deles, mas não todos, existem digitalmente. Pensar assim é errado.
Eu acho que tem a ver com a natureza da informação. A informação tem valor, e quando é certa tem enorme valor. Por toda a história humana, nós vivemos em escassez de informação e ter a informação desejada sempre foi importante, sempre valia alguma coisa: quando plantar sementes, onde achar as coisas, mapas e histórias e estórias. Informação era algo valioso, e aqueles que a tinham ou podiam obtê-la podiam cobrar por ela.
Nos últimos anos, nos mudamos de uma economia de escassez da informação para uma de excesso de informação. De acordo com o Eric Schmidt do Google, agora, a cada dois dias, a raça humana cria tanta informação quanto criava desde o início da civilização até 2003. O desafio se torna não encontrar a planta escassa que cresce visivelmente no deserto, mas uma planta específica que cresce em uma floresta. Precisaremos de ajuda para navegar neste mar de informações e achar aquilo que precisamos de verdade.
Bibliotecas são lugares onde as pessoas vão para obter informação. Livros são apenas a ponta do iceberg da informação: eles estão lá, e as bibliotecas podem fornecer livros gratuita e legalmente. Crianças pegam livros emprestados de bibliotecas hoje mais do que nunca – livros de todos os tipos: de papel, digital e em áudio. Mas as bibliotecas também são lugares onde pessoas que não tem computadores, que não têm conexão à internet, podem ficar on-line sem pagar nada — o que é imensamente importante quando você procura emprego, se candidata para entrevistas ou busca benefícios que migraram para ambientes exclusivamente web. Bibliotecários podem ajudar estas pessoas a navegar neste mundo.
Eu não acredito que os livros irão ou devam migrar para as telas: como Douglas Adams uma vez me falou, mais de 20 anos antes do Kindle aparecer, um livro físico é como um tubarão. Tubarões são velhos: existiam tubarões nos oceanos antes dos dinossauros. E a razão de ainda existirem tubarões é que tubarões são melhores em serem tubarões do que qualquer outra coisa que exista. Livros físicos são durões, difíceis de destruir, são resistentes, operam sob a luz do sol, ficam bem na sua mão: eles são bons em serem livros e sempre existirá um lugar para eles. Eles pertencem às bibliotecas, que já se tornaram lugares onde você pode ir para ter acesso também a e-books, áudio-livros, DVDs e conteúdos web.
Uma biblioteca é um repositório de informação e dá a cada cidadão acesso igualitário a ele. É um espaço comunitário. É um lugar de segurança, um refúgio do mundo. É um lugar com bibliotecários. E o que as bibliotecas do futuro serão é algo que deveríamos estar imaginando agora.
A literatura é mais importante do que nunca nesse mundo de mensagens e e-mail, um mundo de informação escrita. Precisamos ler e escrever, precisamos de cidadãos globais que possam ler facilmente, compreendendo o que estão lendo, entendendo as nuances e se fazendo entender.
As bibliotecas realmente são os portais para o futuro. É muito triste que, ao redor do mundo, observemos autoridades aproveitando oportunidades para fechar bibliotecas como uma maneira fácil de poupar dinheiro, sem perceber que eles estão roubando do futuro para serem pagos hoje. Eles estão fechando portas que deveriam estar sempre abertas.
De acordo com um estudo recente feito pela Organisation for Economic Cooperation and Development, a Inglaterra é o “único país onde o grupo de mais idade tem mais proficiência tanto em alfabetização quanto em capacidade de usar ou entender as técnicas numéricas da matemática do que o grupo mais jovem”.
Ou, em outras palavras, nossos filhos e netos são menos alfabetizados e menos numerosos do que nós. Eles são menos capazes de navegar pelo mundo, de entendê-lo e de resolver problemas. Eles podem ser mais facilmente enganados e iludidos, serão menos capazes de mudar o mundo em que se encontram, ser menos empregáveis. Todas essas coisas. E como um país, a Inglaterra ficará para trás em relação a outras nações desenvolvidas porque faltará mão de obra especializada.
Livros são a forma com a qual nós nos comunicamos com os mortos. A forma que aprendemos lições com aqueles que não estão mais entre nós, que construíram a humanidade, que progrediram, que fizeram com que o conhecimento fosse incrementado ao invés de reaprendido. Existem contos que são mais velhos que alguns países, contos que sobreviveram às culturas e aos prédios nos quais eles foram contados pela primeira vez.
Eu acho que temos responsabilidades com o futuro. Responsabilidades e obrigações para com as crianças, com os adultos que essas crianças se tornarão, com o mundo que eles habitarão. Todos nós – enquanto leitores, escritores, cidadãos – temos obrigações. Pensei em explicitar algumas dessas obrigações aqui.
Eu acredito que temos a obrigação de ler por prazer, em lugares públicos e privados. Se lermos por prazer, se outros nos verem lendo, mostraremos que ler é uma coisa boa.
Temos a obrigação de apoiar bibliotecas. De usar bibliotecas, de encorajar outras pessoas a utilizarem bibliotecas, de protestar contra o fechamento de bibliotecas. Se você não valoriza bibliotecas então você não valoriza informação, cultura e sabedoria. Você está silenciando as vozes do passado e prejudicando o futuro.
Temos a obrigação de ler em voz alta para nossas crianças. De ler para elas coisas que elas gostem. De ler pra elas histórias das quais já estamos cansados. De fazer as vozes, de fazer com que seja interessante e não parar de ler para elas apenas porque elas já aprenderam a ler sozinhas. Use o tempo de leitura em voz alta para um momento de aproximação, um tempo onde não se fique checando o telefone, quando as distrações do mundo são postas de lado.
Temos a obrigação de usar a linguagem. De nos esforçarmos, de descobrimos o que as palavras significam e como empregá-las, de nos comunicarmos claramente, de dizer o que estamos querendo dizer. Não devemos tentar congelar a linguagem ou fingir que é uma coisa morta que deve ser reverenciada, mas devemos usá-la como algo vivo, que flui, que empresta palavras, que permite que significados e pronúncias mudem com o tempo.
Nós escritores – não apenas os escritores para crianças, mas todos os escritores – temos uma obrigação com nossos leitores: é a obrigação de escrever coisas verdadeiras quando estamos criando contos de pessoas que não existem em lugares que nunca existiram – entender que a verdade não está no que acontece mas no que ela nos diz sobre quem somos. A ficção é a mentira que diz a verdade. Temos a obrigação de não entediar nossos leitores, de fazê-los sentir a necessidade de virar as páginas. Uma das melhores curas para um leitor relutante, afinal, é uma história que eles não são capazes de parar de ler. E, enquanto contamos a nossos leitores coisas verdadeiras e damos a ele armas e armaduras e passamos a eles qualquer sabedoria que recolhemos em nossa curta estadia nesse mundo, temos a obrigação de não pregar, não ensinar, não forçar mensagens e morais pré-digeridas goela abaixo em nossos leitores como pássaros adultos alimentando seus bebês com vermes pré-mastigados. E nós temos a obrigação de nunca, em nenhuma circunstância, escrever nada para crianças que nós mesmos não gostaríamos de ler.
Temos a obrigação de entender e reconhecer que, enquanto escritores para crianças, nós estamos fazendo um trabalho importante, porque se nós escrevermos livros chatos que distanciam as crianças da leitura e de livros, nós estaremos menosprezando nosso próprio futuro e diminuindo o deles.
Todos nós – adultos e crianças, escritores e leitores – temos a obrigação de sonhar acordados. Temos a obrigação de imaginar. É fácil fingir que ninguém pode mudar coisa alguma, que estamos num mundo no qual a sociedade é enorme e que o indivíduo é menos que nada: um átomo numa parede, um grão de arroz num arrozal. Mas a verdade é que indivíduos mudam o seu próprio mundo de novo e de novo, indivíduos fazem o futuro e eles fazem isso porque imaginam que as coisas podem ser diferentes.
Olhe à sua volta: eu falo sério. Pare por um momento e olhe em volta da sala em que você está. Eu vou dizer algo tão óbvio que a tendência é que seja esquecido. Tudo o que você vê, incluindo as paredes, foi, em algum momento, imaginado. Alguém decidiu que era mais fácil sentar numa cadeira do que no chão e imaginou a cadeira. Alguém tinha que imaginar uma forma para que eu pudesse falar com vocês em Londres agora mesmo sem que todos ficássemos tomando chuva. Esta sala e as coisas nela, e todas as outras coisas nesse prédio, esta cidade, existem porque, de novo e de novo e de novo as pessoas imaginaram coisas.
Temos a obrigação de fazer com que as coisas sejam belas, de não de deixar o mundo mais feio do que já encontramos, de não esvaziar os oceanos, não de deixar nossos problemas para a próxima geração. Temos a obrigação de limpar tudo o que sujamos, e não deixar nossas crianças com um mundo que nós desarrumamos, vilipendiamos e aleijamos de forma míope.
Temos a obrigação de dizer a nossos políticos o que queremos, de votar contra políticos ou quaisquer partidos que não compreendam o valor da leitura na criação de cidadãos decentes, que não querem agir para preservar e proteger o conhecimento e encorajar a alfabetização. Esta não é uma questão de partidos políticos. Esta é uma questão de humanidade em comum.
Uma vez perguntaram a Albert Einstein como ele poderia tornar nossas crianças inteligentes. A resposta dele foi simples e sábia. “Se você quer que crianças sejam inteligentes”, ele disse, “leiam contos de fadas para elas. Se você quer que elas sejam mais inteligentes, leiam mais contos de fadas para elas”. Ele entendia o valor da leitura e da imaginação. Eu espero que possamos dar às nossas crianças um mundo no qual elas possam ler, e que leiam para elas, e onde elas possam ser capazes de imaginar e compreender.
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Esta é uma versão editada da palestra de Neil Gaiman para a Reading Agency, realizada dia 14 de outubro de 2013 no Barbican em Londres. A série de palestras da Reading Agency é uma plataforma para que escritores e pensadores compartilhem ideias originais e desafiadoras sobre a leitura e as bibliotecas.
Este curto e brilhante ensaio de George Steiner, recém lançado pela Âyiné, divide-se em três partes: Aqueles que queimam livros, O povo do livro e Os dissidentes do livro.
Steiner é um mestre absoluto. Erudito e metódico, ele é autor de um impressionante número de clássicos para os estudiosos de humanidades — entre os quais Nenhuma Paixão Desperdiçada, Lições dos Mestres e este livro que ora comento.
Steiner não é um otimista, mas dá alguns remédios: os livros seriam um meio seguro para nos tornamos melhores. Pode parecer algo já muitas vezes dito, mas o que vale é a argumentação certeira de Steiner. Li o livro fazendo inúmeras anotações, não dá para abrir meu exemplar sem que se vejam frases ou parágrafos sublinhados. Tudo parece fundamental, necessário, perfeito.
A primeira parte trata do encontro, da relação entre leitor e livro. Esta é imprevisível, vulnerável à mudanças de espírito ou de idade, muito semelhante às afinidades mediadas por Eros.
O encontro com o livro, assim como aquele encontro com o homem ou a mulher destinada a mudar nossas vidas, pode ser completamente casual. O texto que vai nos converter a uma fé, que vai nos fazer aderir a uma ideologia, que dá a nossa existência um fim ou um critério, pode estar a nos esperar na estante de livros de ocasião, de usados, com desconto. Talvez empoeirado e esquecido, ao lado do livro que procurávamos. (…) Um texto é sempre capaz de ressuscitar. Walter Benjamin ensinava, Borges construiu sua mitologia: um livro jamais é impaciente. Ele pode esperar séculos para despertar um eco vivificante.
A segunda parte trata dos judeus e de seu amor pelos livros. Trata do fato de um religioso judeu ter de ler e estudar a Torá, de ser um povo que tem um lápis na mão ao ler um livro. Também fala na resistência da igreja católica à invenção da imprensa. A invenção de Gutenberg serviu muito mais aos protestantes, pois os católicos desejavam seguir com a informação oral, pelos padres.
A terceira parte fala sobre a tirania do celular, o livro digitalizado e sobre as condições políticas e culturais que favorecem ou não o livro. Fala-se da postura dos escritores e filósofos nazistas — habitantes de um país altamente culto e produtivo mesmo durante Hitler –, de Wagner, da variedade demencial de lançamentos de livros — 121 mil novos títulos são lançados no Reino Unido a cada ano — e de sua efemeridade, pois se não vendem vão para o balcão de ofertas em 20 dias. Fala-se também na relação entre censura — a grande propulsora de metáforas, segundo Borges — e criatividade.
Sem dúvida, um livro de um mestre, um clássico moderno.
Traduzido com extrema liberdade pelo autor do blog
Lembro-me vagamente de um magnífico artigo de Giorgio Manganelli, explicando como um leitor sofisticado pode saber se um livro vale a pena ser lido, mesmo antes de abri-lo. Ele não estava se referindo à capacidade muitas vezes requerida a um leitor profissional, ou a um leitor afiado e criterioso. Não estava se referindo àqueles que podem julgar um livro a partir de uma linha de abertura, de duas páginas, de uma olhada aleatória do índice ou muitas vezes da bibliografia. Isso é simplesmente experiência. Não, Manganelli estava falando sobre uma espécie de iluminação, de um dom que evidentemente alegava ter.
Em How to Talk About Books You Haven’t Read (de Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura) é explicado como você pode falar sobre um livro que você não leu, até mesmo para seus alunos, inclusive quando se trata de um livro de extraordinária importância. Seu cálculo é científico. As boas bibliotecas contêm vários milhões de livros: mesmo que se leia um por dia, leríamos apenas 365 livros por ano, cerca de 3.600 em dez anos, e entre as idades de dez e oitenta anos nós teremos lido apenas 25.550. É pouco. Por outro lado, qualquer italiano que tenha tido uma boa educação secundária sabe perfeitamente que pode participar de uma discussão, digamos, sobre Matteo Bandello, Francesco Guicciardini, Matteo Boiardo, sobre as tragédias de Vittorio Alfieri ou sobre as Confissões de um Italiano, de Ippolito Nievo, conhecendo apenas o nome e algo sobre o contexto crítico, sem ter lido uma palavra deles.
E o contexto crítico é o ponto crucial de Bayard. Ele declara desavergonhadamente que ele nunca leu Ulysses de James Joyce, mas que pode falar sobre isso aludindo ao fato de que é baseado na Odisseia, que ele também admite nunca ter lido na íntegra. Ulysses também é baseado em um monólogo interno, com a ação se desenrolando em Dublin durante um único dia, etc. “Como resultado”, ele escreve, “muitas vezes me encontro falando sobre Joyce sem a menor ansiedade”. Conhecer o relacionamento de um livro com outros livros geralmente significa que você sabe mais sobre o livro do que se tivesse lido a obra.
Bayard mostra como nós, quando lemos certos livros percebemos que estamos familiarizados com seus conteúdos porque eles foram lidos por outros que falaram sobre eles. Ele faz algumas observações extremamente divertidas sobre uma série de textos literários que se referem a livros nunca lidos, incluindo Robert Musil, Graham Greene, Paul Valéry, Anatole France e David Lodge. E ele me faz a honra de dedicar um capítulo inteiro ao meu O Nome da Rosa, onde William de Baskerville demonstra familiaridade com o segundo livro da Poética de Aristóteles no momento em que o segura nas mãos pela primeira vez. Ele faz isso pela simples razão de que ele infere o que diz a partir de algumas outras páginas de Aristóteles.
Um aspecto intrigante do livro de Bayard, que é menos paradoxal do que parece, é que também esquecemos uma porcentagem muito grande dos livros que realmente lemos e, de fato, nós construímos uma espécie de imagem virtual deles que não consiste tanto no que dizem, mas no que eles evocaram em nossa mente. Então, se alguém que não tenha lido um livro cita passagens ou situações inexistentes, estamos prontos a acreditar que estão no livro.
Bayard se interessa pela ideia — e aqui é a voz do psicanalista em vez do professor de literatura — de que toda leitura ou não-leitura ou leitura imperfeita têm aspectos criativos e que, enfim, os leitores fazem sua parte. E ele prevê a criação de uma escola onde os estudantes “inventam” livros que não precisam ler, já que falar de livros não lidos é um meio de autoconsciência.
Bayard demonstra como, quando alguém fala sobre um livro não lido, mesmo aqueles que leram o livro não percebem os erros. No final de sua obra, ele admite ter apresentado três falsas informações em seus resumos de O Nome da Rosa, O Terceiro Homem, de Graham Greene e Changing Places de David Lodge. O divertido é que, quando li os resumos, notei imediatamente o erro em relação a Graham Greene, fiquei em dúvida sobre Lodge, mas não percebi o erro em meu próprio livro. Isso provavelmente significa que eu não li atentamente o que Bayard escreveu, que eu simplesmente espreitei o texto. Mas o mais interessante é que Bayard não percebeu que, ao admitir seus três erros intencionais, assumiu implicitamente que uma maneira de ler é mais correta do que outras, tanto que ele foi obrigado a fazer um estudo meticuloso dos livros que cita para poder sustentar sua teoria sobre não lê-los. A contradição é tão evidente que faz pensar se Bayard realmente leu o livro que escreveu.
Extraído de Crônicas de uma Sociedade Líquida por Umberto Eco, traduzido do italiano para o inglês por Richard Dixon.
Umberto Eco era um romancista italiano, crítico literário, filósofo, semiótico e professor universitário.
Um dia desses, passei os olhos numa matéria que dizia que a leitura de livros era uma espécie poderosa de remédio para as tristezas e decepções da vida. Desta forma, os leitores de livros — acho que o texto utilizava o lugar comum “vorazes leitores” — tinham uma espécie bote salva-vidas que permitia que ficassem boiando durante as inundações que a vida nos impõe.
Impossível concordar mais. Quando a coisa está muito louca e incontrolável lá fora — e como está, não? –, quando a algaravia sem fim do Facebook começa a abalar nossa saúde mental, parece que um bom texto ou uma boa história vem cumprir não somente o papel de nos entreter, mas o de repor nossos pensamentos na linha da normalidade (ou do habitual, pois não tenho ilusões sobre minha normalidade).
Ler ficção não é somente entrar em outra realidade, mas estar em conexão íntima conosco de uma forma muito especial e tranquila. Pode até ser um livro que nos incomode com “murros no crânio” (para citar Kafka), mas o mergulho que fazemos, a penetração que realizamos no modo de pensar de alguém que nos é estranho, tem sempre o condão de nos mostrar o caminho de retorno a nós mesmos.
Quando fico muito tempo sem ler, tenho a impressão de que uma psicose pró-ativa vai tomar conta de mim e vou ficar tão idiota quanto um político de carreira ou outro carreirista qualquer. Mesmo que o nível médio daquilo que se publica seja muito baixo, vale a pena ler livros. A maioria das coisas que as pessoas escrevem no Facebook comentam sobre o dia de hoje de forma simples e descartável. Quando este hoje se torna ontem, aquilo que registramos não tem mais valor. É um palimpsesto (*) de altíssima velocidade. Isso perturba, cansa, gasta.
Enquanto escrevia este texto, descobri que existe uma biblioterapia. Ela consiste na prescrição de materiais de leitura com função terapêutica. A prática biblioterapêutica pode ser utilizada como um importante instrumento no restabelecimento psíquico de indivíduos com transtornos emocionais.
Começo a pensar em fazer listas terapêuticas…
(*) Papiro ou pergaminho cujo texto primitivo é raspado para dar lugar a outro.
Após a entrevista que fiz com Ernani Ssó sobre sua tradução do Quixote, realizada sob os chopes do aprazibilíssimo Tuim, pegamos a mania de nos encontrarmos no mesmo local para falar de literatura e qualquer coisa. Não precisamos mais de pretextos, porém desta vez ele me pediu que, amanhã, eu levasse comigo meu exemplar de O mestre e Margarida, para lhe emprestar. Não há problema, costumo emprestar livros. Ou melhor, há um problema sim. É que, cada vez mais, faço anotações a caneta nos livros e não gosto que os outros as leiam, por serem feitas ao ritmo de meus imbecis pensamentos pessoais durante a leitura.
Eu queria algo de primeiro de abril, mas, bem… O fotógrafo Clayton Cubitt montou uma interessante exploração da relação inter-prazeres. Mulheres foram filmadas lendo, enquanto um misterioso dispositivo estimulava-as ao orgasmo. Pensamos que o misterioso dispositivo atenda pelo nome de vibrador.
Tradicionalmente, o Ocidente, sob a indiscutível e perniciosa influência católica, considera que a relação entre mente e corpo seja de conflito perpétuo, que um tentaria subjugar o outro. Nas pessoas religiosas e virtuosas, a mente dominaria o corpo e os desejos; os outros seriam perfeitamente felizes. O autocontrole — esta superestimada bobagem — seria a soberania da mente sobre os sentidos inferiores que aprisionariam nossas almas, se deixados livremente.
Com base nesta oposição, o fotógrafo estadunidense Clayton Cubitt realizou uma experiência única: colocou três mulheres lendo textos que são considerados sensuais ou francamente eróticos: Folhas da Relva, de Walt Whitman, Necrophilia Variations, de Supervert e Still Life with Woodpecker, de Tom Robbins. O tal misterioso mecanismo estimulava continuamente a área genital da leitora até que ela atingisse o orgasmo — o que marca o fim de cada experiência.
Entre outros fins, Cubitt procurou explorar as áreas limítrofes onde a mente não governa mais o corpo, apesar de todas as solicitações do superego pela compostura.
É muito interessante ouvir o que estavam lendo quando perdem a noção. Elas asseguraram que a experiência foi como um transe religioso e elas não lembraram da segunda metade do que leram.
Stoya — aqui, um depoimento — visita o estúdio e lê Necrophilia Variations de Supervert.
Alicia com Folhas da Relva, de Wait Whitman.
Danielle vai ao estúdio e lê Still Life With Woodpecker, de Tom Robbins.
Mais uma anotação da terceira tradução e leitura de Ulysses, a MELHOR, sem dúvida.
E então mudamos de capítulo e, como ocorre sempre em Ulysses, muda o escritor. Entra um que parece viver em pleno esplendor kitsch:
O entardecer estival começara a envolver o mundo em seu misterioso abraço. Longe no Oeste o sol se punha e o último reluzir do dia fugaz brilhava ainda encantador sobre mar e areia, o altivo promontório do nosso querido Howth, vigilante como sempre sobre as águas da baía, as pedras cobertas de algas da praia de Sandymount e, com não menos importância, sobre a tranquila igreja de onde brotava por vezes no silêncio do ar em tornoa voz das preces a ela que em sua pura radiância é um farol para o coração do homem, fustigado pelas tormentas, Maria, estrela do mar.
As três amiguinhas estavam sentadas nas pedras, aproveitando o espetáculo do crepúsculo e…
Joyce é um baita gozador. Logo depois vem a famosa cena de masturbação de Bloom sob o olhar e a provocação de Gerty MacDowell, uma das três amiguinhas. Não, não cabe num tuíte, Paulo Coelho. E este livro é demais e é muito, mas muito divertido.
Mentira. Pois quando me oferecem sempre pego na hora. Porém, hoje, evitei receber o convite quando meu vizinho saiu de casa na mesma hora que eu. Ele é muito educado e solidário, vai de carro e me faz ganhar quinze minutos. Mas hoje eu acelerei o passo e segui meu caminho para a parada. Passei reto por um simples motivo — queria ler meu livro no ônibus. Atualmente, quase só leio nos ônibus e lotações. Dá uma hora por dia. Em casa, sempre há algo solicitando minha atenção. Um saco, um saco. Mas poderia haver outro motivo. Desde há muito comecei a me deslocar sozinho para o Centro da cidade. Na verdade, desde os 9 ou 10 anos de idade. Quando conseguia sentar, aqueles eram momentos felizes nos quais divagava à vontade, como se não pudesse fazer melhor noutro lugar. Talvez a entrada e saída de pessoas desse maior criatividade aos pensamentos. O fato é sempre houve um traço poético em ser levado dentro de um coletivo. Não sei bem por quê: pode ser o balançar do ônibus, pode ser as caras das pessoas que me fazem adivinhar-lhes as histórias. É um momento de pura indireção, em que não há nada de objetivo que possa ser resolvido e me irrito muito se o celular toca. É muito bom. Então, sempre achei prazerosa a coisa dos ônibus. Ademais, há a discutível certeza de estar colaborando com a humanidade ao não estar andando sozinho dentro de um carro. Foi um boa decisão a de ter ficado com um só carro em casa, acho.
Quando criança, preferia os bondes. Afinal, eles andavam sobre trilhos e nunca poderiam alterar seus caminhos. Eu morria de medo que os ônibus saíssem por aí livremente pela fantasia de um motorista alucinado. Achava que todos os adultos conheciam a cidade. Eu não. E era muito tímido para perguntar como voltar pra casa. Então, os trilhos eram minha segurança. Hoje, nem olho muito as caras das pessoas. Entro, dou bom dia para o motorista e sento para ler. Já me falaram na possibilidade de descolamento da retina. Francamente, que descole.
Digamos que as palavras tenham seus pesos determinados não por sua densidade ou consistência, nem por sua massa multiplicada pela aceleração da gravidade, mas pela quantidade de leitores atentos que elas possam obter durante sua vida útil. Peço aos meus sete leitores que comparem a “perenidade dos livros” com o número de pessoas paradas e atentas em frente a um dazibao. Se, após editado, uma palavra dentro de um livro obtiver 500 leitores que passarão os olhos por ela e a compreenderão, ela terá peso menor que outra, chinesa, que terá 10.000 leitores no jornal mural chinês e que amanhã será substituída por outra. Aqui, neste texto, não me interessa a beleza ou a razão, mas o número de leitores compreensivos — adjetivo que uso na acepção que Herbert Caro utilizava em nossas manhãs musicais de sábado na King`s Discos, onde compreensivo era o intérprete ou tradutor que demonstrava empatia para procurar sempre entender o autor. Deste modo, uma palavra dita no rádio para 50.000 ouvintes também teria peso superior a de qualquer palavra escrita por um bom e ignorado escritor brasileiro.
Curioso, este assunto me ocorreu quando estava na presença de um psiquiatra forense. Tive duas sessões com ele, cada uma de quase três horas. A finalidade era a de saber se eu poderia obter a guarda de minha filha, ou seja, a de saber se eu era louco ou não. Sua opinião foi muito benigna a meu respeito e, ao final da segunda sessão, ele me comentou que achara meu processo confuso e mal montado. Montado? Ele me explicou que num processo o mais importante é a montagem e o motivo era simples. Os juízes não liam os processos, apenas davam davam um “vistaço”. Vistaço? Ah, sim, folheavam os processos, liam os títulos, algumas frases de um ou outro item e decidiam. Como? Ora, através da experiência. Os juizes então liam os processos como lemos um livro que estamos detestando, mas do qual, meio de má vontade, queremos vagamente descobrir o final? Sim, só que eles não avaliam a qualidade, apenas têm pressa.
O ambiente psiquiátrico é dos mais civilizados que conheço. Peço desculpas a meus amigos terapeutas, mas aquilo é pura diversão para alguém que nunca precisou de tratamento. A gente vai lá e tem uma boa conversa com um sujeito especializado em conviver e manipular, fazendo-nos mudar de assunto ou penetrar em coisas que nem sempre apreciaríamos, mas que ali, bem, ali vale tudo. É como uma dança. O terapeuta faz uma forcinha para um lado sugerindo uma mudança de rumo ou ritmo e nós vamos atrás; se quisermos comandar, vamos ter de enganá-lo ou convencê-lo, tarefa bem complicada, pois ele tem interesses muito definidos e normalmente dá mais importância à nossa insistência em comandar do que ao conteúdo que desejamos introduzir. Sempre saí leve das poucas consultas que fiz, pois era agradável ser “levado” numa dança em que tudo o que não precisara fazer era pensar. Deixava-me ser manipulado e gostava. Mas aquilo que ouvira era demais! Por isso, mudei de posição na cadeira e comecei a questionar. A partir do momento em que ele dissera que eu não era doido varrido e não daria muito dinheiro às pessoas de sua profissão (sim, ele O disse), eu, bem, poderia me mostrar ao natural… Então, resumindo, o processo tem de ter bons títulos, que fossem sedutores ou escandalosos o suficiente para chamar a atenção do apressadinho? Sim, claro. E letras bem grandes? Evidentemente. E os textos deveriam ser curtos e grossos? You got it.
Naquele momento, eu descobri duas coisas: (1) que perderia um outro processo e (2) que qualquer advogado de inteligência mediana saberia que não adianta escrever laudas e laudas citando Pontes de Miranda, Ortega y Gasset e milhões de artigos perdidos na teia de fios em curto circuito do “sábio legislador”, quando o melhor seria a abertura de um processo twitter, que receberia inclusive a simpatia de um incompreensivo (ainda na acepção de Caro) juiz.
Cheguei em casa e liguei para meu advogado. Perguntei-lhe quantas páginas ele escrevera (um monte!), o tamanho da fonte (10, imaginem!) e o número de títulos de itens (poucos). Stendhal dizia ironicamente que sonhava escrever como um advogado, pretendia que seus livros saíssem direto do cartório para o prelo, pois admirava a exatidão jurídica — hoje nem lida… Ali, as palavras eram exploradas em seu preciso significado, as metáforas estavam varridas, mas Stendhal, o imenso, seco, esquecido e genial Henri-Marie Beyle, faleceu em 1842, estamos quase dois séculos adiante e, apesar de os advogados tentarem manter a utilização de palavras etimologicamente corretas… hoje escrevem para não serem lidos.
Então, quando anunciam como grande coisa a informatização do Poder Judiciário, com a eliminação daquelas montanhas de processos, só posso pensar que é um caminho naturalíssimo. Há milhões de processos mal analisados atravancando as salas e agora tudo ficará registrado, e não lido, em discos rígidos. Ah, mas os juízes terão acesso mais rápido aos textos? Pode ser, porém você tem de considerar o novo suporte.
Os monitores e as janelas têm características físicas que favorecem o Reino da Desatenção que é a Internet. Tudo no computador favorece o “scanning”, a busca de palavras-chave ou trechos de interesse. Há a ansiedade da informação, há a janela em background piscando ali embaixo, tudo é difuso. Como diz este interessante site, Manifesto contra a leitura desatenta, a leitura rápida é útil, mas só leitura rápida é fútil. Eu reformularia a frase do Fred, só que a rima iria para o saco (expressão impensável juridicamente — a que saco Vossa Senhoria se refere?). A leitura não será como a do músico que lê a partitura em clusters (conjuntos, pencas) de notas conhecidas e que as toca todas. A qualidade do “vistaço” será menor ainda nos vídeos, pois a ele associa-se a pressão das janelas abertas e do fazer tudo ao mesmo tempo agora.
Então, meus caros advogados, eu sugiro que vocês deem peso a suas palavras treinando no twitter. Ou que tuítem direto com os juízes. Claro que estou brincando. Mas acho mesmo que o sucesso do twitter deve-se à diluição da atenção provocada pelo suporte onde trafegam textos que são só mais ou menos lidos. 140 caracteres é um bom número para um “vistaço”.
Obviamente, tudo isso NÃO passou pela minha limitada cabeça enquanto estava sentado na frente do psiquiatra forense, até porque, ainda que estivesse arguindo, estava com resquícios daquele clima bom de dança. Todavia, fiz-lhe as perguntas decisivas, aquelas duas óbvias, as que não iriam calar. Como então eles decidem? Ora, pelo senso comum, sem atentar a detalhes. Essa era a resposta que temia ouvir e suas consequências nefastas dariam assunto para vinte posts. Poderia abrir um curso para advogados, pois o peso, a importância de suas palavras será diretamente proporcional à aderência, fingida ou não, ao senso comum. Quem estiver mais perto de nossa tradição cultural, de nossos costumes e do Programa Raul Gil irá vencer. Meu curso prometeria aos advogados que suas palavras teriam o insustentável peso de uma palavra de juiz. E fiz-lhe a outra pergunta. Juízes fazem psicanálise? Sentem-se culpados? Eu achei que ele apenas riria e já até olhava para um canto qualquer quando ele, rindo muito, cruzou as pernas e respondeu com uma frase avassaladora. Não precisam, a maioria vai à igreja.
Eu não era louco, mas me deu um desejo incrível de morder o pé do psiquiatra, que balançava satisfeito, disponível, bem na minha frente, divertido.